2 de novembro de 2014

A herança de 12 anos de governo e hipóteses sobre o futuro próximo

O historiador Lincoln Secco e o sociólogo Demétrio Magnoli avaliam o papel histórico e político do partido que há mais tempo está no poder no país pela via eleitoral. Mesmo diante de um cenário de crise do lulopetismo, a sigla chega a seu quarto mandato consecutivo na Presidência como importante força política.

Lincoln Secco

Demétrio Magnoli

Folha de S.Paulo

A hegemonia incompleta

Lincoln Secco

Ao completar 12 anos no governo, o PT se torna a mais importante força política da história do Brasil. Nenhuma outra terá permanecido tanto tempo no poder pela via eleitoral. E o seu quarto mandato presidencial consolidará ainda mais essa imagem. O partido forjou uma cultura política enraizada num amplo setor da população brasileira, mas sem obter uma verdadeira hegemonia.

Ao contrário, foram seus adversários que pautaram boa parte do debate político ao longo de três mandatos. A experiência dos governos Lula e Dilma forjou o seu contrário com a mesma força que consolidou o PT no poder. É que, por mais que dois partidos (PT e PSDB) protagonizassem as eleições desde 1994, as disputas antes e depois disso foram a favor ou contra o petismo. A força identitária do PT foi tal que o sentimento oposicionista no Brasil não foi organizado por nenhuma prática de militância num partido, e sim por um antipetismo com significativa capilaridade social.

Evidentemente, o partido não é mais o mesmo das greves do ABC paulista, da luta dos sem-terra e do discurso radical. Como partido de governo, a partir de 2003, o petismo se consolidou junto a estratos sociais que pareciam inconquistáveis, mas também moderou o seu discurso e fez alianças antes inimagináveis. Embora seus dirigentes tenham atribuído seus defeitos ao sistema político, o antipetismo ganhou, depois dos escândalos de 2005, um fundamento ideológico novo: ele conseguiu redefinir o PT como "o partido mais corrupto da história".

A reeleição de Lula foi, então, mais radicalizada do que sua primeira vitória. Como agora, a polarização social obrigou o PT a fazer uma inflexão à esquerda no discurso eleitoral. Depois disso, esperava-se que ele rompesse o pacto social rentista que o sustentava e, finalmente, desengavetasse suas propostas de controle social da mídia e de punição dos crimes da ditadura, por exemplo. Não foi isso o que ele fez, embora alguns vissem no segundo mandato de Lula e no próprio governo Dilma uma inclinação "neodesenvolvimentista".

Desde junho de 2013, todavia, o antipetismo se tornou uma força social militante, embora este não fosse o sentido original das manifestações.

A implementação das políticas sociais aproximou espacialmente a classe média tradicional dos mais pobres, e isso conferiu a base material que faltava a uma ideologia. O desconforto saltou da leitura dos jornais para o indivíduo ao lado no banco apertado do avião.

Parece inevitável que o PT tente agora restabelecer pontes com setores que lhe são hostis. Mas isso dependerá do quanto o seu atual modelo ainda pode garantir a continuidade da inclusão social e, ao mesmo tempo, o atendimento das demandas de junho.

É na melhoria contínua da educação, da saúde e do transporte que já está a base da disputa pela nova classe trabalhadora que, nestas eleições, se dividiu.

Se o PT não fizer isso, vai deixar esse estrato social convencido de que sua ascensão econômica depende muito mais do esforço individual do que de políticas públicas. Mas, se o partido confrontar o capital financeiro para atender realmente a agenda de junho, pode solapar as bases de seu modelo de governo.

Até aqui o PT evitou isso e ficou no canto do ringue, já que lhe roubaram a bandeira da ética sem que lhe sobrasse a do socialismo.

Agora sai das urnas ungido por uma campanha militante, com pequena vantagem de votos e a promessa de "mais mudanças".


A era da restauração

Demétrio Magnoli

Quase 38 milhões de brasileiros, 19% da população total, nasceram depois que Lula subiu a rampa do Planalto, em 2003. O mais extenso período de poder de um partido na história da democracia no país não é, contudo, um fenômeno desviante.

O ciclo da "globalização chinesa", marcado pela inflação de preços das commodities e por uma explosão dos fluxos de investimentos estrangeiros, impulsionou as economias dos países emergentes, propiciando a estabilização de sistemas de poder como os de Vladimir Putin (Rússia), de Recep Erdogan (Turquia), do kirchnerismo (Argentina) e do chavismo (Venezuela). A "era do lulopetismo" inscreve-se nessa moldura internacional.

Atribui-se a Golbery do Couto e Silva, o "mago" esclarecido da ditadura militar, a profecia de que Lula seria o coveiro da esquerda brasileira. O PT difundiu sua influência como "partido da mudança", mas converteu-se em "partido da ordem" às vésperas da conquista do Palácio do Planalto, por meio da "Carta aos Brasileiros".

Nos seus 12 anos de governo, desceu mais um degrau, congraçando-se com as máfias políticas tradicionais e tornando-se o "partido da velha ordem". O mapa eleitoral sinaliza a transformação regressiva -e o encerramento de uma era. Dilma 2 está fadado a ser um governo de crise: a tensa dissolução do pouco que resta das expectativas exageradas que se depositaram no lulopetismo.

Lulismo não é igual a petismo. Na planície, Lula usava o registro do PT: os trabalhadores. No Planalto, substituiu o registro de classe pelo do populismo: o povo pobre. A troca do substantivo anunciava uma renúncia. No lugar de reformas sociais, políticas de redução da pobreza inspiradas na cartilha do Banco Mundial. A expansão dos programas de transferência direta de renda criados por Fernando Henrique Cardoso produziu efeitos sociais positivos e enraizou o sistema de poder do lulopetismo na base da pirâmide eleitoral. Em contrapartida, esvaziou o discurso de esquerda. Golbery tinha razão.

O PT nasceu no rastro da crítica de esquerda à herança varguista. O lulismo triunfante reapropriou-se da imagem de Vargas, engajando-se na modernização do varguismo. Uma atualização da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) incluiu as centrais sindicais no edifício do sindicalismo oficial. Atrelados ao PT, os movimentos sociais passaram a receber financiamento estatal. Sob o rótulo da "democracia participativa", por meio de uma estrutura de "conselhos populares" esculpida no Planalto, projeta-se no horizonte a sombra de um neocorporativismo. O lulopetismo patrocina a conciliação entre as velhas oligarquias políticas e uma nova elite dirigente.

Lula 1 persistiu no modelo macroeconômico implantado por FHC. Lula 2 investiu na ruptura, articulada pelo vácuo aberto com a crise financeira global: a "nova matriz econômica". Durante alguns anos, a ala "desenvolvimentista" do PT experimentou as delícias do capitalismo de Estado. Por meio da Petrobras, sedimentou-se a aliança profana da coalizão governista com as grandes empreiteiras. O BNDES ganhou de Eike Batista a alcunha de "melhor banco de investimentos do mundo". No apogeu do lulopetismo, a bolha de crédito e consumo assegurou a eleição de uma sucessora cinzenta.

A "nova matriz" esgotou-se no lago infectado da recessão e do desequilíbrio macroeconômico. Dilma 2 navegará em águas turvas. Agora, o Brasil testará os compromissos do PT com os princípios e as instituições da democracia.

DEMÉTRIO MAGNOLI, 56, sociólogo e doutor em geografia humana, é colunista da Folha.


LINCOLN SECCO, 45, é historiador, professor na USP e autor de "História do PT" (Ateliê).

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