6 de fevereiro de 2020

A ditadura boliviana e a hipocrisia dos castelos

Associação criminosa ou mutismo colaboracionista?

Breno Altman

Folha de S.Paulo

A senadora Jeanine Añez acena após se declarar presidente da Bolívia, no Palácio Quemado, sede do governo, em La Paz. Marco Bello /Reuters

O governo de Jeanine Áñez, empossada por um golpe de militares e civis no dia 12 de novembro de 2019 na Bolívia, há quase três meses deixa um rastro de sangue e arbítrio. A usurpação do poder assenta-se sobre a violência repressiva e a cumplicidade internacional das forças conservadoras, protegendo o regime de exceção sob um manto de silêncio.

Pelo menos 36 pessoas foram mortas à bala por soldados, policiais e paramilitares desde a derrubada de Evo Morales. São cerca de mil os bolivianos feridos, mais de 1.500 os presos sem culpa formada. Dezenas se refugiaram, perseguidos à revelia de qualquer amparo jurídico, como o próprio ex-presidente. Rádios comunitárias foram fechadas, canais internacionais tiveram seus sinais interrompidos e jornalistas acabaram presos por subversão.

Novas eleições gerais estão convocadas, para o dia 3 de maio, para eleger um novo presidente da República e renovar o Poder Legislativo. São muitos os sinais, porém, de que o governo Áñez opera para uma farsa continuísta.

Tão logo o Movimento para o Socialismo (MAS), partido de Evo, definiu que Luis Arce, ex-ministro da Economia, seria o candidato da legenda, o Ministério Público abriu processo de investigação contra o postulante, tentando envolvê-lo em supostos e obscuros crimes de corrupção.

Também o ex-presidente voltou a ser vítima de jogo sujo. No dia 31 de janeiro foi detida a sua advogada, Patricia Hermosa, encarregada de inscrevê-lo, por procuração, para disputar uma cadeira ao Senado. Além da prisão injustificada, a polícia se apoderou da documentação necessária para o registro da candidatura, somente efetivado porque, por cautela, havia segundas vias da papelada exigida.

Esses são apenas alguns fatos que ilustram o descompromisso da ditadura com um processo eleitoral livre e democrático. Áñez e seus associados, embora divididos em diversas chapas para as eleições de maio, de tudo fazem para impedir que o MAS possa ter condições razoáveis e equilibradas de competição com os partidos de direita.

Ações repressivas e manobras espúrias têm sido ampliadas desde que pesquisas começaram a destacar o favoritismo de Arce. Prisões, impugnações e outros ardis estão em curso, através do sistema de Justiça, para privilegiar os grupos vinculados ao golpe de novembro. Esses setores, aliás, aproveitam-se do estado de exceção para impor uma nova política econômica e social, além de alterar o alinhamento geopolítico do país, em aberto desrespeito à soberania popular.

Apesar de incontáveis esbulhos contra a ordem constitucional e da violação em escala industrial dos direitos humanos, os autoproclamados campeões mundiais da democracia oferecem seu aval à ditadura.

A Casa Branca, a OEA (Organização dos Estados Americanos), os principais governos do hemisfério e os mais relevantes veículos de comunicação, entre outros castelos do mundo ocidental, oscilam entre associação criminosa e mutismo colaboracionista.

A Bolívia funciona, para essa gente, como um campo de testes. Se a ditadura conseguir se institucionalizar por meio de uma fraude eleitoral, os neoliberais concluirão que golpes clássicos e regimes neofascistas podem voltar a ser parte destacada do arsenal operativo das oligarquias e dos Estados imperialistas.

Sobre o autor

Jornalista e fundador do site Opera Mundi

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