Leonardo Belinelli
Professor do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Autor de “Os Dilemas do Patrimonialismo Brasileiro: As Interpretações de Raymundo Faoro e Simon Schwartzman” (Alameda)
[RESUMO] Um dos principais intérpretes da formação e do desenvolvimento político do país, Raymundo Faoro completaria cem anos neste domingo (27). Em sua principal obra, "Os Donos do Poder" (1958), expõe a mescla de atraso e autoritarismo decorrente de um "estamento burocrático", grupo que detém o monopólio político e econômico desde o período colonial, o que ajuda a compreender o Brasil de hoje, como a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.
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Como dita um bom costume, efemérides são ocasiões propícias para relembrar, repensar e reposicionar os legados dos homenageados. Raymundo Faoro, caso vivo, celebraria seu centésimo aniversário neste domingo (27 de abril) —e não foge à regra.
A figura do jurista nascido em Vacaria (RS) está indissoluvelmente ligada à sua principal obra, "Os Donos do Poder", cuja primeira edição data de 1958.
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Raymundo Faoro, autor do clássico "Os Donos do Poder", em 1978 - U.Dettmar/Folhapress |
Publicado pela editora Globo e premiado pela Academia Brasileira de Letras (ABL), o ensaio de Faoro é um acerto de contas com duas das principais forças políticas brasileiras daquele contexto: por um lado, mobilizava a sociologia da dominação de Max Weber —e, em particular, o conceito de patrimonialismo— para rebater as teses do Partido Comunista Brasileiro (PCB) sobre um suposto "feudalismo" no país; de outro, sugeria que os governos após a volta da democracia em 1945 não passavam de uma continuidade remota da dominação patrimonial que marcou a nossa colonização e a sociedade que dela surgiu.
Fato é que o livro, apesar das qualidades reconhecidas, só viria a receber a consagração em 1974, com a publicação de sua segunda edição. Substantivamente ampliada, a nova versão de "Os Donos do Poder" ganharia repercussão como uma obra que antecipou os desdobramentos políticos que levaram ao golpe de 1964.
A tese de Faoro, segundo a qual a política brasileira seria dominada por um "estamento burocrático" desde os tempos coloniais, parecia ganhar corpo e vida nos militares e na tecnoburocracia que governava o país.
Também em 1974 ele publicou "Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio", ensaio no qual aproximava o bruxo do Cosme Velho de sua interpretação da história brasileira. Desde então, a obra de Faoro tornou-se capaz de interpelar as ciências sociais brasileiras e —por que não o dizer?— a própria política nacional.
À guisa de exemplo, poderíamos recordar sua influência sobre o debate a respeito da formação do Estado brasileiro, do qual participaram José Murilo de Carvalho, Simon Schwartzman e Fernando Uricoechea.
Outra manifestação da capacidade de o pensamento faoriano pautar a sociologia e a ciência política locais esteve na controvérsia a respeito das formas de modernização de países periféricos, agenda de reflexão que reunia, além dos já citados, intelectuais como Luiz Werneck Vianna, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.
Embora não possuísse títulos universitários para além da sua graduação, o notável saber de Faoro foi reconhecido por instituições acadêmicas, como sinaliza a sua participação, em 1977, na banca de livre-docência de Gabriel Cohn, outro grande expoente da teoria social brasileira, a respeito do pensamento de Max Weber.
Também no plano da prática política, os anos 1970 seriam centrais na trajetória do autor. Em eleição acirrada em 1977, tornou-se presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), posição da qual se valeu no front da luta democrática, em especial pelo restabelecimento dos habeas corpus, da anistia sem restrições e dos processos constituintes autênticos.
Ao mesmo tempo, tornou-se interlocutor privilegiado de Petrônio Portella, presidente do Senado Federal entre 1977 e 1978 e encarregado por Ernesto Geisel de negociar a transição com setores da sociedade civil.
Depois do fim de seu mandato na OAB, em 1979, e conforme avançava a abertura democrática, Faoro se aproximou dos setores que propunham um rompimento com a lógica patrimonial que regeria a política brasileira. Ao mesmo tempo em que compartilhava suas análises de conjuntura com leitores de semanários, participava de iniciativas da sociedade civil.
A tese de Faoro, segundo a qual a política brasileira seria dominada por um "estamento burocrático" desde os tempos coloniais, parecia ganhar corpo e vida nos militares e na tecnoburocracia que governava o país.
Também em 1974 ele publicou "Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio", ensaio no qual aproximava o bruxo do Cosme Velho de sua interpretação da história brasileira. Desde então, a obra de Faoro tornou-se capaz de interpelar as ciências sociais brasileiras e —por que não o dizer?— a própria política nacional.
À guisa de exemplo, poderíamos recordar sua influência sobre o debate a respeito da formação do Estado brasileiro, do qual participaram José Murilo de Carvalho, Simon Schwartzman e Fernando Uricoechea.
Outra manifestação da capacidade de o pensamento faoriano pautar a sociologia e a ciência política locais esteve na controvérsia a respeito das formas de modernização de países periféricos, agenda de reflexão que reunia, além dos já citados, intelectuais como Luiz Werneck Vianna, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.
Embora não possuísse títulos universitários para além da sua graduação, o notável saber de Faoro foi reconhecido por instituições acadêmicas, como sinaliza a sua participação, em 1977, na banca de livre-docência de Gabriel Cohn, outro grande expoente da teoria social brasileira, a respeito do pensamento de Max Weber.
Também no plano da prática política, os anos 1970 seriam centrais na trajetória do autor. Em eleição acirrada em 1977, tornou-se presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), posição da qual se valeu no front da luta democrática, em especial pelo restabelecimento dos habeas corpus, da anistia sem restrições e dos processos constituintes autênticos.
Ao mesmo tempo, tornou-se interlocutor privilegiado de Petrônio Portella, presidente do Senado Federal entre 1977 e 1978 e encarregado por Ernesto Geisel de negociar a transição com setores da sociedade civil.
Depois do fim de seu mandato na OAB, em 1979, e conforme avançava a abertura democrática, Faoro se aproximou dos setores que propunham um rompimento com a lógica patrimonial que regeria a política brasileira. Ao mesmo tempo em que compartilhava suas análises de conjuntura com leitores de semanários, participava de iniciativas da sociedade civil.
Colaborou em seminários organizados pelo então recém-fundado Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (CEDEC), instituição que reunia intelectuais como Francisco Weffort, Marilena Chauí, Maria Vitória Benevides, Marco Aurélio Garcia, Eder Sader, entre outros. Tratava-se, cada um à sua maneira, de procurar a emergência dos "novos atores sociais" da sociedade brasileira transformada pela modernização autoritária.
No bojo de tais debates, publicou "Assembleia Constituinte, a Legitimidade Recuperada" (1981). Em razão da sua reconhecida autoridade junto à opinião pública, chegou a ser convidado por Lula para ser candidato à vice-presidente na chapa petista nas eleições de 1989. Recusou o convite.
Eleito para compor a ABL, tomou posse em setembro de 2002, poucos meses antes de morrer, em 2003.
Como dito acima, a trajetória intelectual de Raymundo Faoro tem como eixo o ensaio "Os Donos do Poder". A síntese de sua tese consta na abertura do célebre capítulo final: "De dom João 1º a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo".
Assim se referia à multissecular forma de dominação patrimonialista, cujos alicerces seriam o "estamento burocrático" condutor de um "capitalismo politicamente orientado".
Assim se referia à multissecular forma de dominação patrimonialista, cujos alicerces seriam o "estamento burocrático" condutor de um "capitalismo politicamente orientado".
Críticos de sua obra assinalam a sua vagueza em esclarecer quem, afinal de contas, comporia o "estamento burocrático". Não é fácil mesmo defini-lo, pois, como afirma nas primeiras páginas de "Machado de Assis - A Pirâmide e o Trapézio", trata-se de uma "camada da penumbra".
Essa "corporação de poder", formada para gerir os negócios do reino português e depois transferida para o Brasil, é amorfa, mas manteria os princípios básicos de uma ordem estamental: a visão de mundo desigualitária, a sensação de pertencimento a um grupo fechado que tudo pode por supostamente ser qualificado para o exercício do poder e, como consequência, o monopólio de oportunidades econômicas e de cargos públicos. "Significa esta realidade [...] que se projeta de cima para baixo", escreve Faoro no segundo capítulo do seu principal ensaio.
Desse ponto de vista, mais do que identificar quem precisamente compõe o estamento, talvez seja mais interessante assinalar que Faoro captura uma lógica particular da forma da dominação política no país.
Essa forma se realizaria onde não prevalece as características sociais do mercado. Aqui, contudo, é preciso atenção: incorretamente, Faoro costuma ser tido por muitos de seus críticos e admiradores como uma espécie de paladino do livre mercado.
Ao contrário, para o jurista, o mercado tem importância em nível sociológico, à maneira de Weber, como uma instituição capaz de ensejar uma sociabilidade associativa, igualitária e por isso potencialmente democrática.
Como demonstram seus textos dos anos 1990, Faoro não era um livre cambista, mas um pensador democrático e republicano. Com razão, suspeitava que a onda liberalizante que assolou a Nova República não passava de uma nova forma de manutenção dos privilégios dos encastelados no poder. Por isso, opunha à modernização —vinda de cima para baixo e, por isso, compatível com a dominação patrimonial— a modernidade.
Essa forma se realizaria onde não prevalece as características sociais do mercado. Aqui, contudo, é preciso atenção: incorretamente, Faoro costuma ser tido por muitos de seus críticos e admiradores como uma espécie de paladino do livre mercado.
Ao contrário, para o jurista, o mercado tem importância em nível sociológico, à maneira de Weber, como uma instituição capaz de ensejar uma sociabilidade associativa, igualitária e por isso potencialmente democrática.
Como demonstram seus textos dos anos 1990, Faoro não era um livre cambista, mas um pensador democrático e republicano. Com razão, suspeitava que a onda liberalizante que assolou a Nova República não passava de uma nova forma de manutenção dos privilégios dos encastelados no poder. Por isso, opunha à modernização —vinda de cima para baixo e, por isso, compatível com a dominação patrimonial— a modernidade.
A obra de Faoro colocou em primeiro plano a combinação entre atraso e autoritarismo que caracterizaria a sociedade e a política brasileiras. Organizadas vertical e hierarquicamente, ambas denotariam como a dialética cooptadora do patrimonialismo muda para não mudar, moderniza-se para se manter vigente, impedindo a concretização das igualdades que caracterizam a república e a democracia.
Um breve exame dos desmandos que marcam a cena política atual —da tentativa de golpe de Estado por setores ligados ao Exército à destinação sem rastreio de verbas congressuais, passando pelos privilégios de nossa magistocracia, na expressão de Conrado Hubner Mendes— sugerem que, ao menos, as perguntas e as hipóteses formuladas por Faoro permanecem inquietantemente atuais. Boa hora para relê-lo.
Um breve exame dos desmandos que marcam a cena política atual —da tentativa de golpe de Estado por setores ligados ao Exército à destinação sem rastreio de verbas congressuais, passando pelos privilégios de nossa magistocracia, na expressão de Conrado Hubner Mendes— sugerem que, ao menos, as perguntas e as hipóteses formuladas por Faoro permanecem inquietantemente atuais. Boa hora para relê-lo.
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