1 de fevereiro de 2008

A hipótese comunista

Por que o espectro de maio de 68 ainda assombra o discurso francês? Alain Badiou sobre as sequências de longue durée de restauração e revolta do país, e o lugar da presidência de Sarkozy dentro delas. Lições de coragem política de Platão e Corneille, e um chamado para reafirmar a aposta fundadora do Manifesto.

Alain Badiou


NLR 49 • Jan/Feb 2008

Havia uma sensação tangível de depressão no ar na França após a vitória de Sarkozy.1 Costuma-se dizer que golpes inesperados são os piores, mas os esperados às vezes se mostram debilitantes de uma maneira diferente. Pode ser estranhamente desanimador quando uma eleição é vencida pelo candidato que liderou nas pesquisas de opinião desde o início, assim como quando o cavalo favorito vence a corrida; qualquer um com o menor sentimento por uma aposta, um risco, uma exceção ou uma ruptura preferiria ver um estranho perturbar as probabilidades. No entanto, dificilmente poderia ter sido o simples fato de Nicolas Sarkozy como presidente que pareceu ser um golpe tão desorientador para a esquerda francesa após maio de 2007. Algo mais estava em jogo — algum complexo de fatores para os quais "Sarkozy" é apenas um nome. Como isso deve ser entendido?

Um fator inicial foi a maneira como o resultado afirmou a manifesta impotência de qualquer programa genuinamente emancipatório dentro do sistema eleitoral: as preferências são devidamente registradas, da maneira passiva de um sismógrafo, mas o processo é um que, por sua natureza, exclui quaisquer personificações de vontade política dissidente. Um segundo componente da desorientação depressiva da esquerda após maio de 2007 foi uma onda avassaladora de nostalgia histórica. A ordem política que emergiu da Segunda Guerra Mundial na França — com seus referentes inequívocos de "esquerda" e "direita", e seu consenso, compartilhado por gaullistas e comunistas, no balanço da Ocupação, Resistência e Libertação — agora entrou em colapso. Esta é uma das razões para os jantares ostentosos de Sarkozy, férias em iates e assim por diante — uma maneira de dizer que a esquerda não assusta mais ninguém: Vivent les riches, e para o inferno com os pobres. Compreensivelmente, isso pode encher as almas sinceras da esquerda com nostalgia pelos bons e velhos tempos — Mitterrand, De Gaulle, Marchais, até mesmo Chirac, o Brezhnev do gaullismo, que sabia que não fazer nada era a maneira mais fácil de deixar o sistema morrer.

Sarkozy finalmente acabou com a forma cadavérica do gaullismo presidido por Chirac. O colapso dos socialistas já havia sido antecipado na derrota de Jospin nas eleições presidenciais de 2002 (e ainda mais pela decisão desastrosa de abraçar Chirac no segundo turno). A atual decomposição do Partido Socialista, no entanto, não é apenas uma questão de sua pobreza política, aparente agora há muitos anos, nem do tamanho real da votação — 47 por cento não é muito pior do que suas outras pontuações recentes. Em vez disso, a eleição de Sarkozy parece ter desferido um golpe em toda a estruturação simbólica da vida política francesa: o próprio sistema de orientação sofreu uma derrota. Um sintoma importante da desorientação resultante é o número de ex-assessores socialistas correndo para assumir cargos sob Sarkozy, os formadores de opinião de centro-esquerda cantando seus louvores; os ratos fugiram do navio afundando em números impressionantes. A lógica subjacente é, claro, a do partido único: já que todos aceitam a lógica da ordem capitalista existente, economia de mercado e assim por diante, por que manter a ficção de partidos opostos?

Um terceiro componente da desorientação contemporânea surgiu do resultado do próprio conflito eleitoral. Eu caracterizei as eleições presidenciais de 2007 — colocando Sarkozy contra Royal — como o choque de dois tipos de medo. O primeiro é o medo sentido pelos privilegiados, alarmados de que sua posição pode ser atacada. Na França, isso se manifesta como medo de estrangeiros, trabalhadores, jovens do banlieue, muçulmanos, negros africanos. Essencialmente conservador, ele cria um anseio por um mestre protetor, mesmo um que o oprima e empobreça você ainda mais. A personificação atual dessa figura é, claro, o chefe de polícia superestimulado: Sarkozy. Em termos eleitorais, isso é contestado não por uma afirmação retumbante de heterogeneidade autodeterminada, mas pelo medo desse medo: um medo, também, da figura policial, que o eleitor socialista pequeno-burguês não conhece nem gosta. Esse "medo do medo" é uma emoção secundária, derivada, cujo conteúdo — além do sentimento em si — é quase imperceptível; o campo real não tinha nenhum conceito de aliança com os excluídos ou oprimidos; o máximo que ele conseguia imaginar era colher os benefícios duvidosos do medo. Para ambos os lados, um consenso total reinou sobre Palestina, Irã, Afeganistão (onde as forças francesas estão lutando), Líbano (idem), África (repleta de "administradores" militares franceses). A discussão pública de alternativas sobre essas questões não estava na agenda de nenhuma das partes.

O conflito entre o medo primário e o "medo do medo" foi resolvido em favor do primeiro. Havia um reflexo visceral em jogo aqui, muito aparente nos rostos daqueles que festejavam pela vitória de Sarkozy. Para aqueles sob o domínio do "medo do medo", havia um reflexo negativo correspondente, recuando diante do resultado: esse foi o terceiro componente da desorientação depressiva de 2007. Não devemos subestimar o papel do que Althusser chamou de "aparelho ideológico do estado" — cada vez mais por meio da mídia, com a imprensa agora desempenhando um papel mais sofisticado do que a TV e o rádio — na formulação e mobilização de tais sentimentos coletivos. Dentro do processo eleitoral, parece ter havido um enfraquecimento do real; um processo ainda mais avançado em relação ao "medo do medo" secundário do que com o primitivo e reacionário. Afinal, reagimos a uma situação real, enquanto o "medo do medo" apenas se assusta com a escala dessa reação e, portanto, está ainda mais distante da realidade. A vacuidade dessa posição se manifestou perfeitamente nas exaltações vazias de Ségolène Royal.

Eleitoralismo e o estado

Se postularmos uma definição de política como "ação coletiva, organizada por certos princípios, que visa desdobrar as consequências de uma nova possibilidade que é atualmente reprimida pela ordem dominante", então teríamos que concluir que o mecanismo eleitoral é um procedimento essencialmente apolítico. Isso pode ser visto no abismo entre o imperativo formal massivo de votar e a natureza livre, se não inexistente, das convicções políticas ou ideológicas. É bom votar, dar uma forma aos meus medos; mas é difícil acreditar que o que estou votando seja uma coisa boa em si. Isso não quer dizer que o sistema eleitoral-democrático seja repressivo por si só; em vez disso, que o processo eleitoral é incorporado a uma forma de estado, a do capitalo-parlamentarismo, apropriada para a manutenção da ordem estabelecida e, consequentemente, serve a uma função conservadora. Isso cria um sentimento adicional de impotência: se os cidadãos comuns não têm controle sobre a tomada de decisões do estado, exceto o voto, é difícil ver que caminho a seguir poderia haver para uma política emancipatória.

Se o mecanismo eleitoral não é um procedimento político, mas estatal, o que ele alcança? Com ​​base nas lições de 2007, um efeito é incorporar tanto o medo quanto o "medo do medo" no estado — investir o estado com esses elementos subjetivos de massa, para melhor legitimá-lo como um objeto de medo por si só, equipado para terror e coerção. Pois o horizonte mundial da democracia é cada vez mais definido pela guerra. O Ocidente está engajado em um número crescente de frentes: a manutenção da ordem existente com suas disparidades gigantescas tem um componente militar irredutível; a dualidade dos mundos de ricos e pobres só pode ser sustentada pela força. Isso cria uma dialética particular de guerra e medo. Nossos governos explicam que estão travando guerra no exterior para nos proteger dela em casa. Se as tropas ocidentais não caçarem os terroristas no Afeganistão ou na Chechênia, elas virão para cá para organizar os párias da ralé ressentido.

Neo-Pétainismo estratégico

Na França, essa aliança de medo e guerra classicamente recebeu o nome de Pétainismo. A ideologia de massa do Pétainismo — responsável por seu sucesso generalizado entre 1940 e 1944 — repousava em parte no medo gerado pela Primeira Guerra Mundial: o Marechal Pétain protegeria a França dos efeitos desastrosos da Segunda, mantendo-se bem longe dela. Nas próprias palavras do Marechal, era necessário ter mais medo da guerra do que da derrota. A grande maioria dos franceses aceitou a relativa tranquilidade de uma derrota consensual e a maioria saiu bem durante a Guerra, em comparação com os russos ou mesmo os ingleses. O projeto análogo hoje é baseado na crença de que os franceses precisam simplesmente aceitar as leis do modelo mundial liderado pelos EUA e tudo ficará bem: a França será protegida dos efeitos desastrosos da guerra e da disparidade global. Essa forma de neo-Pétainismo como uma ideologia de massa é efetivamente oferecida por ambas as partes hoje. No que se segue, argumentarei que é um elemento analítico fundamental para entender a desorientação que atende pelo nome de "Sarkozy"; para compreender o último em sua dimensão geral, sua historicidade e inteligibilidade, requer que voltemos ao que chamarei de seu "transcendental" pétainista.footnote2

Não estou dizendo, é claro, que as circunstâncias de hoje se assemelham à derrota de 1940, ou que Sarkozy se assemelha a Pétain. O ponto é mais formal: que as raízes histórico-nacionais inconscientes daquilo que atende pelo nome de Sarkozy devem ser encontradas nessa configuração pétainista, na qual a desorientação em si é solenemente encenada do topo do estado e apresentada como um ponto de virada histórico. Essa matriz tem sido um padrão recorrente na história francesa. Ela remonta à Restauração de 1815, quando um governo pós-revolucionário, avidamente apoiado por emigrantes e oportunistas, foi trazido de volta na bagagem dos estrangeiros e declarou, com o consentimento de uma população exausta, que restauraria a moralidade e a ordem públicas. Em 1940, a derrota militar serviu mais uma vez como contexto para a reversão desorientadora do conteúdo real da ação estatal: o governo de Vichy falava incessantemente da "nação", mas foi instalado pela Ocupação Alemã; os mais corruptos dos oligarcas deveriam tirar o país da crise moral; o próprio Pétain, um general envelhecido a serviço da propriedade, seria a personificação do renascimento nacional.

Numerosos aspectos dessa tradição neopetainista estão em evidência hoje. Tipicamente, capitulação e servilismo são apresentados como invenção e regeneração. Esses eram temas centrais da campanha de Sarkozy: o prefeito de Neuilly transformaria a economia francesa e colocaria o país de volta ao trabalho. O conteúdo real, é claro, é uma política de obediência contínua às demandas das altas finanças, em nome da renovação nacional. Uma segunda característica é a do declínio e da "crise moral", que justifica as medidas repressivas tomadas em nome da regeneração. A moralidade é invocada, como tantas vezes, no lugar da política e contra qualquer mobilização popular. O apelo é feito, em vez disso, às virtudes do trabalho duro, da disciplina, da família: "o mérito deve ser recompensado". Esse típico deslocamento da política pela moralidade foi preparado, a partir dos "novos filósofos" dos anos 1970, por todos que trabalharam para "moralizar" o julgamento histórico. O objetivo é, na realidade, político: sustentar que o declínio nacional não tem nada a ver com os altos servidores do capital, mas é culpa de certos elementos mal-intencionados da população — atualmente, trabalhadores estrangeiros e jovens do banlieue.

Uma terceira característica do neopetainismo é a função paradigmática da experiência estrangeira. O exemplo de correção sempre vem do exterior, de países que há muito superaram suas crises morais. Para Pétain, os exemplos brilhantes foram a Itália de Mussolini, a Alemanha de Hitler e a Espanha de Franco: líderes que colocaram seus países de pé novamente. A estética política é a da imitação: como o demiurgo de Platão, o estado deve moldar a sociedade com os olhos fixos em modelos estrangeiros. Hoje, é claro, os exemplos são a América de Bush e a Grã-Bretanha de Blair.

Uma quarta característica é a noção de que a fonte da crise atual está em um evento passado desastroso. Para o protopetainismo da Restauração de 1815, isso foi, claro, a Revolução e a decapitação do Rei. Para o próprio Pétain, em 1940, foi a Frente Popular, o governo Blum e, acima de tudo, as grandes greves e ocupações de fábricas de 1936. As classes possuidoras preferiram de longe a Ocupação Alemã ao medo que essas desordens provocaram. Para Sarkozy, os males de maio de 68 — quarenta anos atrás — foram constantemente invocados como a causa da atual "crise de valores". O neopetainismo fornece uma leitura simplificada útil da história que vincula um evento negativo, geralmente com uma estrutura popular ou de classe trabalhadora, e um positivo, com uma estrutura militar ou estatal, como uma solução para o primeiro. O arco entre 1968 e 2007 pode, portanto, ser oferecido como uma fonte de legitimidade para o governo Sarkozy, como o ator histórico que finalmente embarcará na correção necessária após o evento danoso inaugural. Finalmente, há o elemento do racismo. Sob Pétain, isso era brutalmente explícito: livrar-se dos judeus. Hoje, é expressado de forma mais insinuante: ‘não somos uma raça inferior’ — a implicação é, ‘diferentemente de outras’; ‘os verdadeiros franceses não precisam duvidar da legitimidade das ações de seu país’ — na Argélia e em outros lugares. À luz desses critérios, podemos, portanto, apontar: a desorientação que atende pelo nome de ‘Sarkozy’ pode ser analisada como a mais recente manifestação do transcendental pétainista.

O espectro

À primeira vista, pode parecer estranho a insistência do novo presidente de que a solução para a crise moral do país, o objetivo de seu processo de "renovação", era "acabar com o Maio de 68, de uma vez por todas". A maioria de nós tinha a impressão de que ele já tinha acabado há muito tempo. O que está assombrando o regime, sob o nome de Maio de 68? Só podemos supor que seja o "espectro do comunismo", em uma de suas últimas manifestações reais. Ele diria (para dar uma prosopopeia sarkoziana): "Nós nos recusamos a ser assombrados por qualquer coisa. Não basta que o comunismo empírico tenha desaparecido. Queremos que todas as formas possíveis dele sejam banidas. Até mesmo a hipótese do comunismo — nome genérico de nossa derrota — deve se tornar inominável."

O que é a hipótese comunista? Em seu sentido genérico, dado em seu Manifesto canônico, "comunista" significa, primeiro, que a lógica de classe — a subordinação fundamental do trabalho a uma classe dominante, o arranjo que persiste desde a Antiguidade — não é inevitável; pode ser superada. A hipótese comunista é que uma organização coletiva diferente é praticável, uma que eliminará a desigualdade de riqueza e até mesmo a divisão do trabalho. A apropriação privada de fortunas massivas e sua transmissão por herança desaparecerão. A existência de um estado coercitivo, separado da sociedade civil, não parecerá mais uma necessidade: um longo processo de reorganização baseado em uma livre associação de produtores o verá definhar.

"Comunismo" como tal denota apenas este conjunto muito geral de representações intelectuais. É o que Kant chamou de Ideia, com uma função reguladora, em vez de um programa. É tolice chamar tais princípios comunistas de utópicos; no sentido em que os defini aqui, são padrões intelectuais, sempre atualizados de uma maneira diferente. Como uma Ideia pura de igualdade, a hipótese comunista sem dúvida existe desde os primórdios do estado. Assim que a ação de massa se opõe à coerção do estado em nome da justiça igualitária, rudimentos ou fragmentos da hipótese começam a aparecer. Revoltas populares — os escravos liderados por Spartacus, os camponeses liderados por Müntzer — podem ser identificados como exemplos práticos dessa "invariante comunista". Com a Revolução Francesa, a hipótese comunista inaugura então a época da modernidade política.

O que resta é determinar o ponto em que agora nos encontramos na história da hipótese comunista. Um afresco do período moderno mostraria duas grandes sequências em seu desenvolvimento, com um intervalo de quarenta anos entre elas. A primeira é a da colocação em prática da hipótese comunista; a segunda, de tentativas preliminares de sua realização. A primeira sequência vai da Revolução Francesa à Comuna de Paris; digamos, 1792 a 1871. Ela vincula o movimento popular de massa à tomada do poder, por meio da derrubada insurrecional da ordem existente; essa revolução abolirá as velhas formas de sociedade e instalará "a comunidade de iguais". No decorrer do século, o movimento popular sem forma, composto por moradores da cidade, artesãos e estudantes, ficou cada vez mais sob a liderança da classe trabalhadora. A sequência culminou na novidade marcante — e na derrota radical — da Comuna de Paris. Pois a Comuna demonstrou tanto a energia extraordinária dessa combinação de movimento popular, liderança da classe trabalhadora e insurreição armada, quanto seus limites: os comunardos não conseguiram estabelecer a revolução em bases nacionais nem defendê-la contra as forças da contrarrevolução apoiadas por estrangeiros.

A segunda sequência da hipótese comunista vai de 1917 a 1976: da Revolução Bolchevique ao fim da Revolução Cultural e à ascensão militante em todo o mundo durante os anos de 1966 a 1975. Ela foi dominada pela questão: como vencer? Como resistir — diferentemente da Comuna de Paris — à reação armada das classes possuidoras; como organizar o novo poder para protegê-lo contra o ataque de seus inimigos? Não era mais uma questão de formular e testar a hipótese comunista, mas de realizá-la: o que o século XIX havia sonhado, o século XX realizaria. A obsessão pela vitória, centrada em questões de organização, encontrou sua principal expressão na "disciplina de ferro" do partido comunista — a construção característica da segunda sequência da hipótese. O partido efetivamente resolveu a questão herdada da primeira sequência: a revolução prevaleceu, seja por meio de insurreição ou guerra popular prolongada, na Rússia, China, Tchecoslováquia, Coreia, Vietnã, Cuba, e conseguiu estabelecer uma nova ordem.

Mas a segunda sequência, por sua vez, criou um problema adicional, que não conseguiu resolver usando os métodos que havia desenvolvido em resposta aos problemas da primeira. O partido tinha sido uma ferramenta apropriada para a derrubada de regimes reacionários enfraquecidos, mas provou ser mal adaptado para a construção da "ditadura do proletariado" no sentido que Marx pretendia — isto é, um estado temporário, organizando a transição para o não-estado: seu "definhamento" dialético. Em vez disso, o partido-estado se desenvolveu em uma nova forma de autoritarismo. Alguns desses regimes fizeram avanços reais na educação, saúde pública, valorização do trabalho e assim por diante; e eles forneceram uma restrição internacional à arrogância das potências imperialistas. No entanto, o princípio estatista em si provou ser corrupto e, a longo prazo, ineficaz. A coerção policial não conseguiu salvar o estado "socialista" da inércia burocrática interna; e em cinquenta anos ficou claro que ele nunca prevaleceria na competição feroz imposta por seus adversários capitalistas. As últimas grandes convulsões da segunda sequência — a Revolução Cultural e Maio de 68, em seu sentido mais amplo — podem ser entendidas como tentativas de lidar com a inadequação do partido.

Interlúdios

Entre o fim da primeira sequência e o início da segunda, houve um intervalo de quarenta anos durante o qual a hipótese comunista foi declarada insustentável: as décadas de 1871 a 1914 viram o imperialismo triunfar em todo o mundo. Desde que a segunda sequência chegou ao fim na década de 1970, estamos em outro intervalo, com o adversário em ascensão mais uma vez. O que está em jogo nessas circunstâncias é a eventual abertura de uma nova sequência da hipótese comunista. Mas está claro que isso não será — não pode ser — a continuação da segunda. O marxismo, o movimento dos trabalhadores, a democracia de massa, o leninismo, o partido do proletariado, o estado socialista — todas as invenções do século XX — não são mais realmente úteis para nós. No nível teórico, eles certamente merecem mais estudo e consideração; mas no nível da política prática eles se tornaram impraticáveis. A segunda sequência acabou e é inútil tentar restaurá-la.

Neste ponto, durante um intervalo dominado pelo inimigo, quando novos experimentos são firmemente circunscritos, não é possível dizer com certeza qual será o caráter da terceira sequência. Mas a direção geral parece discernível: envolverá uma nova relação entre o movimento político e o nível do ideológico — uma que foi prefigurada na expressão "revolução cultural" ou na noção de maio de 68 de uma "revolução da mente". Ainda reteremos as lições teóricas e históricas que resultaram da primeira sequência, e a centralidade da vitória que resultou da segunda. Mas a solução não será nem o movimento popular sem forma, ou multiforme, inspirado pela inteligência da multidão — como Negri e os alter-globalistas acreditam — nem o partido comunista de massa renovado e democratizado, como alguns dos trotskistas e maoístas esperam. O movimento (do século XIX) e o partido (do século XX) eram modos específicos da hipótese comunista; não é mais possível retornar a eles. Em vez disso, após as experiências negativas dos estados "socialistas" e as lições ambíguas da Revolução Cultural e de Maio de 68, nossa tarefa é trazer a hipótese comunista à existência em outro modo, para ajudá-la a emergir dentro de novas formas de experiência política. É por isso que nosso trabalho é tão complicado, tão experimental. Devemos nos concentrar em suas condições de existência, em vez de apenas melhorar seus métodos. Precisamos reinstalar a hipótese comunista — a proposição de que a subordinação do trabalho à classe dominante não é inevitável — dentro da esfera ideológica.

O que isso pode envolver? Experimentalmente, podemos conceber encontrar um ponto que ficaria fora da temporalidade da ordem dominante e do que Lacan chamou uma vez de "o serviço da riqueza". Qualquer ponto, desde que esteja em oposição formal a tal serviço e ofereça a disciplina de uma verdade universal. Um deles pode ser a declaração: "Há apenas um mundo". O que isso implicaria? O capitalismo contemporâneo se gaba, é claro, de ter criado uma ordem global; seus oponentes também falam de "alter-globalização". Essencialmente, eles propõem uma definição de política como um meio prático de passar do mundo como ele é para o mundo como gostaríamos que fosse. Mas existe um único mundo de sujeitos humanos? O "mundo único" da globalização é apenas um de coisas — objetos para venda — e sinais monetários: o mercado mundial conforme previsto por Marx. A esmagadora maioria da população tem, na melhor das hipóteses, acesso restrito a este mundo. Eles são bloqueados, muitas vezes literalmente.

A queda do Muro de Berlim deveria sinalizar o advento do mundo único de liberdade e democracia. Vinte anos depois, está claro que o muro do mundo simplesmente mudou: em vez de separar o Leste e o Oeste, ele agora divide o rico Norte capitalista do pobre e devastado Sul. Novos muros estão sendo construídos em todo o mundo: entre palestinos e israelenses, entre o México e os Estados Unidos, entre a África e os enclaves espanhóis, entre os prazeres da riqueza e os desejos dos pobres, sejam eles camponeses em aldeias ou moradores urbanos em favelas, banlieues, propriedades, albergues, squats e favelas. O preço do mundo supostamente unificado do capital é a divisão brutal da existência humana em regiões separadas por cães policiais, controles burocráticos, patrulhas navais, arame farpado e expulsões. O ‘problema da imigração’ é, na realidade, o fato de que as condições enfrentadas por trabalhadores de outros países fornecem prova viva de que — em termos humanos — o ‘mundo unificado’ da globalização é uma farsa.

Uma unidade performativa

O problema político, então, tem que ser revertido. Não podemos começar de um acordo analítico sobre a existência do mundo e prosseguir para a ação normativa com relação às suas características. O desacordo não é sobre qualidades, mas sobre a existência. Confrontados com a divisão artificial e assassina do mundo em dois — uma disjunção nomeada pelo próprio termo, "o Ocidente" — devemos afirmar a existência do mundo único desde o início, como axioma e princípio. A frase simples, "há apenas um mundo", não é uma conclusão objetiva. É performativa: estamos decidindo que é assim que é para nós. Fiéis a este ponto, é então uma questão de elucidar as consequências que decorrem desta simples declaração.

Uma primeira consequência é o reconhecimento de que todos pertencem ao mesmo mundo que eu: o trabalhador africano que vejo na cozinha do restaurante, o marroquino que vejo cavando um buraco na estrada, a mulher velada cuidando de crianças em um parque. É aí que invertemos a ideia dominante do mundo unido por objetos e signos, para fazer uma unidade em termos de seres vivos e atuantes, aqui e agora. Essas pessoas, diferentes de mim em termos de linguagem, roupas, religião, comida, educação, existem exatamente como eu; já que existem como eu, posso discutir com elas — e, como com qualquer outra pessoa, podemos concordar e discordar sobre as coisas. Mas com a pré-condição de que elas e eu existamos no mesmo mundo.

Neste ponto, a objeção sobre a diferença cultural será levantada: ‘nosso’ mundo é composto por aqueles que aceitam ‘nossos’ valores — democracia, respeito pelas mulheres, direitos humanos. Aqueles cuja cultura é contrária a isso não são realmente parte do mesmo mundo; se eles querem se juntar a ele, eles têm que compartilhar nossos valores, para ‘integrar-se’. Como Sarkozy disse: ‘Se os estrangeiros querem permanecer na França, eles têm que amar a França; caso contrário, eles devem ir embora.’ Mas colocar condições já é ter abandonado o princípio, ‘há apenas um mundo de homens e mulheres vivos’. Pode-se dizer que precisamos levar em conta as leis de cada país. De fato; mas uma lei não estabelece uma pré-condição para pertencer ao mundo. É simplesmente uma regra provisória que existe em uma região específica do mundo único. E ninguém é solicitado a amar uma lei, simplesmente a obedecê-la. O mundo único de mulheres e homens vivos pode muito bem ter leis; o que ele não pode ter são pré-condições subjetivas ou "culturais" para a existência dentro dele — exigir que você seja como todos os outros. O mundo único é precisamente o lugar onde existe um conjunto ilimitado de diferenças. Filosoficamente, longe de lançar dúvidas sobre a unidade do mundo, essas diferenças são seu princípio de existência.

A questão então surge se algo governa essas diferenças ilimitadas. Pode muito bem haver apenas um mundo, mas isso significa que ser francês, ou um marroquino vivendo na França, ou muçulmano em um país de tradições cristãs, não é nada? Ou deveríamos ver a persistência de tais identidades como um obstáculo? A definição mais simples de "identidade" é a série de características e propriedades pelas quais um indivíduo ou um grupo se reconhece como seu "self". Mas o que é esse "self"? É aquilo que, em todas as propriedades características da identidade, permanece mais ou menos invariável. É possível, então, dizer que uma identidade é o conjunto de propriedades que sustentam uma invariância. Por exemplo, a identidade de um artista é aquela pela qual a invariância de seu estilo pode ser reconhecida; a identidade homossexual é composta de tudo o que está ligado à invariância do possível objeto de desejo; a identidade de uma comunidade estrangeira em um país é aquela pela qual a filiação a essa comunidade pode ser reconhecida: linguagem, gestos, vestimenta, hábitos alimentares, etc.

Definida dessa forma, por invariantes, a identidade está duplamente relacionada à diferença: por um lado, a identidade é aquilo que é diferente do resto; por outro, é aquilo que não se torna diferente, que é invariante. A afirmação da identidade tem mais dois aspectos. A primeira forma é negativa. Consiste em manter desesperadamente que eu não sou o outro. Isso é frequentemente indispensável, diante de demandas autoritárias por integração, por exemplo. O trabalhador marroquino afirmará com força que suas tradições e costumes não são os do europeu pequeno-burguês; ele até reforçará as características de sua identidade religiosa ou costumeira. O segundo envolve o desenvolvimento imanente da identidade dentro de uma nova situação — um pouco como a famosa máxima de Nietzsche, "torne-se o que você é". O trabalhador marroquino não abandona aquilo que constitui sua identidade individual, seja socialmente ou na família; mas ele gradualmente adaptará tudo isso, de forma criativa, ao lugar em que se encontra. Ele inventará, portanto, o que é — um trabalhador marroquino em Paris — não por meio de qualquer ruptura interna, mas por uma expansão de identidade.

As consequências políticas do axioma, "só existe um mundo", trabalharão para consolidar o que é universal nas identidades. Um exemplo — um experimento local — seria uma reunião realizada recentemente em Paris, onde trabalhadores sem documentos e cidadãos franceses se reuniram para exigir a abolição de leis persecutórias, batidas policiais e expulsões; para exigir que trabalhadores estrangeiros sejam reconhecidos simplesmente em termos de sua presença: que ninguém seja ilegal; todas as demandas que são muito naturais para pessoas que estão basicamente na mesma situação existencial — pessoas do mesmo mundo.

Tempo e coragem

"Em tão grande infortúnio, o que resta para você?" A Medeia de Corneille é questionada por sua confidente. "Eu mesma! Eu mesma, eu digo, e é o suficiente", vem a resposta. O que Medeia retém é a coragem de decidir seu próprio destino; e coragem, eu sugeriria, é a principal virtude diante da desorientação de nossos próprios tempos. Lacan também levanta a questão ao discutir a cura analítica para a debilidade depressiva: isso não deveria terminar em grandes discussões dialéticas sobre coragem e justiça, no modelo dos diálogos de Platão? No famoso "Diálogo sobre a Coragem", o General Laches, questionado por Sócrates, responde: "Coragem é quando vejo o inimigo e corro em sua direção para enfrentá-lo em uma luta". Sócrates não está particularmente satisfeito com isso, é claro, e gentilmente repreende o General: "É um bom exemplo de coragem, mas um exemplo não é uma definição". Correndo os mesmos riscos que o General Laches, darei minha definição.

Primeiro, eu manteria o status da coragem como uma virtude — isto é, não uma disposição inata, mas algo que se constrói, e que se constrói, na prática. Coragem, então, é a virtude que se manifesta por meio da resistência no impossível. Não se trata simplesmente de um encontro momentâneo com o impossível: isso seria heroísmo, não coragem. O heroísmo sempre foi representado não como uma virtude, mas como uma postura: como o momento em que alguém se volta para enfrentar o impossível cara a cara. A virtude da coragem se constrói por meio da resistência dentro do impossível; o tempo é sua matéria-prima. O que exige coragem é operar em termos de uma durée diferente daquela imposta pela lei do mundo. O ponto que buscamos deve ser aquele que pode se conectar a outra ordem de tempo. Aqueles presos dentro da temporalidade atribuída a nós pela ordem dominante sempre estarão propensos a exclamar, como tantos capangas do Partido Socialista fizeram, "Doze anos de Chirac, e agora temos que esperar por outra rodada de eleições. Dezessete anos; talvez vinte e dois; uma vida inteira!" Na melhor das hipóteses, eles ficarão deprimidos e desorientados; na pior, ratos.

Em muitos aspectos, estamos mais próximos hoje das questões do século XIX do que da história revolucionária do século XX. Uma grande variedade de fenômenos do século XIX está reaparecendo: vastas zonas de pobreza, desigualdades crescentes, política dissolvida no "serviço da riqueza", o niilismo de grandes setores dos jovens, o servilismo de grande parte da intelectualidade; o experimentalismo apertado e sitiado de alguns grupos buscando maneiras de expressar a hipótese comunista... O que é sem dúvida o motivo pelo qual, como no século XIX, não é a vitória da hipótese que está em jogo hoje, mas as condições de sua existência. Esta é a nossa tarefa, durante o interlúdio reacionário que agora prevalece: por meio da combinação de processos de pensamento — sempre globais ou universais em caráter — e experiência política, sempre local ou singular, mas transmissível, para renovar a existência da hipótese comunista, em nossa consciência e no terreno.

1 Este é um extrato editado de De quoi Sarkozy est-il le nom?, Circonstances, 4, Nouvelles Editions Lignes, Paris 2007; a ser publicado em inglês pela Verso como What Do We Mean When We Say "Sarkozy"? em 2008.
2 Veja meu Logiques des mondes, Paris 2006 para um desenvolvimento completo do conceito de "transcendentais" e sua função, que é governar a ordem de aparecimento de multiplicidades dentro de um mundo.

1 de janeiro de 2008

Vivendo a Tese Onze

Quando menino, sempre imaginei que, quando crescesse, seria tanto um cientista quanto um "vermelho" [comunista]. Ao invés de me deparar com o problema de como conciliar a militância com a academia, minha dificuldade foi para separá-las.

Richard Levins


Volume 59, Issue 08 (January)

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.

—Karl Marx

Tradução / Quando menino, sempre imaginei que, quando crescesse, seria tanto um cientista quanto um "vermelho" [comunista]. Ao invés de me deparar com o problema de como conciliar a militância com a academia, minha dificuldade foi para separá-las.

Antes mesmo de me alfabetizar, meu avô lia para mim "Ciência e História para Meninas e Meninos", de Bad Bishop Brown's.1 Meu avô acreditava que todo trabalhador socialista deveria estar familiarizado, no mínimo, com cosmologia, evolução e história. Nunca separei história, na qual éramos participantes ativos, de ciência – da descoberta de como as coisas são. Minha família já tinha rompido com a religião organizada havia cinco gerações, mas meu pai me fazia estudar a Bíblia todas as sextas: porque era parte importante da cultura que nos rodeava (e importante para muitos), uma narrativa fascinante de como as ideias evoluem em condições mutáveis, e porque todo ateu deveria conhecê-la tão bem quanto os fiéis.

Em meu primeiro dia de escola, minha avó me estimulou a aprender tudo que pudessem me ensinar – mas não acreditar em tudo. Ela era muito consciente da "ciência racial" da Alemanha dos anos 1930 e das justificativas eugenistas e da supremacia masculina, que eram populares em nosso próprio país. Sua atitude vinha de seu conhecimento dos usos da ciência a serviço do poder e do privilégio, e da desconfiança genérica dos trabalhadores em relação à classe dominante. Seu conselho foi formativo para a minha postura na vida acadêmica: conscientemente na, mas não da, universidade

Cresci em um bairro de esquerda do Brooklyn, onde as escolas fechavam no Primeiro de Maio, e só fui conhecer pela primeira vez um eleitor do partido Republicano aos doze anos. Problemas de ciência, política e cultura eram debatidos em grupos no calçadão de Brighton Beach, e temperavam nossas conversas na hora da refeição. O compromisso político era uma certeza: como atuar perante esse compromisso era tema de acalorados debates.

Quando adolescente, quando comecei a me interessar por genética pela minha fascinação com o trabalho do cientista soviético Lysenko. No fim das contas, ele estava totalmente equivocado, especialmente por tentar chegar a conclusões biológicas a partir de princípios filosóficos. Entretanto, sua crítica à genética de seu tempo me conduziu à obra de Waddington, Schmalhausen e outros que ao invés de descartá-lo imediatamente, à moda Guerra Fria, responderam ao seu desafio desenvolvendo uma visão mais profunda da interação organismo-ambiente.

Minha esposa, Rosario Morales, me apresentou a Porto Rico em 1951 e os onze anos que passei ali deram uma perspectiva latino-americanista à minha compreensão de política. As vitórias da esquerda na América do Sul foram uma fonte de otimismo mesmo em tempos sombrios. A vigilância do FBI em Porto Rico me bloqueou dos empregos que procurei, então para ganhar a vida acabei como trabalhador rural em uma fazenda nas montanhas no lado ocidental da ilha.

Quando era estudante da Cornell University School of Agriculture, me ensinaram que o principal problema da agricultura nos Estados Unidos era o descarte dos excedentes das fazendas. Mas como um camponês em uma região pobre de Porto Rico, compreendi o significado da agricultura para a vida das pessoas. Essa experiência me apresentou às realidades da pobreza, e como ela debilita a saúde, reduz a expectativa de vida, limita oportunidades e brutaliza o desenvolvimento pessoal. Também conheci as formas específicas que o sexismo assume nas áreas rurais pobres. Combinei o trabalho de organização sindical nas plantações de café com o estudo. Rosario e eu escrevemos o programa agrário do Partido Comunista de Porto Rico, no qual aliamos análises econômicas e sociais amadorísticas com as primeiras intuições sobre os métodos de produção agroecológica, de diversificação, de conservação ambiental e de organização em cooperativas.

Fui a Cuba pela primeira vez em 1964, para ajudar no desenvolvimento das pesquisas de genética de populações na ilha e ver de perto a Revolução Cubana. Ao longo dos anos, me envolvi na contínua luta cubana pela agricultura ecológica e por uma via ecológica de desenvolvimento econômico que fosse justo, igualitário e sustentável. O pensamento progressista, tão forte na tradição socialista, assumia que os países subdesenvolvidos deveriam alcançar o nível de desenvolvimento dos países em uma única trajetória linear de modernização. Esse pensamento desprezava os críticos da trajetória high-tech do agronegócio industrial taxando-os de “idealistas”, sentimentalistas urbanos nostálgicos de uma idade de ouro rural bucólica que nunca existiu. Mas havia também uma visão alternativa: a de que cada sociedade cria suas próprias formas de se relacionar com a natureza, com seu padrão particular de uso da terra, com sua tecnologia adequada e seus próprios critérios de eficiência. Essa discussão se intensificou em Cuba nos anos 1970, de modo que ao chegar nos anos 1980 o modelo ecológico já havia basicamente ganhado o debate, ainda que sua implementação fosse demorar mais um tempo. O Período Especial, o momento de crise econômica após o colapso da União Soviética, quando materiais de alta tecnologia se tornaram indisponíveis, permitiu com que os ambientalistas por convicção recrutassem os ambientalistas por necessidade. Isso só foi possível porque os ambientalistas por convicção haviam preparado o caminho.

Meu primeiro contato com o materialismo histórico se deu na adolescência, por meio dos trabalhos dos cientistas marxistas britânicos J. B. S. Haldane, J. D. Bernal, Joseph Needham e outros, que depois me levaram a Marx e Engels. Fui imediatamente fascinado pelo materialismo histórico, tanto intelectual quanto esteticamente. Uma visão dialética da natureza e da sociedade tem sido um tema importante da minha pesquisa desde então. Encantei-me com a ênfase dialética na totalidade, na conexão e no contexto, na mudança, na historicidade, na contradição, na irregularidade, na assimetria, e na multiplicidade de níveis dos fenômenos – um revigorante contraponto ao reducionismo dominante tanto à época quanto agora.

Um exemplo: quando Rosario me sugeriu que eu observasse a mosca drosófila na natureza – e não somente em frascos de laboratório -, comecei a trabalhar com a drosófila no bairro onde morávamos em Porto Rico. Minha pergunta era a seguinte: como as espécies de drosófila suportam os gradientes temporais e espaciais em seu meio? Comecei a examinar as muitas maneiras em que diferentes espécies de Drosophila reagiam a desafios ambientais semelhantes. Em um único dia, podia reunir Drosophila nos desertos de Guánica e na floresta tropical de nossa fazenda no topo da serra. Algumas espécies se adaptam fisiologicamente a altas temperaturas em dois ou três dias, com relativamente poucas diferenças genéticas na tolerância ao calor ao longo de um gradiente de 3.000 pés. Outras tinham subpopulações genéticas únicas para cada diferente hábitat. Outras se adaptam a só uma parte dos ambientes, onde permanecem. Uma das espécies do deserto tinha tanta tolerância ao calor que qualquer drosófila da floresta tropical, mas era muito melhor em buscar microhabitats frescos e úmidos e esconder-se neles depois das 8 da manhã. Essas descobertas levaram-me a descrever os conceitos da seleção por cogradiente, na qual o impacto direto do ambiente aumenta as diferenças genéticas entre as populações, e da seleção por contragradiente, em que as diferenças genéticas compensam o impacto direto do ambiente. Uma vez que em meu recorte a alta temperatura estava ligada a condições secas, a seleção natural atuava aumentando o tamanho das moscas em Guánica, enquanto o efeito da temperatura em seu desenvolvimento as deixava menores. A conclusão é que as moscas do deserto do nível do mar e as da floresta tropical tinham mais ou menos o mesmo tamanho em seus próprios habitats, mas as moscas de Guánica eram maiores quando cresciam à mesma temperatura que as do bosque tropical.

Neste trabalho, questionei o viés reducionista dominante na biologia ressaltando que os fenômenos ocorrem em diferentes níveis, cada um com suas próprias leis, mas conectados. Meu enfoque foi dialético: a interação nas adaptações nos níveis fisiológico, comportamental e genético. Minha preferência por processo, variabilidade e mudança orientou minha tese.

O problema era como as espécies podem se adaptar ao ambiente quando o ambiente não é sempre o mesmo. Quando comecei a trabalhar na tese, fiquei intrigado com a fácil suposição de que, frente a demandas conflitantes, por exemplo quando o ambiente favorece um tamanho pequeno em parte do tempo e um tamanho grande o resto do tempo, um organismo teria que adotar um estado intermediário como uma forma de compromisso. No entanto, esta é uma aplicação acrítica do lugar-comum liberal de que quando há visões opostas a verdade deve ficar em algum lugar no meio do caminho. Na minha pesquisa, o estudo dos padrões de adaptação foi uma tentativa de analisar quando uma posição intermediária é realmente a ideal e quando é a pior escolha possível. Em resumo, o que observei foi que quando as alternativas não são muito diferentes, uma posição intermediária é seguramente a ideal, mas quando elas são muito diferentes em comparação com a amplitude de tolerância da espécie, então é preferível um extremo ou, em alguns casos, uma mistura de extremos.

Trabalhos sobre seleção natural em genética de populações costumam quase sempre supor um ambiente constante, mas o que me interessava era sua mutabilidade. Propus que a “variação ambiental” deve ser uma resposta a muitas questões de ecologia evolutiva e que os organismos se adaptam não só a características ambientais específicas, tais como alta temperatura ou alcalinidade do solo, mas também ao padrão do ambiente: sua variabilidade, sua incerteza, suas discrepâncias, as correlações entre diferentes aspectos do ambiente. Além disso, esses padrões do meio não são simplesmente dados, exteriores ao organismo: os organismos selecionam, transformam e definem seus próprios ambientes.

Independentemente do objeto de uma investigação (ecologia evolutiva, agricultura ou, mais recentemente, saúde pública), meu principal interesse sempre foi o de compreender a dinâmica de sistemas complexos. Além disso, meu compromisso político exige que eu questione a relevância do meu trabalho. Em um poema Brecht diz: “Realmente vivemos em uma época terrível… quando falar de árvores é quase um crime, porque é uma maneira de se calar sobre a injustiça”. Brecht, evidentemente, estava errado em relação às árvores: hoje em dia quando falamos de árvores não estamos ignorando a injustiça. Mas em uma coisa ele estava mesmo certo: a pesquisa acadêmica que é indiferente ao sofrimento humano é imoral.

Pobreza e opressão roubam anos de vida e saúde, encurtam os horizontes e podam talentos potenciais antes que eles possam florescer. Meu compromisso com as lutas dos pobres e oprimidos e meu interesse pela variabilidade se combinaram para focar minha atenção às vulnerabilidades sociais e fisiológicas das pessoas.

Tenho estudado a capacidade do corpo de se recuperar depois de sofrer de desnutrição, contaminação, insegurança ou acesso inadequado a serviços de saúde. O estresse continuado debilita os mecanismos estabilizadores dos corpos das populações oprimidas tornando-as mais vulneráveis a qualquer coisa, mesmo a pequenas diferenças em seus ambientes. Isto se mostra na maior variabilidade em pressão arterial, índice de massa corporal e expectativa de vida, quando se compara com resultados mais uniformes em populações privilegiadas.

Ao examinar os efeitos da pobreza, não basta analisar a predominância de doenças específicas em diferentes populações. Ao passo que certos patógenos ou contaminantes podem desencadear doenças específicas, as condições sociais criam uma vulnerabilidade mais difusa, que conectam doenças sem relação clínica. Por exemplo: desnutrição, infecção ou poluição podem romper as barreiras de proteção do intestino. Uma vez rompidas, por qualquer dessas razões, o intestino se torna um locus de invasão de contaminantes, micróbios ou alergênicos. Portanto, os problemas de nutrição, as doenças infecciosas, o estresse e substâncias tóxicas causam uma grande variedade de doenças aparentemente sem relação.

A noção dominante desde os anos 60 era que as doenças infecciosas desapareceriam com o desenvolvimento econômico. Na década de 90, contribuí para a criação em Harvard do Grupo para Doenças Novas e Reincidentes, que rejeitava essa ideia. Nosso argumento era em grande medida ecológico: a rápida adaptação de vetores a habitats variáveis, em transformação – de desmatamento, projetos de irrigação e deslocamento de populações, a guerras e fome. Também nos concentramos na igualmente rápida adaptação dos patógenos a pesticidas e antibióticos. Mas também criticamos o isolamento físico, institucional e intelectual da pesquisa médica em relação à patologia da flora e aos estudos veterinários, que poderiam ter mostrado mais rápido o padrão amplo de recrudescimento não só da malária, cólera e AIDS, mas também da febre suína africana, da leucemia felina, do vírus da “tristeza dos citros” e do vírus do mosaico do fumo. Devemos esperar por mudanças epidemiológicas com o crescimento das disparidades econômicas e com as mudanças no uso da terra, no desenvolvimento econômico, no assentamento humano e na demografia. A fé na eficácia dos antibióticos, vacinas e pesticidas contra os patógenos das plantas, dos animais e humanos é ingênua à luz da evolução adaptativa. As expectativas desenvolvimentistas de que o crescimento econômico levaria o resto do mundo à abundância e à eliminação das doenças infecciosas estão sendo desmentidas pelos fatos.

O ressurgimento das doenças infecciosas é apenas uma das muitas manifestações de uma crise mais geral: a síndrome de aflição ecossocial, uma crise (abrangente e multi nível) das relações disfuncionais no interior da nossa espécie e entre nossa espécie e o resto natureza. Essa crise integra em uma rede de ações e reações padrões de doenças, relações de produção e reprodução, demografia, o esgotamento e destruição temerária dos recursos naturais, a mudança no uso da terra e no assentamento humano, e a mudança climática global. É uma crise mais profunda do que as anteriores, chegando mais alto na atmosfera e mais profundamente na terra, mais disseminada no espaço e mais duradoura tempo, e penetrando em mais dimensões de nossas vidas. É a um só tempo uma crise geral da espécie humana e uma crise específica do capitalismo mundial. Por isso mesmo, é a preocupação número um tanto de minha investigação científica como de minha ação política.

A complexidade dessa síndrome mundial pode ser paralisante. Ainda assim, esquivar-se da complexidade fragmentando o sistema para tratar os problemas individualmente pode ser desastroso. Os grandes fracassos da tecnologia científica decorrem de uma visão reducionista dos problemas. Os cientistas agrícolas que propuseram a Revolução Verde sem levar em conta a evolução das pragas e a ecologia dos insetos, esperando, portanto, que os pesticidas fossem controlar as pragas, se surpreenderam que a pulverização de agrotóxicos levou ao aumento do problema das pragas. De forma semelhante, os antibióticos criam novos patógenos, o desenvolvimento econômico produz fome, e o controle de inundações gera inundações. Todos os problemas precisam ser resolvidos em sua rica complexidade. O estudo da complexidade torna-se também um problema prático urgente (não apenas teórico).

Esses são os interesses que informam meu trabalho político: dentro da esquerda, a minha tarefa tem sido argumentar que nossas relações com o resto da natureza não podem ser separadas da luta global pela libertação humana; e no movimento ambiental a minha tarefa tem sido questionar e desafiar o idealismo da “harmonia natural” da primeira fase do ambientalismo e insistir na necessidade de identificar as relações sociais que conduzem à disfuncionalidade atual. Ao mesmo tempo, minha política determinou minha ética científica. Acredito que estão erradas todas as teorias que promovam, justifiquem ou tolerem a injustiça.

Uma crítica, pela esquerda, da estrutura da vida intelectual é um contrapeso à cultura das universidades e fundações. O movimento antiguerra dos anos 1960 e 1970 levantou questões como a natureza da universidade como um órgão de dominação de classe e fez da própria comunidade intelectual um objeto de interesse tanto teórico quanto prático. Eu mesmo me uni à Science for the People (Ciência para o Povo), uma organização que começou em 1967 com uma greve de pesquisadores no MIT (Massachusetts Institute of Technology), como protesto contra a pesquisa militar no campus. Como membro, ajudei no questionamento à Revolução Verde e ao determinismo genético. A militância antiguerra também me levou ao Vietnã para investigar os crimes de guerra (especialmente o uso de desfolhantes) e a partir disso a organizar o Science for Vietnam (Ciência para o Vietnã). Denunciamos o uso do Agente Laranja (desfolhante usado na selva do Vietnã) que estava causando defeitos congênitos em camponeses vietnamitas. O agente de laranja era uma das mais cruéis formas de utilização de herbicidas químicos.

O movimento de independência de Porto Rico criou em mim uma consciência antiimperialista que me serviu bem em uma universidade que promove a “reforma estrutural” e outros eufemismos para imperialismo. O contundente feminismo classista de minha esposa é uma fonte constante de crítica ao elitismo e sexismo disseminados. O trabalho frequente com Cuba me mostra em cores vivas que há uma alternativa a uma sociedade competitiva, individualista e exploradora.

As organizações comunitárias, especialmente em comunidades marginalizadas, e o movimento de saúde das mulheres levantam questões que o mundo acadêmico prefere ignorar: as mães de Woburn percebendo que muitos de seus filhos do mesmo bairro tinham leucemia, as centenas de grupos de justiça ambiental que perceberam que o despejo de produtos tóxicos se concentravam em bairros negros e latinos, o Women’s Community Cancer Project e outros que insistem sobre as causas ambientais do câncer e outras doenças, enquanto os laboratórios universitários ficam à procura de “genes culpados”. Essas iniciativas me ajudaram a manter uma agenda alternativa para a teoria e a ação.

Dentro da universidade, tenho uma relação contraditória com a instituição e com os colegas, uma combinação de cooperação e conflito. Podemos compartilhar uma preocupação com as desigualdades na saúde e a pobreza persistente, mas divergimos quanto ao financiamento privado da pesquisa sobre patentes de moléculas e a respeito agências governamentais, como a AID (Agência para o Desenvolvimento Internacional), que promovem os objetivos do império.2

Nunca aspirei ao que se convencionou chamar de uma “carreira de sucesso” na academia. Não busco reconhecimento pessoal no sistema formal de premiação da comunidade científica e tento não compartilhar das expectativas comuns de minha comunidade profissional. Isso me dá uma ampla liberdade de escolha. Assim, quando recusei o convite para ser membro da National Academy of Science (Academia Nacional de Ciência) e recebi muitas cartas de apoio elogiando minha coragem, ou considerando-a uma decisão difícil, pude dizer francamente que não foi uma decisão difícil, mas apenas uma escolha política tomada coletivamente pelo grupo Ciência para o Povo de Chicago. Avaliamos que era mais útil posicionar-se publicamente contra a colaboração da Academia na Guerra do Vietnam do que unir-se à Academia e tentar influenciar suas ações a partir de dentro. Richard Lewontin já havia tentado, sem sucesso, esse caminho, e renunciado a sua filiação juntamente com Bruce Wallace.

A maior parte da minha pesquisa coloca os seus objetivos em dois níveis: o problema particular do momento e alguma questão teórica ou controversa fundamental. O estudo da adaptação à temperatura de moscas das frutas também foi um argumento para múltiplos níveis de causalidade. A Teoria do Nicho também foi uma incursão na interpenetração dos opostos (organismo e ambiente). A biogeografia tratava dos múltiplos níveis da dinâmica ecológica e evolutiva. O manejo ecológico das pragas também foi uma demanda por estratégias que levassem em consideração o todo sistêmico. O trabalho sobre doenças infecciosas novas e reincidentes aliava biologia e sociologia. Examinamos por que a comunidade de saúde pública ficou surpresa quando as doenças infecciosas não desapareceram. Foi, portanto, um exercício de autocrítica da ciência.

Sempre apreciei a matemática e vejo como uma de suas principais funções tornar óbvio aquilo que parecia obscuro. Emprego com regularidade uma espécie de matemática de nível médio em formas não convencionais para alcançar compreensão, mais do que uma previsão. Boa parte do trabalho de modelagem atual visa equações precisas que resultem em previsões precisas. Isto faz sentido na engenharia. No campo das políticas públicas, isso faz sentido para os assessores dos poderosos que imaginam ter o controle suficiente do mundo para otimizar ao máximo seus esforços e investimentos de recursos. Mas nós que estamos na oposição não temos tais ilusões. O melhor que podemos fazer é decidir onde pressionar o sistema. Para isso, uma matemática qualitativa é mais útil. Meu trabalho com dígrafos marcados (“análise de circuitos”) é uma dessas abordagens. Ao rejeitar a oposição entre análise qualitativa e quantitativa, e a noção de que o quantitativo é superior ao qualitativo, trabalhei principalmente com as ferramentas matemáticas que auxiliam a conceitualização de fenômenos complexos.

A militância política, é claro, atrai a atenção das agências de repressão. A esse respeito, eu tive sorte, já que experimentei apenas uma repressão relativamente leve. Outros não tiveram tanta sorte: carreiras perdidas, anos de prisão, ataques violentos, assédio contínuo até contra suas famílias, deportações. Alguns, em sua maioria dos movimentos de libertação porto-riquenhos, afro-americanos e nativo-americanos, assim como os cinco antiterroristas cubanos presos na Flórida, ainda são presos políticos.

A exploração mata e fere as pessoas. O racismo e o sexismo destroem a saúde e frustram vidas. Estudar a ganância, brutalidade e presunção do capitalismo tardio é doloroso e enfurecedor. Às vezes tenho que recitar “Ballad of Evil Genius” de Jonathan Swift:

Como o barqueiro do Tâmisa,
Passo remando a insultar.
Como o sábio de eterno riso
Gasto minha raiva em escárnio...
Ouçam-me bem:
Eu os enforcaria, se pudesse.

A pesquisa acadêmica e a militância me deram, em sua maior parte, uma vida agradável e gratificante, trabalhando no que entendo ser intelectualmente estimulante, socialmente útil e com as pessoas que eu amo.

Notas

1 John Montgomery Brown foi um bispo episcopal luterano do Sínodo do Missouri, excomungado quando se tornou marxista. Na década de 1930, ele publicou o periódico trimestral Heresy.
2 A AID realiza programas de saúde e desenvolvimento em países do terceiro mundo estrategicamente escolhidos. Seus programas separados às vezes são úteis e os participantes são motivados por preocupações humanitárias. Mas a agência também é uma organização terrorista, apoiando grupos contrarrevolucionários na Venezuela, Haiti e Cuba. Ela já apoiou o LEAP (Law Enforcement Assistance Program) que ensinou tortura a policiais uruguaios e brasileiros.

*

Como cientistas atuantes, vemos a mercantilização da ciência como a principal causa da alienação da maioria dos cientistas dos produtos de seu trabalho. Ela fica entre os insights poderosos da ciência e os avanços correspondentes no bem-estar humano, frequentemente produzindo resultados que contradizem os propósitos declarados. A continuação da fome no mundo moderno não é o resultado de um problema intratável que frustra nossos melhores esforços para alimentar as pessoas. Em vez disso, a agricultura no mundo capitalista está diretamente preocupada com o lucro e apenas indiretamente com a alimentação das pessoas. Da mesma forma, a organização dos cuidados de saúde é diretamente um empreendimento econômico e é apenas secundariamente influenciada pelas necessidades de saúde das pessoas. As irracionalidades de um mundo cientificamente sofisticado não vêm de falhas de inteligência, mas da persistência do capitalismo, que como um subproduto também aborta a inteligência humana.

—Richard Levins e Richard Lewontin, The Dialectical Biologist (Harvard University Press, 1985), p. 208.

Richard Levins é o chefe do programa de ecologia humana na Harvard School of Public Health e, mais recentemente, coautor, com Richard Lewontin, de Biology Under the Influence: Dialectical Essays on Ecology, Agriculture, and Health (Monthly Review Press, 2007), do qual este ensaio foi extraído. O autor é grato a Rosario Morales por sua assistência na conceituação e edição deste ensaio.

4 de dezembro de 2007

Jesus: Messias ou Bolchevique?

O Cristo dos Evangelhos é de fato um revolucionário – mas de um tipo mais milenarista do que propriamente político.

Terry Eagleton



Era Jesus um revolucionário?

Ele certamente mantinha companhias políticas sombrias. Uma delas, do seu círculo mais íntimo, era conhecido como Simão, o Zelote – sendo zelotes um movimento anti-imperial clandestino, empenhado em dirigir os romanos para fora do território palestino. Os zelotes desejavam um Estado judaico teocrático, mais purificado e tradicionalista; e difundiram uma ideologia não muito diferente da Al-Qaeda de hoje. Para uma audiência regular, os ensinamentos de Jesus podem ter soado como familiar propaganda Zelote. Podemos tomar como óbvio que entre as massas que rodeavam Jesus havia Zelotes e outros dissidentes, comprovando quão “politicamente correto” ele soava.

É, no entanto, pouco provável que Jesus tenha tomado partido da resistência anti-imperial. Por um lado, parece ter apoiado o pagamento de impostos (“A César o que é de César”), enquanto os zelotes não o faziam. Por outro, cruzou sabres com os Fariseus, que eram, de alguma forma e em alguma medida, algo como o que se pode dizer a ala teológica dos zelotes.

Outra razão pela qual Jesus parece não ter sido um zelote é que seus discípulos não foram presos após sua execução. Fossem eles rebeldes presumidos e as forças de ocupação imperial, muito provavelmente, teriam se movido para varrê-los do mapa. Pode ser que tenha havido uma pitada de militantes políticos entre seus discípulos, mas as autoridades romanas parecem ter enxergado claramente que o movimento de Jesus não intencionava colocar o Estado abaixo. Não foi por isso que o seu dirigente máximo foi, por fim, crucificado.

Teriam certamente soado o alerta caso Jesus tivesse se proclamado Messias; já que o Messias era visto pela maioria como um militante político disposto a colocar o Estado de Israel de pé novamente. Mas Jesus não se proclamou Messias, exceto em duas ocasiões, ambas as quais historicamente ambíguas. De qualquer forma, a ideia de que um errante carismático e sua comitiva desarmada – grande, porém não massiva – pudesse destruir o Templo, ou derrubar o Estado é absurda, assim como as autoridades judaicas e romanas devem ter reconhecido à época. Havia forças suficientes para parar-lhes os pés: milhares de guardiães templários, para já não dizer nada sobre as guarnições romanas.

Pode ser que a ação violenta de Jesus – na tentativa de varrer do Templo os usurários cambistas, navegando nas adjacências das perigosas águas da Blasfêmia – tenha sido o suficiente para que seus antagonistas o pregassem na Cruz. Pôr para correr cambistas não foi, contudo, um gesto de intenção “anti-capitalista”. Jesus teria posto de pernas para o ar as mesas de cambistas e pequenos vendilhões, e, daí, declarado o lugar como um covil de bandidos; mas o excesso retórico de tais palavras é hoje, sabidamente, um acréscimo póstumo. Ele provavelmente significava não mais do que a destruição do Templo de um modo tão-só meramente simbólico, mais do que expressão de um intempestivo desgosto, para com esse ato de ganância mercantilista.

Ele – mais provavelmente – teria sido condenado por insubordinação e entregue à lei como um perigo à Ordem pública. Pôncio Pilatos provavelmente enviou Jesus à morte como um candidato a Messias mesmo que ele, ou o próprio Jesus, não acreditasse que assim o fosse. O Messias (ou “Christos”, em grego) era considerado pelos judeus como uma figura-guerreira, da alta realeza, ao passo que a satírica entrada de Jesus em Jerusalém, montado este no traseiro de um jumento, pode ser lida como um gesto anti-messiânico por excelência, um satírico tapa na cara ao gosto de todas essas distintas noções do que é soberania militar.

Era Jesus, então, um líder “espiritual” mais do que um dirigente político propriamente dito?

Para Jesus, não poderia haver negociação alguma entre o domínio da justiça – o chamado “Reino de Deus” – e os poderes deste mundo terreno. Neste quesito, ele confrontou seus próximos com absoluta decisão. Não importava se estes fossem a favor ou contra ele, não lhes foi permitido qualquer meio-termo liberal. O que estava em jogo não era uma questão de reformas – de “servir vinho novo em velhas garrafas” –, mas todo um inimaginável novo regime o qual, na visão de Jesus, já estava vindo à tona impetuosamente neste mundo; e do qual ele se considerava tanto prenúncio como encarnação. Neste sentido muito específico, foi um vanguardista revolucionário, e não-reformador social.

Tal qual o socialismo para Marx, o domínio da justiça é tanto imanente no presente quanto um objetivo a ser conquistado no futuro. Mas não pode haver transição suave – do velho para o novo –, à maneira de algum socialismo evolucionário. Dada a urgência, e a severidade, de nossa condição – a que os Evangelhos se referem como o “pecado do mundo” – alcançar uma Ordem social justa envolve passar pela morte, pela condição do nada mais absoluto, pela turbulência irascível e pelo auto-despojamento radical.

Uma razão essencial para que Jesus e seus seguidores esperassem a chegada iminente do Reino dos Céus é que eles não tinham sequer a noção de que a atividade humana poderia jogar qualquer papel de auxílio em sua instauração na Terra. Para os primeiros cristãos, tal reino era, sobretudo, um dom de Deus, e não um ato histórico. Não podia haver espaço para uma tal política teológica na visão dos Evangelhos, razão pela qual Jesus não foi um revolucionário no sentido em que Lenin o fora. Ele não poderia sequer ter sonhado em ser um leninista porque não estava disponível, à época, qualquer concepção de mundo afim à auto-determinação histórica. O único tipo de conceito de história que poderia importar era a Heilsgeschichte ou, trocando em miúdos, algo como História da Salvação ou História Sagrada

O cristianismo, portanto, pode ser considerado uma visão de mundo mais pessimista que o humanismo secular, ao mesmo tempo em que é infinitamente mais otimista. Por um lado, é de um severo realismo em relação à teimosia da persistente condição humana – a perversidade do desejo humano, o prevalecimento da idolatria e/ou da auto-ilusão, o escândalo mesmo do sofrimento, a enfadonha continuidade da opressão e da injustiça, a carência de qualquer virtude pública, a insolência dos poderes, a fragilidade da bondade, e o insaciável apetite, por poder, e por interesses próprios.

Por um outro lado, sustenta que não só a redenção desta desafiante – e terrível – condição é possível mas que, surpreendentemente e, em certo sentido, já aconteceu. Nem mesmo o mais torpe mecanicista dos marxistas poderia proclamar – hoje em dia – que o socialismo é inevitável, e, muito menos, que ele já surgiu, sem que nos tivéssemos dado conta. Para a fé cristã, no entanto, o advento de tal reino é assegurado, uma vez que a vinda de Jesus do mundo dos mortos já o teria fundado. Uma nova polis – uma cidade futura – é possível em base a um corpus transfigurado. E isso é, tradicionalmente, concebido enquanto “ressurreição”.

Então, Jesus foi um revolucionário ou não? Não nos termos que um Lenin ou Trotsky o teriam reconhecido. Mas isso por que era menos revolucionário do que eles foram, ou ainda mais? Certamente menos, por que não defendia a superação da estrutura de poder que se lhe confrontava. Mas assim o fazia, entre outras razões, porque esperava que logo este seria varrido para longe por uma forma de existência mais perfeita em justiça, paz, camaradagem e exuberância de espírito do que até mesmo os camaradas Lenin e Trotsky poderiam ter sequer imaginado. Talvez a resposta desconcertante não seja que Jesus era menos ou mais revolucionário, mas que era tanto mais quanto menos.

Este é um trecho editado da introdução de Terry Eagleton para Os Evangelhos, publicado pela Verso a £ 7,99.

Sobre o autor

Terry Eagleton is a literary critic, writer and chair in English literature in Lancaster University's department of English and creative writing. His latest book is The Event of Literature

15 de novembro de 2007

Califórnia queima

A perda de mais de 90 por cento da zona de amortecimento agrícola do sul da Califórnia é a principal, embora raramente mencionada, razão pela qual os incêndios florestais incineram cada vez mais essas áreas espetaculares de imóveis de luxo. Mas o que nos torna mais vulneráveis ​​é a brusquidão do que é chamado de "interface urbano-selvagem", onde o mercado imobiliário colide com a ecologia do fogo. E castelos sem suas geleiras não são muito defensáveis.

Mike Davis

London Review of Books

Vol. 29 No. 22 · 15 November 2007

Todos os anos, às vezes em setembro, mas geralmente em outubro, pouco antes do Halloween, quando a vegetação selvagem da Califórnia está mais seca e mais combustível, a alta pressão sobre a Grande Bacia e o Planalto do Colorado libera uma avalanche de ar frio em direção à costa do Pacífico. À medida que essa enorme massa de ar desce, ela se aquece por compressão, criando a ilusão de que estamos sendo torrados por explosões de desertos próximos, quando na verdade os ventos do diabo se originam na terra dos Anasazi – o povo misterioso que deixou para trás ruínas tão impressionantes em Mesa Verde e Chaco Canyon.

Há pouco enigma na física dos ventos, embora sua chegada repentina seja sempre perturbadora para novatos e animais de estimação nervosos, bem como para motoristas de caminhão e corredores (às vezes ceifados por folhas de palmeira afiadas como navalhas). Tecnicamente, eles são "föhns", em homenagem aos ventos quentes que fluem do lado de sotavento dos Alpes, mas o termo do sul da Califórnia é "Santa Ana", provavelmente em homenagem irônica ao caudilho singularmente desastroso do século XIX do México. Por alguns dias a cada ano, esses furacões secos destroem nosso mundo ou, se um cigarro ou uma linha de energia caída estiver no caminho, eles o incendeiam.

Eles também oferecem aos jornalistas preguiçosos a oportunidade de recitar aquelas famosas falas de Raymond Chandler e Joan Didion, nas quais os Santa Anas levam os nativos ao homicídio e à febre apocalíptica. Mas assim como não se deve ler Daphne du Maurier para entender o funcionamento da natureza na Cornualha, não se deve ler Chandler para compreender a fenomenologia do clima e da combustão no sul da Califórnia. Uma escolha melhor seria Judy Van der Veer, uma escritora injustamente esquecida que passou a maior parte de sua vida trabalhando em fazendas nas colinas acidentadas perto do vilarejo de Ramona, 35 milhas a nordeste do centro de San Diego. Apesar da propensão incurável da BBC em retratar o sul da Califórnia pelo prisma da celebridade, não foi Malibu, mas Ramona de Van der Veer que foi o epicentro do incêndio de Witch Creek, o maior e mais destrutivo do recente enxame de tempestades de fogo. Como uma das rainhas do gado interpretadas por Barbara Stanwyck, Van der Veer cavalgava na linha e consertava suas próprias cercas e da sela de seu pônei-vaca Delilah ela tinha uma visão mais clara da ecologia do chaparral do que Chandler através de sua garrafa de gim ou Didion através da janela enrolada de seu carro em alta velocidade.

Brown Hills (1938) – o segundo de uma série de romances-memórias cuidadosamente observados – é o diário de uma longa seca semelhante à aridez atual no sul da Califórnia. (Meus filhos gêmeos, como os bezerros no livro de Van der Veer, mal se lembram de como é a chuva.) "Se uma boa fada me perguntasse o que eu desejo, eu sei o que eu diria! Eu não pediria um palácio dourado, ou cavalos árabes, ou um amante bonito. Eu desejaria chuva." Mas em vez de chuva, uma Santa Ana de outubro uiva sobre Black Mountain e destrói seu rancho Ramona:

Eu podia ver rebanhos de poeira sendo levados para o extremo leste do vale e apressados ​​rio abaixo, deixando, por um segundo, a clareza atrás deles. Então outra rajada e o leste foi escondido e mais nuvens amarelas surgiram através do vale. As árvores se curvavam para um lado e para o outro, perdendo mais folhas a cada investida, e galhos eram arrancados. Mais tarde, encontrei braços de eucalipto no curral, seiva vermelha, como sangue, nos lugares cortados... Parecíamos estar observando um grande incêndio cujas chamas eram amarelas em vez de vermelhas, e ele estava consumindo nossa terra enquanto olhávamos desamparados para baixo.

Felizmente, Santa Ana se acalma antes que o interior pouco habitado da década de 1930 pegue fogo; a boa fada finalmente traz chuva; e as encostas marrons ficam verdes com trevos, veados e alfilaree. Mas, como Van der Veer insiste, finais felizes não são inevitáveis: o sul da Califórnia é uma terra de risco e drama natural, onde o ciclo imprevisível das estações é tão cheio de suspense quanto qualquer romance noir. Seus fazendeiros e fazendeiros não tanto povoam a terra, mas aprendem a lidar com seus golpes, desfrutando de luxuosos interlúdios de beleza entre ondas de desastre. Além disso, na época de Van der Veer, o "interior" era realmente isso e um amplo corredor de pomares de abacate e frutas cítricas separava as fazendas de vacas e perus da faixa costeira urbanizada.

Três gerações depois, as vastas florestas cítricas que antes cercavam Los Angeles, assim como cidades como Riverside e Anaheim, foram transformadas em vales da morte de estuque rosa cheios de adolescentes entediados e donas de casa desesperadas. A leste de Los Angeles, no San Gorgonio Pass acima de Palm Springs, onde 4.000 turbinas eólicas gigantes colhem as Santa Anas, novas subdivisões estão sendo construídas ao lado de um chaparral de cinquenta anos de idade, com oito pés de altura e ansioso para queimar. Ao longo dos contrafortes, enquanto isso, McMansões ao ar livre — muitas vezes ameadas em autocaricatura inconsciente — ocupam picos acidentados com vista para o oceano, cercados pelo que os silvicultores chamam sombriamente de "plantios de diesel" de pinheiros moribundos e arbustos velhos.

A perda de mais de 90 por cento da zona de amortecimento agrícola do sul da Califórnia é a principal, embora raramente mencionada, razão pela qual os incêndios florestais incineram cada vez mais essas áreas espetaculares de imóveis de luxo. É verdade que outros ingredientes — secas de La Niña, supressão de incêndios (que patrocina o acúmulo de combustível), infestações de besouros e provavelmente o aquecimento global — contribuem para os infernos anuais que se tornaram tão previsíveis quanto as fogueiras de Guy Fawkes. Mas o que nos torna mais vulneráveis ​​é a brusquidão do que é chamado de "interface urbano-selvagem", onde o mercado imobiliário colide com a ecologia do fogo. E castelos sem suas geleiras não são muito defensáveis.

Em 26 de outubro, sexto dia dos incêndios, vi as ruínas — precariamente empoleiradas em uma encosta selvagem — do que meu amigo Kozy Amemiya descreveu como "uma fortaleza Tokugawa em um filme de Kurosawa". Suas torres gêmeas foram reduzidas a algumas vigas retorcidas erguendo-se como o 11 de setembro de um monte fumegante de cinzas cinzentas, mas o campo de golfe ao lado da entrada da garagem permaneceu assustadoramente imaculado. Kozy e seu marido inglês, Tom Royden, são produtores de abacate em Ramona, os últimos de uma raça em extinção em uma paisagem que se suburbaniza rapidamente. Um de seus dois ranchos fica nas colinas a leste de Ramona, onde os cavalos de Van der Veer pastavam; o outro pomar maior ocupa a encosta de uma montanha cravejada de pedras com vista para o Lago Ramona. Kozy tem um PhD em sociologia, mas a pós-graduação de Tom – da California State Polytechnic em Pomona – é, literalmente, em abacates.

Tom tem sobrancelhas Lloyd George, sempre aparece em shorts cáqui passados ​​e está armado com um conhecimento enciclopédico de irrigação e agricultura tropical. Ele poderia facilmente passar por um desses tipos de plantadores que farreavam em Raffles e administravam vastas propriedades de borracha na Malásia ou cultivavam café e causavam problemas brancos nas colinas de Kikuyu. De fato, seu pai escreveu "merchant adventurer" como sua ocupação em seu passaporte, e sua mãe descendia de gerações de produtores de cereja de Kent. Mas o estereótipo inglês da velha escola é enganoso. Tom passou a maior parte de sua vida profissional aconselhando cooperativas de aldeias na Tanzânia e fazendeiros andinos no Equador. Em um de seus primeiros encontros, ele e Kozy foram ouvir Chalmers Johnson dar uma palestra sobre o declínio do império, e ele orgulhosamente exibe adesivos de para-choque "Stop Blackwater!" em todos os seus caminhões (os mercenários querem construir um centro de treinamento no interior de San Diego).

Kozy e Tom também são evangelistas eloquentes sobre a necessidade de salvar o que resta de uma barreira de incêndio agrícola no sul da Califórnia. A história de incêndios deles é instrutiva. Em 2003, o incêndio de Cedar (que matou 15 pessoas e destruiu 2.200 casas) passou ao sul do pomar maior; dessa vez, chamas de 50 pés de altura atacaram a montanha duas vezes, queimando dezenas de casas isoladas, antes de retomar sua marcha em direção ao Pacífico. Ambas as fazendas foram salvas mais uma vez — ou assim parecia. Então, no meio da evacuação de Del Mar e Encinitas ao norte de La Jolla, o Santa Ana parou de uivar de repente; foi substituído por uma forte brisa do mar que virou o fogo, salvando as praias, mas condenando os abacates em Ramona.

Ainda assim, como Tom aponta, suas árvores fizeram uma "luta sangrenta e dura", fornecendo um firewall que salvou várias das grandes casas de seus vizinhos. ‘Exceto em uma conflagração extrema, o fogo só penetrará cerca de 10 ou 15 metros nos pomares quando o solo estiver limpo e bem irrigado.’ Ele pega um canivete e raspa a casca carbonizada: a polpa ainda está verde. ‘A maioria das árvores queimadas ainda está viva, embora não dêem frutos novamente por vários anos.’ Quando eu expresso surpresa, ele ri. ‘Você deveria ver laranjas. Elas são quase tão resistentes ao fogo quanto o carvalho vivo.’ (Nossos carvalhos nativos, na verdade, têm uma necessidade erótica de um fogo ocasional para ajudar sua reprodução.) A robustez robusta das árvores é reconfortante, mas também há más notícias. Quando dirigimos pelas trilhas de terra (ocasionalmente tendo que usar facões para cortar barricadas de árvores derrubadas pelo vento), deixamos para trás um rastro profundo e mole de guacamole. O fogo e o vento arrancaram várias centenas de milhares de frutas das árvores, e Tom estima que perdeu 70 por cento de sua colheita.

O incêndio de Witch Creek também destruiu grande parte da infraestrutura de irrigação em todo o vale de Ramona, derretendo tubulações de plástico e alumínio e derrubando os grandes geradores que bombeiam água sobre as montanhas do Rio Colorado a duzentas milhas de distância. As autoridades de água estão apreensivas com a contaminação tóxica e poços contaminados. Na estrada para Ramona, um outdoor eletrônico exibe um aviso urgente: "não use a água".

Kozy ouviu dizer que, no geral, 50% da safra de abacate de San Diego foi perdida, apenas três semanas antes da colheita, e o futuro da horticultura local parece mais sombrio do que nunca. Os altos preços da terra e a água cada vez mais cara conspiraram para espremer seus lucros, juntamente com a ignorância suburbana da vida na fazenda (os recém-chegados reclamam com o xerife se ouvem o motor de um trator antes das 7 da manhã); e o poder de monopólio das redes de supermercados forçou os produtores a substituir os abacates Hass de casca de jacaré e facilmente refrigerados pelos Fuertes de casca fina e sabor anis que os conhecedores preferem. Como se isso não bastasse, as abelhas da Califórnia, que são necessárias para polinizar as flores de abacate, estão morrendo em massa de uma doença misteriosa.

Agora, eu sei tão pouco sobre as delicadas manobras da polinização do abacate quanto sobre a mecânica de colocar garanhões para procriar. Mas eu me importo profundamente com abacates. Na década de 1930, minha irmã mais velha galopou seu pônei indiano pelo "ranchito" de abacate dos meus pais em Bostonia, dez milhas ao sul de Ramona, e a pequena casa que meu pai construiu com suas paredes de pinho nodoso sobreviveu a todos os incêndios. Fora isso, pouco da minha Bostonia de infância permanece. A loja de artigos gerais da família Barker da década de 1880, as valas de irrigação, o salão de dança country-western, o posto de gasolina que vendia cigarros para crianças de 12 anos, a loja de ferragens dos Fryes, os limões e as romãs: tudo desapareceu em um turbilhão de "crescimento". O que resta são casas antigas, oficinas mecânicas, vício intratável em metanfetamina e longas filas de lanternas traseiras indo em direção aos novos e corajosos subúrbios de Lakeside e Ramona.

Kozy acha que minha nostalgia é puro derrotismo e tenta me animar. "Você sabia que existem alguns Fuertes realmente magníficos ainda dando frutos na Chase Avenue? Eles provavelmente têm um século de idade."

Este não é bem o consolo de que preciso. Os abacates sempre foram o ícone do interior de San Diego (que produz grande parte da colheita dos EUA) e se os produtores restantes forem forçados a vender, o passado se tornará tão inacessível quanto o futuro será combustível. Posso facilmente visualizar o apocalipse iminente: mais casas de campo sobre os túmulos de árvores, o Teatro Ramona art déco demolido para um Home Depot, o Turkey Inn transformado em um Starbucks, um Cineplex onde costumava ser a casa de Judy Van der Veer. Suponho que a visão realista é que nosso problema de incêndio será resolvido queimando todo o combustível e depois pavimentando as cinzas. No sul da Califórnia, o fogo catastrófico só fertiliza mais expansão urbana.

Faço a grande pergunta a Tom. "Você realmente consegue fazer esse rancho funcionar novamente, ou algum construtor residencial fará uma oferta que você não pode recusar?"

Tom franze as sobrancelhas por um momento, depois sorri. "Você conhece a etimologia da palavra 'abacate'?"

"Aguacate em espanhol", murmuro.

"Sim, mas o original em náuatle é ahuacatl – bolas."

18 de outubro de 2007

É o petróleo

As forças americanas no Iraque estão instaladas em cima de um quarto das reservas mundiais.

Jim Holt

London Review of Books

Vol. 29 No. 20 · 18 October 2007

Tradução / A guerra do Iraque "não tem como ser ganha", é um "atoleiro", um "fiasco": eis a visão consagrada. Mas há bons motivos para achar que, da perspectiva de George W. Bush e Dick Cheney, ela não é nada disso. Na verdade, os Estados Unidos podem estar encalacrados exatamente onde Bush & Cia. queriam, e por isso não existe uma estratégia de retirada.

O Iraque tem reservas conhecidas de 115 bilhões de barris de petróleo, o que é mais do que cinco vezes o total das reservas americanas. Devido ao seu longo isolamento, ele é o menos explorado dos países ricos em petróleo. Meros 2 mil poços foram perfurados em todo o seu território, enquanto, só no Texas, há 1 milhão de poços abertos. O Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos calcula que o Iraque possa ter mais uns 220 bilhões de barris de petróleo a descobrir. Outra avaliação fala em 300 bilhões. Se essas estimativas estiverem próximas da realidade, as forças americanas estão instaladas em cima de um quarto das reservas mundiais de petróleo. O valor do petróleo iraquiano, em grande parte óleo cru leve com baixos custos de produção, seria da ordem de 30 trilhões de dólares, em valores de hoje. Para fins comparativos, o custo total projetado da invasão/ocupação americana está em torno de 1 trilhão de dólares.

Quem vai ficar com o petróleo do Iraque? Uma das "metas" fixadas pelo governo Bush para o governo do Iraque é a aprovação de uma lei regulando a distribuição das receitas do petróleo. O projeto de lei que os Estados Unidos prepararam para o Congresso iraquiano cede praticamente todo o petróleo do país a empresas ocidentais. A Companhia Nacional de Petróleo do Iraque conservaria o controle de dezessete dos oitenta campos de petróleo, deixando o resto - inclusive todo o petróleo ainda por descobrir - sob o controle de empresas estrangeiras, por trinta anos. "As empresas estrangeiras não serão obrigadas a investir os seus lucros na economia iraquiana", escreveu a analista Antonia Juhasz, em março, no The New York Times, depois que o projeto de lei vazou e veio a público. "Elas poderiam até aproveitar a atual 'instabilidade' da economia iraquiana para assinar os contratos agora, num momento em que o governo do Iraque está no seu ponto mais fraco, e depois esperar até dois anos antes de entrar no país." Quando as negociações em torno da lei do petróleo chegaram a um impasse, em setembro, o governo autônomo da província iraquiana do Curdistão simplesmente assinou um acordo à parte com a Hunt Oil Company, sediada em Dallas e comandada por um aliado político do presidente Bush.

Como os Estados Unidos manterão a hegemonia sobre o petróleo iraquiano? Estabelecendo bases militares permanentes no país. Cinco "superbases" auto-suficientes estão em estágios diversos de construção. Todas ficam bem distantes das áreas urbanas, onde a maioria das baixas tem ocorrido. Essas bases têm sido pouco mencionadas na imprensa americana, composta de um número cada vez menor de correspondentes no Iraque, os quais não têm como se deslocar livremente, devido às altas taxas de risco. (Qualquer repórter precisa de muita coragem para deixar a Zona Verde sem escolta militar.) Em fevereiro do ano passado, o repórter Thomas Ricks, do The Washington Post, descreveu uma dessas instalações, a Base Aérea de Balad, a 65 quilômetros ao norte de Bagdá. A Balad é uma fatia (bem fortificada) de subúrbio americano, erguida no meio do deserto, que conta com lanchonetes fast-food, campo de golfe em miniatura, campo de futebol americano, cinema e vários bairros distintos - entre eles a "KBRlândia", nome inspirado na subsidiária da empresa Halliburton responsável pela maior parte das obras de construção da base. Embora poucos dos 20 mil soldados postados na base jamais tenham tido contato com um iraquiano, a sua pista de pouso é uma das mais movimentadas do mundo. "Só ficamos atrás do aeroporto de Heathrow, em Londres", disse a Ricks um comandante da Força Aérea.

Inicialmente, o Departamento de Defesa mostrou-se tímido em relação às bases. "Que eu me lembre, nunca ouvi menção à idéia de uma base permanente no Iraque", disse Donald Rumsfeld, em 2003. Nos últimos meses, porém, o governo Bush começou a falar abertamente em manter tropas no Iraque pelos próximos anos, ou mesmo décadas. Vários visitantes da Casa Branca contaram ao The New York Times que o próprio presidente passou a referir-se ao "modelo coreano". Depois que a Câmara dos Deputados decidiu negar recursos para a construção de "bases permanentes" no Iraque, o termo preferido passou a ser "bases duradouras", como se três ou quatro décadas não fossem na prática uma eternidade.

Os Estados Unidos serão capazes de manter uma presença militar no Iraque por tempo indefinido? Plausivelmente, alegarão que existe motivo para lá permanecerem enquanto o conflito civil continuar fervilhando, ou até ocorrer o extermínio de todos os grupelhos que, por conveniência, se auto-intitulam "Al-Qaeda". A guerra civil diminuirá de intensidade à proporção que os xiitas, os sunitas e os curdos se refugiarem em enclaves separados, reduzindo a superfície da fricção sectária, e à medida que os chefes guerreiros consolidarem sua autoridade local. O resultado será uma partilha do país de facto. Que jamais irá tornar-se uma divisão de jure. (Um Curdistão independente ao norte pode incomodar a Turquia, uma região xiita independente no leste pode converter-se num satélite do Irã, e uma região sunita independente no oeste pode transformar-se em porto seguro para a Al-Qaeda.)

Esse Iraque balcanizado será presidido por um governo federal fraco, em Bagdá, sustentado e supervisionado pela embaixada americana na cidade, um prédio recém-construído nas proporções do Pentágono de Washington - uma zona verde dentro da Zona Verde. Quanto ao número de soldados americanos no Iraque, o secretário da Defesa, Robert Gates, disse ao Congresso que, "na sua cabeça", imaginava uma força de longo prazo constituída de cinco brigadas - um quarto do número atual -, o que, somado ao pessoal de apoio, significaria um mínimo de 35 mil soldados, provavelmente acompanhados do mesmo número de mercenários a serviço da segurança terceirizada. (Pode ser que ele tenha errado por excesso de modéstia, já que cada uma das cinco superbases tem a capacidade de acomodar entre 10 e 20 mil soldados.)

Essas forças podem deixar as suas bases para reprimir escaramuças civis ocasionais, ao custo de um número de baixas cada vez menor. Como disse um membro destacado do governo Bush ao The New York Times, em junho, as bases de longo prazo "são lugares onde podemos pousar e decolar os aviões sem a necessidade de soldados americanos postados a cada esquina". Mas a principal função no dia-a-dia será proteger a infra-estrutura petrolífera.

É essa a "balbúrdia" que Bush e Cheney entregarão ao próximo governo americano. E se esse governo for democrata? Ele desmantelará as bases e retirará todas as forças americanas? Parece improvável, tendo em vista os muitos beneficiários da ocupação prolongada do Iraque e da exploração dos seus recursos petrolíferos. Os três principais candidatos do Partido Democrata - Hillary Clinton, Barack Obama e John Edwards - já garantiram a sua posição futura, recusando-se a prometer que, se eleitos, irão retirar as forças americanas do Iraque antes de 2013, o fim de um primeiro mandato.

Nesse caso, entre os vencedores estão: empresas de serviços petrolíferos como a Halliburton; as próprias grandes companhias de petróleo (os lucros serão inimagináveis e os democratas também podem ser comprados); os eleitores americanos, a quem se poderá garantir a estabilidade dos preços nos postos de gasolina (isso às vezes parece ser a única coisa que conta para eles); a Europa e o Japão, que se beneficiarão do controle ocidental sobre tamanha parte das reservas petrolíferas mundiais; e, estranhamente, Osama bin Laden, que nunca mais precisará se preocupar com a possibilidade de que os sítios sagrados de Meca e Medina venham a ser profanados por tropas americanas, pois a estabilidade da dinastia saudita deixará de ser uma das principais preocupações dos Estados Unidos. Entre os perdedores está a Rússia, que não poderá mais controlar a Europa por meio dos seus recursos energéticos. Outra grande perdedora é a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a OPEP, e especialmente a Arábia Saudita, cujo poder de manter no alto os preços do petróleo, através da imposição de cotas de produção, ficará seriamente comprometido.

Há ainda o caso do Irã, que é mais complicado. A curto prazo, o Irã vem se beneficiando muito com a guerra no Iraque. A coalizão xiita que governa o Iraque é hoje controlada por uma facção favorável a Teerã, e os Estados Unidos acabaram armando, a contragosto, os elementos mais pró-Irã dos militares iraquianos. Quanto ao programa nuclear do Irã, nem ataques aéreos e nem negociações parecem poder detê-lo no momento. Mas o regime iraniano é precário. Mulás impopulares mantêm o poder financiando os serviços de segurança internos e comprando as elites com o dinheiro do petróleo, que representa 70% da renda do governo. Se os preços do petróleo de repente caíssem, por exemplo, a 40 dólares o barril (de um preço atual acima de 80), o regime repressor de Teerã perderia a sua receita contínua. Os Estados Unidos poderiam fazer isso com facilidade, abrindo a torneira do petróleo iraquiano pelo tempo necessário (e, de quebra, talvez conseguissem a queda do venezuelano Hugo Chávez, cujo atrevimento se baseia em petróleo).

Leve-se em consideração, ainda, as relações entre os Estados Unidos e a China. Como conseqüência do déficit comercial, está nas mãos da China cerca de 1 trilhão de dólares da dívida americana em moeda nacional (aí inclusos 400 bilhões de dólares em títulos do Tesouro americano). Isso dá a Pequim um enorme poder de barganha: caso decidisse descarregar grandes parcelas da dívida americana, a China poderia deixar a economia dos Estados Unidos de joelhos. De acordo com cifras oficiais, a economia da China cresce a uma taxa próxima de 10% ao ano. Mesmo que o número real esteja mais próximo de 4 ou 5%, como acreditam alguns, o peso crescente da China representa uma ameaça para os interesses americanos. (Um fato: a China está adquirindo novos submarinos cinco vezes mais rápido que os Estados Unidos.) Em contrapartida, o acesso à energia é a principal limitação ao crescimento da China - que, com os Estados Unidos no controle da maior parte do petróleo do planeta, ficaria em grande parte à mercê de Washington. Assim, a ameaça chinesa seria neutralizada.

Muita gente ainda se diz perplexa com os motivos exatos que teriam levado Bush e Cheney à invasão e ocupação do Iraque. Thomas Powers, um dos mais astutos observadores do mundo da chamada "inteligência", admitiu certo espanto, no artigo "Por que Bush invadiu o Iraque?" [publicado na piauí número 14]. "O mais bizarro", escreveu ele, "é que parece não ter havido uma versão interna, sofisticada e profissional do pensamento que deu forma aos acontecimentos." Alan Greenspan, em suas memórias recém-publicadas, é bem mais claro sobre essa questão. "Fico entristecido", diz ele, "por ser politicamente inconveniente reconhecer o que todo mundo sabe: a guerra no Iraque se deve em grande parte ao petróleo."

Será que a estratégia de invadir o Iraque para assumir o controle de seus recursos petrolíferos foi decidida pela força-tarefa sobre energia, organizada por Dick Cheney, em 2001? Não se pode saber ao certo, uma vez que as deliberações dessa força-tarefa, composta em grande parte por diretores de companhias petrolíferas e de energia, foram mantidas em segredo pelo governo, sob a alegação de "privilégio do Executivo". Não se pode dizer com certeza que o petróleo tenha sido o motivo primordial. Mas a hipótese é bem forte quando se busca explicar o que de fato aconteceu no Iraque. A ocupação pode parecer um serviço horrivelmente malfeito, mas a atitude descuidada do governo Bush em relação à "construção de uma nação" praticamente garantiu que o Iraque venha a se transformar num protetorado americano pelas próximas décadas - uma condição necessária para a extração da sua riqueza petrolífera.

Se os Estados Unidos tivessem conseguido criar um governo forte e democrático, num Iraque efetivamente protegido por uma polícia e um exército próprios, e depois tivessem saído do país, o que impediria esse governo de assumir o controle do seu próprio petróleo, como todos os outros regimes do Oriente Médio? Partindo-se do princípio que a estratégia de Bush e Cheney gira em torno do petróleo, as táticas adotadas - a dissolução do exército, a desmontagem do Partido Baath, um incremento da guerra que acelerou a migração interna - não poderiam ter sido mais eficientes. Os custos - alguns bilhões de dólares por mês e mais algumas dúzias de baixas americanas (um número que deve diminuir e é comparável ao número de motociclistas americanos que morrem devido à revogação das leis sobre o uso do capacete) - são irrisórios, se comparados com 30 trilhões de dólares em reservas de petróleo, a garantia da supremacia geopolítica americana e a gasolina barata para os eleitores. Em termos de realpolitik, a invasão do Iraque não foi um fiasco. É um sucesso retumbante.

Ainda assim, há motivos para ceticismo, em relação ao quadro que descrevi: ele supõe que um plano secreto e altamente ambicioso tenha resultado exatamente da maneira imaginada pelos seus criadores, e isso quase nunca acontece.

Sobre o autor

Jim Holt’s Why Does the World Exist? will be published later this year.

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