13 de fevereiro de 2015

Ernesto Laclau: Construindo antagonismos

por Razmig Keucheyan

Verso

Tradução / De origem argentina, professor de teoria política na Universidade de Essex na Inglaterra, Ernesto Laclau desenvolveu uma abordagem do político baseada na noção de "antagonismo", considerada como constitutiva tanto da fundação como dos limites do social. Embora, a princípio, antagonismo e reconhecimento sejam opostos, pode-se desenvolver a hipótese de que o confronto entre identidades, ainda que irreconciliáveis, sempre assumirá a forma de um reconhecimento mútuo. Sendo assim, o antagonismo conceitualizado por Laclau exclui processos como o genocídio, no qual a existência do outro é (integralmente) negada. O conceito presume que o oponente é construído como tal.

A teoria política desenvolvida por Laclau está exposta em duas principais obras: Hegemony and Socialist Strategy, com o subtítulo Towards a Radical Democratic Politics, com a co-autoria de sua colega, a filósofa belga Chantal Mouffe, e publicado em 1985; e On Populist Reason, publicado em 2005. Dentre seus outros trabalhos podemos citar Politics and Ideology in Marxist Theory (1977) e New Reflections on the Revolution of Our Time (1990). Laclau é um caso exemplar de pensador crítico globalizado. Ativista revolucionário em sua juventude na Argentina, esteve, por um período, próximo a Jorge Abelardo Ramos, o fundador da “Esquerda Nacional” argentina. Suas origens latino-americanas claramente moldam sua concepção política atual, especialmente a problemática do "populismo", o que é fortemente influenciada por sua experiência do Peronismo. Mas se algumas vezes Laclau assume um posicionamento em seu país – recentemente oferecendo seu apoio ao governo de Cristina Kirchner, por exemplo – o espaço intelectual no qual ele se movimenta é, principalmente, o mundo anglo-americano.

A publicação, em meados dos anos 80, de Hegemony and Socialist Strategy estimulou importantes debates na esquerda radical [1]. No cerne da análise de Laclau e Mouffe está o conceito gramsciano de hegemonia [2]. Para Laclau e Mouffe, Gramsci se situa como um ponto de inflexão na história do marxismo. O autor de Cadernos do cárcere estava consciente do fato de que algumas das teses centrais do marxismo tinham sido enfraquecidas pelo desenvolvimento do capitalismo. As expectativas de revolução na Europa Ocidental foram frustradas. E mais, um capitalismo ‘organizado’ emergiu no início do século XX, o qual Gramsci foi um dos primeiros (em 1934) a batizar de ‘Fordismo’ [3], e que era diferente do capitalismo ‘liberal’ da Belle Époque. Uma das consequências deste novo tipo de capitalismo era o crescimento, ao contrário de toda expectativa (marxista), de categorias intermediarias, burocratas e de todo tipo de ‘intelectuais’. A introdução por Gramsci da noção de hegemonia no marxismo tornou possível revisar e adaptar a doutrina de acordo com tais tendências, sem pôr em questão seus pressupostos básicos. A hegemonia tornou possível a compreensão da importância crescente de fatores ‘culturais’ nas relações sociais, uma vez que se refere à supremacia ‘moral’ de um setor da sociedade sobre o resto. Ela também tornou possível apreender cada situação política em sua singularidade. No marxismo clássico, a hegemonia (ou conceitos semelhantes) era um conceito essencialmente estratégico [5]. Ela interferia a propósito de casos estudados nos quais o proletariado deveria fazer alianças com outras classes – a burguesia, o campesinato, as classes médias – assegurando que sua dinâmica geral seja favorável a seus interesses. Isso não mudava em nada a centralidade das classes sociais na visão de mundo marxista, ou no fato de que a classe vetor da mudança histórica era a classe trabalhadora.

Em Gramsci, a hegemonia assume um sentido diverso, que altera profundamente a ontologia marxista: “Para Gramsci, os sujeitos políticos não eram – estritamente falando – classes, mas complexas ‘vontades coletivas’; paralelamente, os elementos ideológicos articulados pela classe hegemônica não tinham, necessariamente, um pertencimento de classe” [6]. De acordo com Laclau e Mouffe, Gramsci iniciou uma gradual emancipação do conceito de hegemonia daquele conceito de classe. Essa emancipação será concluída em sua própria teoria (de Laclau e Mouffe). As ‘vontades coletivas’ mencionadas por Gramsci possuem duas características principais. A primeira é que elas são contingentes – isto é, elas não são predeterminadas por interesses socioeconômicos dos atores envolvidos. Em outras palavras, elas são formadas no âmbito das relações de poder e nas ocasiões das lutas sociais concretas. Além disso, os setores ‘articulados’ no contexto de uma formação hegemônica podem ser de várias espécies. Eles podem envolver partidos e sindicatos, mas também comunidades territoriais, grupos étnicos, ou coletivos de identidade incerta que constroem uma identidade apropriada em ocasião da luta.

Para Laclau e Mouffe, apesar da separação entre hegemonia e classes sociais por ele inaugurada, Gramsci não abandonou completamente alguns dos aspectos fundamentais do marxismo. Em particular, o que eles chamam de ‘núcleo essencial’ persiste em seus escritos, o que acaba por atrelar à hegemonia uma lógica monocausal referente à posição de classe dos setores envolvidos. Laclau e Mouffe propõem dar conclusão ao movimento teórico iniciado por Gramsci e definitivamente abandonar a centralidade das classes. Estas últimas (as classes sociais) podem certamente ser importantes dependendo das circunstâncias. Mas a primazia destinada a elas pelo marxismo é recusada por Laclau e Mouffe. Vários motivos os levam a esta conclusão. Primeiramente, de acordo com ambos, o mundo social tem se tornado mais complexo desde o fim do século XVIII, aumentando sua heterogeneidade. Longe de ser consolidada, como previa o marxismo, a posição de classe dos indivíduos tornou-se consequentemente mais ambígua. Além disso, a classe trabalhadora industrial, antes inevitável na estruturação dos conflitos sociais, perdeu sua centralidade. Ela tem diminuído demograficamente nas últimas décadas. O advento dos ‘novos movimentos sociais’, os quais Laclau e Mouffe invocam da mesma maneira que Fraser, implicam em uma conflitualidade que não é mais necessariamente organizada em demandas econômicas ligadas ao trabalho. Em um nível epistemológico mais fundamental, Laclau e Mouffe criticam o ‘essencialismo da classe’ presente no marxismo. Sua ênfase no caráter contingencial dos grupos sociais indica que eles aderiram a uma forma de ‘indeterminismo’ sociológico, segundo o qual a coerência (relativa) dos atores é sempre construída no curso da ação, e não a priori. Laclau e Mouffe defendem um ponto de vista claramente anti-essencialista.

Em Laclau e Mouffe, o abandono da perspectiva de classe tem como correlato a importância da noção de antagonismo: ‘Uma vez que a identidade deixou de ser baseada em um processo de unidade infraestrutural… a classe trabalhadora se torna dependente de uma divisão da classe capitalista, que só pode ser concluída a partir de um confronto contra ela… “Guerra” torna-se assim a condição para uma identidade da classe trabalhadora’ [7]. Se nenhuma ‘essência’ subjaz ao social, os entes que aí se desenvolvem são necessariamente relacionais – isto é, eles são construídos a partir do respeito a algum outro ou contra algum outro. Curiosamente, Laclau e Mouffe sustentam que foi Sorel quem primeiro desenvolveu uma visão de mundo baseado na primazia no conflito. Sorel teve um impacto decisivo no pensamento de Gramsci, quem, em particular, adotou a noção de ‘bloco histórico’ dele. Influenciado por Nietzsche e Bergson, Sorel atesta a existência de uma tendência ‘vitalista’ dentro das tradições marxista e pós-marxista. Sua abordagem também pode ser concebida como uma radicalização do ponto de vista de E.P. Thompson. Thompson insiste no fato de que a consciência de classe (‘experiência’) importa tanto quanto, se não mais que, a condição socioeconômica dos trabalhadores para a determinação de seu pertencimento de classe. Assim como Laclau, ele concebe os grupos sociais em termos relacionais – isto é, mais precisamente, em termos oposicionais. A diferença é que Thompson não quer com isso negar que as classes sociais têm uma existência objetiva, ao passo que Laclau abandona essa ideia. Na sua visão, não existe nenhum elemento a priori que torne possível determinar onde o antagonismo irá surgir. Ele pode constituir-se em qualquer lugar.

On Populist Reason, lançado simultaneamente em inglês e espanhol em 2005, é uma das obras críticas mais debatidas no momento. Particularmente na américa latina, onde a tese de Laclau ecoou com a experiência dos regimes ‘populista-progressistas’ que surgiram no início dos anos 2000 – a saber, a Venezuela de Hugo Chávez, a Bolívia de Evo Morales, e o Equador de Rafael Correa. O advento desses regimes está relacionado com a história – em uma longa perspectiva – da américa latina, que já experimentou regimes semelhantes no passado. Entre eles encontramos o Peronismo, um movimento especificamente argentino que surgiu no fim dos anos 40 e que ainda estrutura a vida política do país até os dias de hoje. O caráter furtivo dessa corrente, em muitos aspectos – como a dificuldade de situá-lo nas coordenadas tradicionais da política moderna –, é um dos elementos que levaram Laclau a examinar o fenômeno populista. Em linhas gerais, o objetivo de Laclau é reabilitar esse fenômeno, habitualmente considerado como algo negativo. Na sua visão, o populismo nada mais é do que uma das formas assumidas pelo político nas sociedades democráticas modernas. Mais especificamente, é uma condição para o aprofundamento do valor central que governa os demais – a saber, a igualdade.

No início existia a heterogeneidade radical do mundo social. O final, para Laclau, é caracterizado pela multiplicidade e fragmentação de seus componentes, cujas identidades estão sempre flutuando. A heterogeneidade do social avança com o aumento da complexidade das sociedades. Para designar este fenômeno, Laclau usa a expressão ‘lógica da diferença’. Diversos setores sociais mobilizados a partir da esfera econômica (sindicatos), da esfera comunitária (etnicidades), ou outros, interagem com o governo e instituições existentes construindo demandas que são específicas a cada grupo. Às vezes, tais demandas são atendidas, caso em que o setor envolvido retoma suas atividades normalmente. Mas também pode acontecer, por questões de princípio ou conveniência, que o governo e instituições se neguem a atender tais demandas. É então que essa lógica da diferença é passível de ser transformada em uma “lógica da equivalência”. O caráter específico das demandas deixa de existir enquanto tal, uma vez que foi rejeitada pelo governo. Eles agora possuem pelo menos uma característica em comum – o fato de terem sido rejeitados – o que cria as condições para uma aliança entre eles. O populismo está pronto para entrar em ação. Sua condição é a transformação dos particularismos seccionais em demandas mais genéricas, que são inscritas em uma ‘corrente de equivalência”, criando uma ligação entre elas.

Um ‘limite interno’ é então criado no seio da comunidade, que separa o que é sustentado pelo poder daqueles setores que ainda não tiveram suas demandas satisfeitas. Esse limite, Laclau argumenta, transforma a plebe em povo. O povo está sempre constituído como algo em oposição a um adversário – no caso de Peron, por exemplo, à ‘oligarquia’. Para tal fim, o povo frequentemente reclama que suas demandas sejam incorporadas à figura de um líder populista. O uso por Laclau da noção de ‘plebe’ – originalmente, a classe baixa romana, em oposição aos patrícios – é similar ao uso feito por Hardt e Negri da ‘multidão’. Além disso, nota-se uma proliferação de antigos conceitos do grego e do latim no pensamento crítico contemporâneo. Não resta dúvida que isso atesta a dificuldade em se identificar os sujeitos da emancipação na conjuntura atual. Ambas as noções de ‘plebe’ e ‘multidão’ se referem às condições de indistinção ou descoordenação da população, composta de particularismos irredutíveis, e ainda não prontas para se constituírem como um verídico sujeito político. Em Laclau, a transição da plebe para o povo, através da transformação da lógica da diferença para a lógica da equivalência, anuncia sua formação enquanto sujeito. Podemos observar que em Negri, a missão da multidão é permanecer uma coleção de singularidades, que nunca se tornará um povo, uma vez que para ele o povo é a multidão cujo potencial foi subjugado pelo estado.

O populismo pressupõe a intervenção do que Laclau, seguindo certos estruturalistas e pós-estruturalistas – entre eles Lévi-Strauss e Derrida –, chama de ‘significantes vazios’. Significantes vazios são símbolos, predominantemente mas não exclusivamente linguísticos, investidos por diferentes sentidos por cada setor incorporado na cadeia de equivalência. Por exemplo, a quantidade de sentidos associados à ideia de ‘igualdade’ na história francesa, nos períodos revolucionários, como também na rotina de funcionamento das instituições, é incontável. Da mesma forma, na Argentina do início dos anos 70, a busca pelo retorno de Perón do seu exílio na Espanha tinha significados diferentes para cada setor do peronismo, como ficou evidente pelo tiroteio ocorrido eles no aeroporto de Buenos Aires quando o avião do general pousou em 1973. De acordo com Laclau, é indispensável que os significantes populistas estejam vazios. Tivessem seus conteúdos fixos, eles seriam capazes de incorporar apenas o imaginário ou os interesses de apenas um setor da sociedade. É justamente a capacidade de mobilizar diferentes setores que caracteriza o populismo. É possível que o conteúdo do significante tenha emanado de apenas uma fração da sociedade. Mas à medida em que cadeia de equivalência é estendida, ela se submete a um processo de abstração que a esvazia de sua substância e permite que seja preenchida com diversos significados. Isso leva Laclau a afirmar, assim como Rancière, Badiou e Zizek, que o universal existe, mas que ele é ‘um lugar vazio’.

Um terceiro e indispensável elemento no advento do populismo é obviamente uma forma de hegemonia. Ela é definida por Laclau como um universal contaminado por particularismos, ou uma unidade construída na diversidade [8]. Em On Populist Reason, a hegemonia é concebida como uma forma de sinédoque. Sinédoque é uma figura de linguagem que consiste em tomar a parte pelo todo, ou o inverso (o que envolve uma forma de metonímia). Na teoria do populismo de Laclau, a noção se refere aos casos onde parte da totalidade social substitui a totalidade e fala em seu nome. Quando os nativos bolivianos ou mexicanos penetram seus respectivos campos políticos nacionais, eles não aspiram meramente encontrar um local de existência na ordem política. Eles perturbam essa ordem e defendem ser o verdadeiro repositório da legitimidade nacional. Eles falam em nome de toda a comunidade, não apenas em seus próprios interesses. Para Laclau esta é a operação básica de hegemonia: ‘no caso do populismo… uma fronteira de exclusão divide a sociedade em dois campos. O “povo”, neste caso, é algo menor que a totalidade dos membros da comunidade: é um componente parcial que, no entanto, aspira ser concebido como a única totalidade legítima’. [9] Aqui Laclau se aproxima de Rancière, a quem se refere explicitamente. Devemos lembrar que para Rancière, o ‘errado’ de que são vítimas permite àqueles ‘sem parte’ falar em nome de toda a comunidade. Laclau não está dizendo nada diferente. A hegemonia consiste em falar pela comunidade a partir de um dos ‘campos’ separados pelo antagonismo. É nisso que a lógica populista consiste; e para Laclau, em última análise, se confunde com a própria lógica política, e nada mais.

Notas:

[1] Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics, London and New York: Verso, 2001.

[2] Existe uma tradição gramsciana argentina específica da qual Laclau é representante.

[3] Ver Antonio Gramsci, Selections from the Prison Notebooks, ed. and trans. Quintin Hoare and Geoffrey Nowell Smith, London: Lawrence and Wishart, 1971, Part II, capítulo 3.

[4] Sobre o conceito de hegemonia, ver Perry Anderson, ‘The Antinomies of Antonio Gramsci’, New Left Review, I/100, Novembro de 1976–Janeiro de 1977.

[5] Ernesto Laclau, ‘Identity and Hegemony: The Role of Universality in the Constitution of Political Logics’, em Butler, Laclau and Žižek, Contingency, Hegemony and Universality, p. 52

[6] Laclau and Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy, p. 67.

[7] ibid., p. 39. A centralidade do antagonismo em Laclau recupera aquilo atribuído por Schmitt como a oposição entre ‘amigo’ e ‘inimigo’ em sua caracterização do político.

[8] Laclau, ‘Identity and Hegemony’, p. 50

[9] Laclau, On Populist Reason, p. 81.

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