29 de janeiro de 2020

Notas sobre um novo coronavírus

A penetração final do vírus em todo o mundo dependerá da diferença entre a taxa de infecção e a taxa de remoção de infecções – por recuperação ou morte. Se a taxa de infecção exceder em muito a remoção, então a penetração pode se aproximar de toda a humanidade, embora provavelmente haja grandes diferenças geográficas.

Rob Wallace

MR Online

Big Farms Make Big Flu: Dispatches on Infectious Disease, Agribusiness, and the Nature of Science por Rob Wallace.

Tradução / Similar a SARS e MERS, um novo coronavírus mortal, Covid-19, aparentemente, originário de mercados de animais vivos em Wuhan, China, está começando a se espalhar pelo mundo.

As autoridades chinesas relataram 5974 casos em todo o país, 1000 deles graves [1]. Com infecções em quase todas as províncias, as autoridades alertaram que o Covid-19 parece estar se espalhando rapidamente para fora de seu epicentro.

Tal caracterização parece corresponder a estimativas iniciais baseadas em parâmetros epidemológicos e pregnósticos epidêmicos [2].

O ritmo básico de reprodução do vírus, uma medida feita a partir do número de novos casos por infecção gerados a partir de um caso individual em uma população não infectada, chegou a um valor de 3.11. Isso significa que, diante dessa situação, um programa de controle precisaria conter até 75% das novas infecções para reverter o surto. A equipe de modelagem estima que atualmente existam mais de 21.000 casos, relatados ou não, apenas em Wuhan [3].

Entretanto, as seqüências de genoma completo do vírus mostram poucas diferenças entre as amostras isoladas em toda a China. A disseminação mais lenta para um vírus RNA de rápida evolução seria marcada por mutações acumuladas de um lugar para o outro.

O coronavírus está começando a abrir franquias no exterior. Viajantes com Covid-19 foram tratados na Austrália, França, Hong Kong, Japão, Malásia, Nepal, Vietnã, Cingapura, Coréia do Sul, Taiwan, Tailândia e Estados Unidos. No momento, surtos locais estão iniciando em seis países [4].

Como a infecção é caracterizada pela transmissão entre humanos e por um período de incubação de duas semanas antes que a doença se manifeste, a infecção provavelmente continuará a se espalhar pelo mundo. Se todos os lugares serão como Wuhan, a questão permanece em aberto.

A disseminação do vírus em todo o mundo dependerá da diferença entre a taxa de infecção e a taxa de remoção de infecções por recuperação ou morte. Se a taxa de infecção exceder a taxa de remoção, a população total infectada poderá se aproximar de toda a humanidade. Esse resultado, no entanto, provavelmente seria marcado por grande variação geográfica, provocada pela combinação entre probabilidade de mortes e diferenças na forma como os países reagirão ao surto.

Os céticos não têm tanta certeza sobre este cenário. Muito menos pacientes foram infectados e mortos pelo Covid-19 do que pela gripe sazonal típica. Mas o erro aqui é confundir o momento do início de um surto com suas características essenciais.

Surtos são dinâmicos. É verdade que alguns desaparecem, incluindo, talvez, o Covid-19. Para isso, no entanto, há que se estabalecer a pressão evolutiva correta, mas também contar com um pouco de sorte e a emergência de chances de erradicação ao acaso. Por exemplo, podem não existirem hospedeiros suficientes para manter a transmissão ou então outros surtos podem explodir e sucedê-lo. De todo modo, sempre que um surto chega ao cenário mundial, transforma as condições existentes, mesmo que ele venha a ser estirpado. Ele inverte as rotinas diárias de um mundo já em tumulto ou em guerra.

O prazo de qualquer potencial pandemia é a questão principal.

Caso o vírus se mostre menos infeccioso ou mortal do que se pensava inicialmente, a civilização permanece, não obstante o número de mortes. O surto de gripe H1N1 (2009), que preocupou mais de uma década atrás, provou ser menos virulento do que parecia à primeira vista. Mesmo assim, este vírus penetrou a população global e, silenciosamente, matou pacientes em magnitudes muito além do que fora imaginado. O H1N1 (2009) matou em torno de 579.000 pessoas no primeiro ano, produzindo uma quantidade de complicações quinze vezes maiores do que o inicialmente projetado a partir de testes de laboratório.

O ritmos e perigo da proliferação dos surtos relaciona-se com a conectividade sem precedentes da humanidade. O H1N1 (2009) atravessou o Oceano Pacífico em nove dias, superando em meses as previsões dos modelos mais sofisticados sobre as redes globais de mobilidade. Os dados das companhias aéreas mostram que as viagens na China aumentaram dez vezes desde a epidemia de SARS.

Com estes mecanismos amplos de filtragem, mesmo a baixa mortalidade por uma enorme quantidade de infecções pode causar um grande número de mortes. Se quatro bilhões de pessoas são infectadas com uma taxa de mortalidade em torno de apenas 2%, oitenta milhões de pessoas são mortas: uma taxa de mortalidade que corresponde quase à metade da pandemia de gripe espanhola de 1918. E mais: diferentemente da gripe sazonal, não temos imunidade de rebanho, nem vacina para retardá-la. Na melhor das hipóteses, com uma intensa atividade laboratorial, seriam necessários pelo menso três meses para produzir uma vacina para Covid-19 – e isto supondo que ela funcione. Lembre-se que os cientistas criaram com sucesso uma vacina contra a gripe aviária H5N2 somente após o término do surto nos EUA.

Outro parâmetro epidemiológico crítico será a relação entre infecciosidade e a manifestação dos sintomas em infectados. SARS e MERS mostraram-se infecciosos somente quando do surgimento dos sintomas. Se isso acontecer para o Covid-19, não obstante os perigos, seria uma boa notícia. De todo modo, mesmo sem vacina ou antivirais personalizados, devemos colocar imediatamente em quarentena aqueles subitamente doentes, de modo a quebrar as cadeias de transmissão típicas da saúde pública do século XIX.

No domingo, porém, o ministro da saúde da China, Ma Xiaowei, surpreendeu o mundo ao anunciar que o Covid-19 havia expressado infecciosidade antes dos sintomas [5]. Tal reviravolta fez com que os epidemiologistas norte-americanos exigissem acesso aos dados que definem a nova infectividade. Surpreendidos, eles até então esperavam que o vírus não fosse evoluir fora dos parâmetros de saúde pública imaginados. Se esta descrição do desenvolvimento da infecção for verdadeira, as autoridades de saúde não poderão usar os sintomas para identificar novos casos ativos.

Tais incógnitas – a fonte exata, a infectividade, a penetração e os possíveis tratamentos – explicam porque epidemiologistas e autoridades de saúde pública estão preocupados com o Covid-19. Diferentemente das gripes sazonais citadas pelos céticos, a incerteza atravessa os que trabalham com epidemias.

Por óbvio que é da natureza deste trabalho preocupar-se. A preocupação está presente nas próprias probabilidades e erros sistêmicos incorporados pela profissão. Ao não se preparar para um surto que se mostra mortal, o dano é muito maior do que a vergonha de se planejar para um surto que não cumpre o prometido pela propaganda. Mas em uma época que celebra a austeridade, poucas autoridades desejam pagar por um desastre não garantido, independentemente dos benefícios colaterais da precaução ou, na outra ponta dos resultados, das perdas devastadoras associadas a uma aposta equivocada.

De qualquer maneira, a decisão de como proceder está totalmente fora do controle dos epidemiologistas. As autoridades nacionais que tomarão tais decisões fazem malabarismos com agendas múltiplas e muitas vezes contraditórias. Impedir, até mesmo um surto mortal, nem sempre é o objetivo mais importante.

Enquanto as autoridades tropeçam em descobrir o que fazer, a escala do impacto pode repentinamente engajamento com velocidade. Ao mover-se de um único mercado de alimentos para o cenário mundial em um mês, o Covid-19 demonstrou que os números devem aumentar tão rapidamente que o melhor esforço de um epidemiologista, sua “raison d’être”, pode sofrer um golpe fatal.



Minhas próprias reações viscerais a esta doenças passaram por preocupações, decepções e impaciência.

Sou biólogo evolucionista e trabalho com filogeografia da saúde pública. Investigo diferentes aspectos de novas pandemias há 25 anos, grande parte da minha vida adulta. Como já escrevi em outros lugares, tentei difundir, com a ajuda de muitos outros, análises sobre estes patógenos, combinando meus estudos iniciais sobre as seqüências genéticas com geografias econômicas do uso da terra, economia política da agricultura global e epistemologia da ciência.

A clareza pode azedar a alma. À medida que minhas mídias sociais vibravam com perguntas sobre o Covid-19, minha resposta imediata se limitou: o que você quer que eu diga? O que quer que eu faça?

Ao dar conselhos pessoais e profissionais a amigos e colegas legitimamente preocupados, tomei algumas decisões erradas. Para a pergunta de um amigo fazendeiro sobre viajar ao exterior, aconselhei-o a usar máscaras cirúrgicas, lavando as mãos antes de todas as refeições, e o ordenei: “pare de foder o gado, cara”. O humor sombrio e irreverente me ajuda a enfrentar o estresse, mas sua resposta sincera “Pare de foder o gado?” mostrou que eu tinha perdido a linha. Não pegou bem. Eu me desculpei. Ele riu disso mais tarde.

É um risco profissional. Existe o perigo de um pavor existencial, que surge da inércia política, com a qual os epidemiologistas têm de se confrontar ao preparar o mundo para uma pandemia persistente e irresistível, que sua clientela finge não incomodar até que seja tarde demais.

Ainda não está claro, mas, se Covid-19 é realmente o “Big Bug”, não há quase nada a ser feito neste momento. Tudo o que podemos fazer é reduzir as falhas de saúde pública e esperar que o vírus mate apenas uma pequena parte da população do mundo, em vez de 90%.

Claramente, a humanidade não deveria começar a reagir a uma pandemia quando essa já estiver em andamento. É a rejeição total de qualquer noção de teoria ou prática de visão de futuro. Os líderes e seus supostos apoiadores em todo o mundo não se identificam com Prometeus?

Como escrevi sete anos atrás:

“Espero que demore muito tempo até que eu lide novamente com um surto de gripe humana que não seja passageiro. Embora seja uma reação visceral compreensível, ficar preocupado nesse momento já seria um pouco atrasado. A doença, qualquer que seja seu ponto de origem, deixou o ninho há muito tempo, literalmente.”

Neste século, já transportamos novas variedades de peste suína africana, Campylobacter, Cryptosporidium, Cyclospora, Ebola, E. coli O157: H7, doença mão-pé-boca, hepatite E, Listeria, vírus Nipah, febre Q, Salmonella, Vibrio , Yersinia, Zika e uma quantidade de novas variantes da gripe A, incluindo H1N1 (2009), H1N2v, H3N2v, H5N1, H5N2, H5Nx, H6N1, H7N1, H7N3, H7N7, H7N9 e H9N2.

Quase nada efetivo foi feito sobre nenhuma delas. Ao suspirarem aliviadas com a reversão de cada uma, as autoridades esperam os novos dados epidemiológicose para, em seguida, arriscar o pior resultado com máxima virulência e transmissibilidade. Este comportamento não se resume apenas a uma falha de previsão ou coragem. Por mais necessárias que sejam, intervenções de emergência podem piorar a situação.

Veja bem, os tipos de intervenção competem entre si. Como meus colegas e eu argumentamos, medidas de emergência são, nos termos da hegemonia gramsciana, imposições que nos impedem de falar sobre mudanças estruturais em torno do poder e da produção. Como discuti-las? AGORA TEMOS UMA EMERGÊNCIA!

No ápice desta disputa, a falha em resolver problemas estruturais pode tornar medidas de emergência ineficazes. O efeito Allee, segundo o qual as profilaxias e a quarentena visam diminuir o tamanho das populações de patógenos – de modo que as infecções possam acabar por si mesmas incapazes de encontrar novas pessoas suscetíveis – é definido por causas estruturais.

Como nossa equipe escreveu sobre o surto de Ebola na África Ocidental:


“A mercantilização da floresta pode ter reduzido o limiar ecossistêmico da região a tal ponto que nenhuma medida de emergência pode reduzir o surto de Ebola o suficiente para que ele acabe. Novos surtos expressam maior potencial de infecção. No outro extremo da epicurva, um surto maduro continua a circular, com o potencial de se recuperar intermitentemente. Em resumo, as mudanças estruturais do neoliberalismo não são mero pano de fundo da emergência do Ebola. Elas são tão emergenciais quanto o próprio vírus … O desmatamento e a agricultura intensiva podem eliminar o atrito estocástico da agrossilvicultura tradicional, que normalmente impede o vírus de conseguir condições necessárias para se transmitir.”

Mesmo após a descoberta de vacina antiviral eficaz, o Ébola está atualmente passando por seu mais longo surto registado na República Democrática do Congo. O que se perdeu pelo caminho? Onde está agora o nosso Deus biomédico? Culpar os congoleses para encobrir este fracasso é exercício de deslocamento colonial, que lava as mãos do imperialismo responsável por décadas de ajuste estrutural e mudança de regime em favor do Norte global.

Mesmo que a imposição de medidas emergenciais contra uma nova doença continue a ser enfatizada, dizer que não há nada que possamos fazer também não é suficientemente certo. Dentro de qualquer localidade, existe programas de esquerda, dentre eles, a organização de brigadas de bairro em ajuda mútua, reivindicações para que vacinas e antivirais desenvolvidos sejam disponibilizados sem custos, exigências de quebra das patentes em relação aos suprimentos médicos, garantias contra desemprego e cobertura dos cuidados de saúde, na medida em que a economia desacelere durante o surto.

Mas esta forma de pensar e organizar, parte essencial do legado da esquerda, parece ter cedido lugar para configurações mais performáticas (e discursivas) online.

Desde que se estabeleceu uma certa inclinação reacionária ao controle de doenças à esquerda e à direita, tenho concentrado meus esforço em refletir sobre a agricultura e economia anticapitalista. Em primeiro lugar, temos que fazer parar surtos que não conseguimos combater seu surgimento. Neste momento da minha carreira, dado o ritmo estrutural das emergências, geralmente escrevo sobre doenças infecciosas apenas de modo tangencial.



As causas estruturais da doença são fonte de intenso debate. Há diversas questões sobre as origens do Covid-19.

Inicialmente, dedicou-se especial atenção ao mercado alimentar exótico em Wuhan. Com base em um olhar orientalista, preocupava-se com dietas estranhas e desagradáveis, que promoveriam o fim da biodiversidade, cujo principal indutor é ironicamente o próprio Ocidente, e uma fonte revoltante de doenças perigosas:

“O mercado típico da China tem frutas e vegetais, carne de açougue, porco e cordeiro, galinhas inteiras depenadas – com cabeças e bicos presos –,caranguejos e peixes vivos, expelindo água de tanques agitados. Alguns vendem mais barato cobras vivas, tartarugas e cigarras, porquinhos-da-índia, ratos bambu, texugos, ouriços, lontras, civetas da palmeira e até mesmo filhotes de lobo.”

Estas feras são constituídas de significantes e significados. Como fontes estritas do Covid-19, abrigam, ao mesmo tempo, o paraíso perdido e pecado original de uma boca de serpente.

Há evidências epidemiológicas a favor desta hipótese. Trinta e três das 585 amostras colhidas no mercado Wuhan foram testadas positivas para Covid-19, 31 delas na extremidade oeste do mercado, justamente onde se concentrava o comércio de animais selvagens.

Por outro lado, apenas 41% destas amostras positivas foram encontradas nas ruas do mercado onde a fauna silvestre estava alojada. Um quarto dos infectados originais nunca visitou o mercado de Wuhan ou esteve diretamente exposto. O primeiro caso foi identificado antes de o mercado ter sido atingido. Outros comerciantes infectados traficaram apenas porcos, uma espécie da pecuária doméstica que manifesta um receptor molecular vulnerável comum. Isto levou uma equipe a defender a hipótese do porco como suposta fonte para o novo vírus corona.

Se proposta durante a peste suína africana, que matou metade dos porcos da China em 2019, esta última hipótese teria adquirido ainda mais força e gerado mais confusão. Até porque estas convergências de doenças não são inéditas. Elas podem se descobrar em íntima ativação recíproca, onde proteínas de cada patógeno catalisam-se mutuamente, facilitando novos rumos clínicos e dinâmicas de transmissão para ambas as doenças.

Da mesma forma que pré-julga a fonte do virus, a sinofobia ocidental também descarta a saúde pública chinesa. Certamente a irritação e decepção que o povo chinês tem dirigido às autoridades local e federal pela lenta reação ao Codiv-19 não pode ser instrumentalizada pela xenofobia armada. Porém, em nossos sábios esforços para nos mantermos fora dessa armadilha, não podemos apagar a existência de uma simetria agroecológica crítica.

Guerra cultural à parte, os mercados úmidos e a comida exótica são básicos na China. Do mesmo modo, a produção industrial. Os três encontram-se justapostos uns aos outros desde a liberalização económica pós-Mao. Na verdade, os dois modos de alimentação estão integrados por meio do uso da terra.

A expansão da produção industrial pode empurrar cada vez mais alimentos silvestres convertidos em capital para dentro da última paisagem primária, dragando uma maior variedade de patógenos potencialmente protopandêmicos. O perímetro urbano de extensão crescente e a densidade populacional podem aumentar a interface (e o transbordamento) entre as populações selvagens não humanas e a ruralidade recentemente urbanizada.

Em todo o mundo, mesmo espécies mais selvagens de mero uso de subsistência estão a ser amarradas às cadeias de valor da agricultura, entre elas, avestruzes, porcos-espinhos, crocodilos, morcegos-da-fruta e o civeta da palmeira, cujas bagas parcialmente digeridas fornecem agora o grão de café mais caro do mundo. Algumas espécies selvagens estão a chegar aos garfos antes mesmo de serem cientificamente identificadas, incluindo um novo peixe-cão de focinho curto, encontrado num mercado taiwanês.

Todos estes animais silvestres têm sido tratados cada vez mais como mercadorias alimentares. À medida que a natureza é despojada lugar a lugar, espécie por espécie, aquilo que sobra torna-se muito mais valioso.

O antropólogo weberiano Lyle Fearnley apontou que agricultores na China manipulam repetidamente a distinção entre selvagem e doméstico como significante econômico, produzindo novos significados e valores ligados aos seus animais, inclusive em resposta aos próprios alertas epidemiológicos emitidos em torno de seu comércio. Um marxista complementaria que estes significantes emergem de um contexto que se estende aos circuitos globais do capital, muito além, portanto, do controle dos pequenos agricultores.

Assim, embora a distinção entre fazendas industriais e mercados úmidos não seja sem importância, se insistirmos nela podemos perder suas semelhanças (e relações dialéticas). Tal distinçção mistura-se por uma série de outros mecanismos. Muitos pequenos produtores em todo o mundo, inclusive na China, são na realidade empresários, que cultivam pintinhos para, por exemplo, o processamento industrial. Assim, na pequena propriedade de um empresário ao longo da borda da floresta, um alimento animal pode pegar um patógeno antes de ser enviado para uma fábrica de processamento no anel externo de uma grande cidade.

Enquanto isso, a expansão de fazendas industriais pode forçar cada vez mais empresas corporativas de alimentos silvestres a se arrastar para dentro da floresta e, assim, aumentar a probabilidade de pegar novo patógeno, ao mesmo tempo que reduz o tipo de complexidade ambiental com que a floresta rompe as cadeias de transmissão.

O capital, por sua vez, determina as pesquisas sobre as doenças resultantes deste processo. Culpar os pequenos proprietários é agora uma prática padrão de gestão de crises do agronegócio. As doenças são, todavia, uma questão de sistemas de produção ao longo do tempo, do espaço e do modo como se desenvolvem. Não se trata de fazer malabarismo para distribuir a culpa apenas a determinados atores.

Como gênero, os coronavírus pavoneiam-se sobre estas distinções. Enquanto a SARS e o Covid-19 parecem ter surgido dos mercados úmidos – possíveis porcos à parte –, a MERS, outro coronavírus mortal, surgiu diretamente de um sector de industrialização de camelos no Oriente Médio. Este percurso da virulência é largamente ignorado pela discussão científica mais ampla sobre estes vírus.

Devemos mudar a forma como pensamos. Eu recomendaria olhar a causalidade e intervenção da doença para além de um objeto biomédico ou mesmo de eco-saúde e, assim, adentrar no campo das relações ecossociais.

Outros ethos discordam de minha proposta. Alguns pesquisadores recomendam que se manipule geneticamente aves e gados para serem resistentes a estas doenças. Contudo, eles ignoram se tal manipulação permitiria a circulação destas linhagens entre o que agora seriam animais assintomáticos, antes de se espalharem em humanos decididamente não manipulados.

Recuando mais uma vez no tempo, a uma de minhas fontes de frustração com a abordagem epidemológica estritamente técnica: há nove anos escrevi sobre as falhas principiológicas presentes nos esforços da engenharia genética de patógenos:

“Para além da questão da acessibilidade do novo frango-frankenstein [frankenchicken], especialmente para os países mais pobres, o sucesso da gripe decorre em parte da sua capacidade de enganar e durar mais tempo do que a metáfora tecnológica da bala de prata sugere. Hipóteses amarradas a um modelo lucrativo de biologia são rotineiramente confundidas com expectativas sobre a realidade material, expectativas são confundidas com projeções, e projeções com previsões. Uma fonte de frustração é a dimensionalidade do problema. Há até mesmo entre os estudiosos comuns a percepção de que a gripe é mais do que mero vírion ou infecção; que ela respeita pouco os limites disciplinares (e planos de negócios), tanto em sua forma, quanto em seu conteúdo. Os patógenos usam regularmente processos acumulados em um nível de organização biocultural para resolver problemas que enfrentam em outros níveis, incluindo o molecular.“

O agronegócio sempre nos orienta a um futuro tecno-utópico para nos manter em um passado limitado pelas relações capitalistas. Nós somos girados em torno dos próprios rastros de mercadorias, selecionando, em primeiro lugar, novas doenças.



A emoção secreta (e o terror aberto) que os epidemiologistas sentem com um surto nada mais é do que uma derrota disfarçada de heroísmo.

A quase totalidade da profissão está atualmente organizada em torno de tarefas a posteriori, tal como o garoto do estábulo com uma pá a seguir atrás dos elefantes num circo. Sob o programa neoliberal, epidemiologistas e unidades de saúde pública são financiados para limpar a confusão do sistema, enquanto racionalizam até mesmo as piores práticas que levam ao surgimento de muitas emergências pandêmicas mortais.

Em um comentário sobre o novo coronavírus, um tal Simon Reid, professor de controle de doenças transmissíveis na Universidade de Queensland, nos trouxe um exemplo perfeito desta incoerência.

Reid pula de tópico em tópico e não consegue apresentar um todo a partir de suas observações tecnicistas. Tal tolice não é necessariamente uma questão de incompetência ou intenção maliciosa da parte de Reid. É, ao contrário, resultado das diretrizes contraditórias da universidade neoliberal.

Recentemente, esquerdistas norteamericanos duelaram sobre a existência da classe profissional-gerencial capitalista [professional-managerial class]. Enquanto os social-democratas da Jacobin censuram tal classe e se inclinam para uma administração Sanders, os stalinistas sustentam que os gerentes também são proletários. Evitarei o debate metafísico – como muitos deles podem dançar sob efeito de adrenalina? – mas gotaria de observar que se esta classe existe teoricamente na epidemiologia, eu os conheci em carne e osso. Eles vivem!

Reid e outros epidemiologistas institucionais estão na comissão de frente para limpar doenças de origem neoliberal – sim, inclusive fora da China –, ao mesmo tempo que se deparam com banalidades reconfortantes de que o sistema que os paga funciona. Trata-se de um duplo vínculo com o qual muitos profissionais escolhem viver, mais do que isso, prosperar, mesmo que as epidemiologias resultantes ameacem milhões de pessoas.

Reid até reconhece que os sistemas alimentar e econômico são partes da explicação para o Covid-19 (e para muitas das celebridades precursoras que participam dos reality shows epidemiológicos que rondam este século). Mas ao tratar especificamente desta protopandemia, ele propõe, parafraseando-o, que “Este horror absoluto tem uma graça salvadora -Viva!”, pois “a China tem sido uma fonte de surtos repetidos, mas ela, e uma OMS agora de propriedade do filantrocapitalismo, desenvolve um biocontrole exemplar”.

Devemos rechaçar a sinofobia, oferecer apoio material, e ainda assim lembrar que a China encobriu o surto da SARS em 2003. Pequim reprimiu as reportagens da imprensa e as denúncias da saúde pública, o que permitiu ao coronavírus espalhar-se pelo seu próprio país. As autoridades médicas de uma província onde o surto estava mais avançado não sabiam por que seus pacientes subitamente apareciam no pronto-socorro. A SARS se espalhou por vários países tão distantes como o Canadá e até hoje ainda sequer foi extirpada.

O novo século tem sido marcado pelo fracasso ou recusa da China em desfazer a sua quase perfeita tempestade de arroz, patos, aves industriais e produção de porcos, que tem conduzido a múltiplas variedades de gripes inovadoras. Este é considerado um preço para sua prosperidade.

Não se trata, no entanto, de um excepcionalismo chinês. Os EUA e a Europa também serviram como epicentros para novas gripes, por exemplo as recentes H5N2 e o H5Nx, bem como as suas multinacionais e representantes neocoloniais impulsionaram a emergência do Ébola na África Ocidental e do Zika no Brasil. Funcionários da saúde pública dos EUA encobriram o agronegócio durante os surtos de H1N1 (2009) e H5N2.

Talvez o melhor seria nos abster de escolher entre o fim do ciclo americano ou o início do ciclo chinês de acumulação do capital. Reid parece escolher ambos. Correndo o risco de ser acusado de “terceiro campismo”, a escolha de nenhum deles é outra opção. Mas, como temos que participar do Grande Jogo, por que não reivindicar um ecossocialismo capaz de restaurar a fenda metabólica entre ecologia e economia, entre urbano, rural e selvagem, impedindo a emergência do pior destes patógenos? Isto também significa adotar a solidariedade internacional com as pessoas comuns de todo o mundo.

Há que se realizar um comunismo criativamente distante do modelo soviético. Vamos entrelaçar juntos um novo sistema mundial, a libertação indígena, a autonomia do agricultor, a restauração e proteção dos processos naturais e as agroecologias localmente específicas que, ao redefinir a biossegurança, reintroduzem escudos imunológicos variados em gados, aves e plantações.

Vamos recolocar a seleção natural como um serviço ecossistêmico e deixar nossos animais e cultivos se reproduzirem no local, de modo que possam repassar para próximas gerações sua imunogenética testada para surtos.

Vamos reavalias as opções da epidemologia técnica.

Talvez eu tenha sido injusto com os Reids do mundo que, em razão da obrigação profissional, devem acreditar em suas próprias contradições. Mas, como quinhentos anos de guerra e pestes têm demonstrado, as fontes do capital, que servem a muitos epidemiologistas, estão mais do que dispostas a escalar montanhas feitas de sacos de cadáveres.

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