30 de setembro de 2024

O risco crescente de uma nova guerra eterna

A "vitória total" que Netanyahu e seu gabinete estão buscando sobre o Hezbollah não trará a segurança absoluta que os israelenses querem e precisam.

Fawaz A. Gerges
Fawaz A. Gerges é professor de relações internacionais na London School of Economics.


Créditos: Carl Court/Getty Images

A alegria imediata entre os israelenses sobre o ataque aéreo que matou o líder de longa data do Hezbollah, Hassan Nasrallah, na sexta-feira é prematura. A escalada dramática de Israel em seu conflito com o Hezbollah, o grupo militante apoiado pelo Irã, representa um sério risco de envolver Israel e os Estados Unidos em uma custosa guerra eterna — um resultado que não trará estabilidade nem paz a Israel ou ao Oriente Médio.

Não há dúvida de que o Hezbollah recebeu uma série de golpes severos nos últimos meses. Israel matou pelo menos quatro de seus principais comandantes, incluindo o Sr. Nasrallah, além dos ataques cuidadosamente planejados com pagers e walkie-talkies contra seus membros de base neste mês. Mas eliminar o Hezbollah como uma ameaça a Israel não pode ser alcançado apenas por meios militares. E longe de garantir o retorno seguro de cerca de 60.000 cidadãos israelenses deslocados de suas casas no norte do país — a meta declarada do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para a escalada atual — esse caminho pode apenas endurecer a determinação de dezenas de milhares de apoiadores do Hezbollah no Líbano e além.

Por mais satisfatório que o assassinato do Sr. Nasrallah possa parecer para aqueles que buscam a destruição do Hezbollah, é improvável que sua morte paralise o grupo por muito tempo. Israel matou o antecessor do Sr. Nasrallah, Abbas al-Musawi, em 1992, e o comandante sênior, Imad Mughniyeh, em 2008. O Hezbollah não apenas sobreviveu, mas cresceu em força. É difícil ver por que desta vez seria diferente. O segundo em comando do Sr. Nasrallah, Hashem Safieddine, um clérigo e primo do falecido líder que compartilhava sua visão de mundo, pode já ter assumido como o novo chefe de fato da organização.

O que Israel subestimou repetidamente é a asabiyya do Hezbollah, ou solidariedade social, sua vontade política e sua resiliência. O Hezbollah é uma organização profundamente institucionalizada que está inserida no tecido social e político do Líbano. Ele criou um vasto sistema de bem-estar que fornece alimentos e serviços para comunidades em todo o Líbano. Ele tem 13 legisladores eleitos no Parlamento e poderosos aliados nas forças de segurança do país. Sua ideologia predominantemente xiita também está impregnada de um ethos de vitimização, sacrifício e martírio, isolando-o contra perdas e desmoralização. Desde o estabelecimento do Hezbollah no início dos anos 1980, o grupo resistiu à perda não apenas de seus mais altos líderes, mas também de milhares de combatentes.

Como os Estados Unidos aprenderam no Afeganistão e no Iraque, derrotar uma insurgência comprometida ou um movimento de resistência é quase impossível. Como uma organização paramilitar não estatal, o Hezbollah pode continuar a usar a guerra assimétrica em seu próprio benefício, travando uma campanha de guerrilha sustentada que impede Israel de devolver os moradores do norte em segurança para suas casas.

Se Israel está sob a ilusão de que pode enfraquecer o Hezbollah tão efetivamente quanto enfraqueceu o Hamas, está errado. Estima-se que o Hezbollah tenha até 50.000 combatentes armados; em 2021, o Sr. Nasrallah se gabou de que o grupo tinha 100.000 combatentes treinados, embora essa afirmação seja difícil de verificar. Embora possa levar tempo para o grupo se recuperar, suas forças excedem em muito o número de combatentes do Hamas e outras milícias apoiadas pelo Irã na região. O Hezbollah tem dezenas de milhares de foguetes e mísseis em seu estoque, incluindo mísseis balísticos guiados.

E, ao contrário da Gaza bloqueada, o Líbano tem fronteiras abertas com a Síria, o que poderia permitir ao Irã reabastecer mais facilmente o arsenal do Hezbollah e permitir que ele travasse uma guerra prolongada. (Presumivelmente, isso é parte da razão pela qual o Irã ajudou a salvar o regime de Bashar al-Assad durante sua guerra civil.) Mesmo que o Irã não venha diretamente em auxílio do Hezbollah, a Guarda Revolucionária do país pode ser capaz de ativar seu chamado eixo de resistência, enfraquecido como pode ser, e coordenar combatentes qualificados da Síria, Iraque e Iêmen para ajudar no Líbano.

Como resultado, o Hezbollah, como uma força de combate, está posicionado para sobreviver até mesmo ao ataque aéreo israelense mais sustentado. Qualquer "vitória total" contra o Hezbollah exigiria que Israel lançasse uma invasão terrestre do Líbano — o que há sinais de que o exército israelense está se preparando para fazer — e se envolvesse em uma ocupação prolongada de pelo menos partes do sul do Líbano. Isso não só levaria a perdas severas entre os próprios soldados de Israel, mas também teria consequências catastróficas para a população civil do Líbano.

E no final ainda não haveria garantia de segurança de longo prazo para Israel, como a história demonstrou repetidamente. Em junho de 1982, Israel invadiu e ocupou partes do Líbano, incluindo, por um breve período, Beirute, pelos próximos 18 anos. A ocupação provou ser um fracasso estratégico, dando origem ao Hezbollah e levando à morte de milhares de civis. A guerrilha do Hezbollah forçou Israel a se retirar em 2000. O mesmo padrão ocorreu em um grau mais limitado quando Israel enviou forças ao Líbano novamente em 2006, resultando em mais de 100 baixas israelenses.

A "vitória total" que o Sr. Netanyahu e seu gabinete estão buscando sobre o Hezbollah não trará a segurança absoluta que os israelenses querem e precisam. Sempre que Israel decidir parar sua campanha militar, o que restará serão milhões de árabes traumatizados que viram seus irmãos e irmãs na Palestina e no Líbano serem massacrados com impunidade horrível. Esses sentimentos não diminuirão facilmente.

Se não forem resolvidas, as condições subjacentes que deram origem ao conflito atual — a subjugação dos palestinos pelo governo israelense e a negação de um estado palestino independente — só fomentarão as condições para mais conflitos. Sob tais circunstâncias, Israel será continuamente confrontado com combatentes endurecidos que foram radicalizados pelo sofrimento que impôs.

A única maneira de evitar uma catástrofe maior e circunstâncias que poderiam levar a região a uma guerra de anos — e os Estados Unidos mais diretamente ao derramamento de sangue — é que Israel imediatamente desescale militarmente no Líbano e obtenha um cessar-fogo permanente em Gaza. Por enquanto, isso parece um objetivo ilusório: apesar dos repetidos apelos das famílias dos reféns israelenses em Gaza e de um grande segmento do público israelense por um cessar-fogo, o Sr. Netanyahu até agora se recusou a concordar com um, assim como o Hamas.

No entanto, é o único caminho a seguir. A arrogância de Israel em seus ataques ao Líbano foi possibilitada pelo apoio militar de ferro dos Estados Unidos e pela cobertura diplomática para seu aliado. Nesse sentido, os Estados Unidos não têm sido um verdadeiro amigo de Israel. Israel não conhecerá a paz duradoura até que reconheça que sua segurança a longo prazo depende da reconciliação com os milhões de palestinos em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Seus líderes devem encontrar um compromisso político que finalmente permita que Israel seja totalmente integrado à região. A normalização de cima para baixo com autocratas árabes não é suficiente.

A chave para interromper o ciclo de décadas de derramamento de sangue e as circunstâncias que permitiram que a influência iraniana crescesse é o fim da ocupação israelense de terras palestinas e a concessão da autodeterminação palestina.

Fawaz A. Gerges, professor de relações internacionais na London School of Economics, é autor de “What Really Went Wrong: The West and the Failure of Democracy in the Middle East”.

Não existe escalada para desescalada

Autoridades israelenses citaram a necessidade de "escalada para desescalada" como motivação para seu ataque contínuo ao Líbano. Essa teoria tem uma longa e malfadada história no pensamento da política externa americana, onde serviu como um fato consumado para derramamento de sangue.

Emma Claire Foley

Jacobin

A fumaça sobe dos locais de impacto perto de um assentamento após o ataque do exército israelense na cidade de Khiam, perto de Nabatieh, Líbano, em 28 de setembro de 2024. (Ramiz Dallah / Anadolu via Getty Images)

Na semana passada, Israel lançou uma onda de investidas aéreas contra o Líbano como parte de um ataque ao Hezbollah, bombardeando pesadamente áreas densamente povoadas ao sul de Beirute. Líderes militares israelenses alegaram que os ataques deixaram o Hezbollah “uma organização diferente”.

No entanto, Israel parece determinado a expandir sua campanha em Gaza para uma guerra regional. Como a Axios relatou, “oficiais israelenses disseram que seus crescentes ataques contra o Hezbollah não têm a intenção de levar à guerra, mas são uma tentativa de alcançar a ‘desescalada por meio da escalada’.”

Os comentaristas agarraram-se à lógica sem sentido deste último pedaço de fraseado, o tipo de contradição óbvia que parece sugerir uma fonte que não sente que precisa convencer ninguém. Mas “escalar para desescalar” sempre foi uma má ideia. Tem uma longa linhagem no pensamento da política externa estadunidense como uma teoria poderosa, mas, em última análise, inventada, a partir da própria estratégia nuclear da Rússia.

Ataques limitados para restringir a guerra

Aideia tem suas raízes apócrifas em iterações da doutrina militar da Rússia, que formalmente estabelece a política militar do país. Este é um discurso em mais de um afastamento da realidade do conflito armado: ele lida com armas nucleares, que não foram usadas em guerras em quase oito décadas, e declarações publicamente disponíveis de doutrina militar, um guia imperfeito de como um país pode realmente se comportar em uma guerra.

Não há nenhuma declaração de tal doutrina em versões publicamente disponíveis da doutrina militar da Rússia do período da Guerra Fria. Seu primeiro uso como frase ocorreu em uma audiência do Senado em 2015. Conforme desenvolvido por pensadores da política externa estadunidense, “escalar para desescalar” passou a significar intensificar um conflito por meio de “ameaças coercitivas, incluindo uso nuclear limitado”, de tal forma que forçará o outro lado a encerrar o conflito, em termos favoráveis ​​àquele que está fazendo a escalada.

A partir daí, a ideia se desenvolveu e tomou forma na efervescência da discussão de política externa baseada em Washington. Em 2017, a estratégia foi citada como a causa raiz da modernização nuclear da Rússia, que lhe permitiria “‘desescalar um conflito’ usando um pequeno número de ataques”. A modernização, que na prática significa substituição ou renovação de armas nucleares e infraestrutura de apoio, é um projeto no qual Rússia, China e Estados Unidos despejaram enormes somas à medida que as forças nucleares criadas em meados do século XX envelheceram e as negociações de controle de armas naufragaram (saíram de moda), investindo centenas de bilhões para garantir que as armas nucleares farão parte da política global nas próximas décadas.

Em 2018, o conceito estava na revisão da postura nuclear dos EUA, outra declaração formal de doutrina divulgada por cada nova administração. A revisão da administração Trump declarou que a Rússia “avalia erroneamente que a ameaça de escalada nuclear ou o primeiro uso real de armas nucleares serviria para ‘desescalar’ um conflito em termos favoráveis ​​à Rússia. Essas percepções equivocadas aumentam a perspectiva de erros de cálculo e escalada perigosos.”

A ideia de perpetrar atos de violência cada vez mais intensos até que seu oponente desista é bem próxima da proposição básica do conflito armado, e a ideia de que armas nucleares têm algum papel nesse processo tem sido parte das discussões estratégicas baseadas nos EUA desde a Guerra Fria. Mas o fato de que analistas dos EUA que deram vida e pernas ao conceito estavam ostensivamente apenas explicitando uma teoria cujo verdadeiro lar estava na mente dos planejadores de guerra nuclear russos é importante. O conceito foi usado para explicitar toda uma gama de decisões que a Rússia tomou sobre seu arsenal nuclear na época, mas acima de tudo, sua suposta disposição de conduzir um ataque nuclear “limitado”.

O que seria limitado sobre o uso de uma bomba nuclear? Em teoria, poderia envolver uma arma nuclear menor do que aquelas usadas em Hiroshima e Nagasaki no final da Segunda Guerra Mundial. Poderia ocorrer em uma área menos populosa do que aqueles ataques tiveram, talvez diminuindo o custo humano imediato. Mas, acima de tudo, seria limitado porque um país em plena posse das armas nucleares de que precisaria para responder a um ataque nuclear em espécie, em vez disso, decidiria não fazê-lo, escolhendo recuar da borda de uma guerra nuclear em grande escala.

“Escalada para desescalada” eventualmente atraiu uma massa crítica de avaliações e caiu em desuso como conceito, embora dentro dos círculos de política externa, a questão de se a Rússia estaria disposta a cumprir as ameaças nucleares que fez no contexto da guerra na Ucrânia com um ataque nuclear “limitado” (ou menos limitado) ainda seja debatida. Mas suas deficiências como conceito permanecem, assim como a irracionalidade fundamental em que se baseia. Ele transfere a responsabilidade pela escalada “real” para o oponente, elevando o patamar para os negócios como de costume — os líderes militares israelenses podem descrever seus ataques como “levando à guerra”, e não para todos os efeitos a guerra em si, contanto que seus oponentes não tenham tomado quaisquer medidas que possam persuadi-los a parar sua campanha de bombardeio.

Como muitas outras teorias de guerra que mantêm alguma credibilidade nas discussões de política externa tradicionais, escalar para desescalar pressupõe que o lado que está escalando pode manter um nível de controle sobre todos os aspectos de uma situação de conflito que se mostrou irrealista na prática. Mais do que isso, porém, pressupõe que escalar um conflito é um passo dado com um plano realista para o que vem depois — o que provavelmente seria muito diferente da insistência na realização total de objetivos extravagantemente destrutivos que parece estar por trás de muitos conflitos contemporâneos, e certamente o ataque de Israel a Gaza e os objetivos de guerra regionais expandidos. Aqui, a desescalada não é uma abordagem séria para gerenciar um conflito, mas sim uma demanda por capitulação total dos adversários, ao custo de uma escalada cada vez maior.

Para tomar o 11 de setembro e o 7 de outubro como dois exemplos, dado como os Estados Unidos e Israel responderam a ataques convencionais que foram, quando medidos em relação à escala de destruição que as armas nucleares poderiam causar, bem pequenos, é difícil imaginar qualquer um respondendo a um ataque nuclear com contenção para salvar o mundo. Países como os Estados Unidos e Israel parecem sempre achar mais fácil imaginar seus adversários tomando a decisão de limitar a destruição da guerra — nuclear ou não — no interesse de uma paz mais ampla.

Colaborador

Emma Claire Foley é uma escritora e cineasta que mora em Nova York. Seus textos e comentários apareceram na Newsweek, NBC, the Guardian e em outros lugares.

O fantasma imortal de Karl Marx

Os críticos liberais adorariam banir o espectro de Karl Marx do discurso político. Mas seu fantasma os assombrará enquanto eles se recusarem a confrontar a percepção central do marxismo: a realidade do conflito de classes.

Dustin Guastella

Lápide de Karl Marx no Cemitério East Highgate em Londres, Inglaterra. (John van Hasselt / Corbis via Getty Images)

Tradução / Joseph Heath, um renomado filósofo acadêmico do Canadá, publicou dois ensaios proclamando e detalhando a morte do marxismo.

Seu primeiro ensaio, “John Rawls e a Morte do Marxismo Ocidental” é estimulante e envolvente. Mas enquanto Heath sabe muitas coisas sobre Marx e o marxismo, escreve como se soubesse as primeiras e últimas coisas sobre eles (ele não está sozinho nisso; podemos apenas supor que seja uma tendência ocupacional). Em resposta, Vivek Chibber forneceu uma defesa competente do que está vivo e morto no marxismo. A partir daí, Heath escreveu um segundo ensaio, “Estágios-chave no declínio do marxismo acadêmico”. Apesar de seu título decididamente mais modesto, este também visa cravar ainda mais pregos no “caixão da teoria marxista”.

O primeiro ponto a ser destacado é que os liberais têm declarado o marxismo morto desde que o marxismo nasceu. E esses legistas são quase sempre liberais — os reacionários acham o marxismo permanentemente vivo, corpóreo e perigoso, uma ameaça constante que precisa ser eliminada. Os conservadores moderados, por sua vez, pensam no marxismo como espectral ou sobrenatural e, portanto, imortal. Mas os liberais estão sempre alegando que ele está morto. Isso não quer dizer que eles estejam necessariamente errados, mas nunca parecem esperar que ele volte à vida. No entanto, a cada poucos anos, jornalistas e acadêmicos respeitáveis, geralmente os mesmos que escrevem presunçosamente sobre como o marxismo sempre esteve condenado, são forçados a escrever grave e sabiamente sobre por que “o marxismo está de volta”.

Em nossa época, o socialismo ressuscitou do túmulo após a crise financeira de 2008. Poucos anos depois, esta revista foi fundada e teve sucesso, surpreendentemente, em promover ideias marxistas há muito mortas entre uma nova geração de jovens que estavam muito vivos. Poucos anos depois, um socialismo recém-revivido encontrou sua expressão política e brevemente ameaçou parlamentos e congressos em todo o mundo. Alguns desses experimentos em política democrática igualitária obtiveram mais sucesso do que outros, mas a maioria eventualmente vacilou.

Mais de uma década depois que esse ciclo começou, e como outras correntes radicais passaram a dominar e deslocar análises socialistas, é justo dizer que o marxismo da Esquerda Millennial está de fato bem morto. Mas isso só prepara o cenário para um novo ciclo no qual o marxismo quase certamente renascerá. Por quê? Não porque os marxistas sejam particularmente charmosos ou agradáveis ​​— na verdade, eles frequentemente não são — mas porque fazem perguntas que os liberais não fazem e fornecem respostas que os liberais não podem fornecer.

Ou seja, o marxismo tem muitas vidas porque os principais insights de Marx são genuínos — poderíamos até chamá-los de verdades.

O passo em falso de Heath

Heath descreve vários “estágios” no suposto desvendamento do marxismo. Algumas de suas observações são obviamente verdadeiras: é difícil defender qualquer versão da teoria do valor-trabalho sem cair na metafísica, e é o caso de que os marxistas frequentemente confiam em uma teoria rígida e tecno-determinista da história. No entanto, outras alegações são claramente falsas, como a declaração de Heath de que Marx falhou em entender que as recessões “são frequentemente precedidas por crises no sistema bancário”. Na verdade, Marx gastou uma quantidade excessiva de tempo explicando que quase todas as crises econômicas começam no setor bancário.

Outro passo em falso é sua alegação de que “todo o modo de pensar” sobre crises capitalistas foi “revertido por John Maynard Keynes”, cuja análise superior demonstrou as fraquezas explicativas do marxismo. Ironicamente, foi o economista marxista Michał Kalecki que se adiantou a Keynes em seu ensaio pioneiro “Uma tentativa de teoria do ciclo de negócios” — publicado três anos antes de Keynes fazer sua suposta descoberta. Pela lógica de Heath, Kalecki, trabalhando sob o dogma marxista, nunca deveria ter descoberto a teoria da demanda efetiva — e certamente não antes do liberal Keynes. Isto é, a menos que se decida que qualquer insight válido feito por um marxista não é realmente marxismo. E é precisamente isso que ele faz.

O argumento central de Heath é que o que os socialistas estão sempre falando não é realmente marxismo, não importa o quanto desejemos que seja, é tudo apenas “capitalismo de bem-estar social”. Ele argumenta:

Não importa o quão veementemente os autointitulados socialistas possam denunciar o capitalismo, quando você os pressiona sobre o que eles imaginam ser a alternativa, a resposta geralmente é uma versão infundada do “socialismo de mercado”. Isso é bom, até certo ponto, exceto que, uma vez que você aceita a necessidade de os mercados definirem preços, isso basicamente deixa todo o ar sair dos pneus, porque o “socialismo de mercado” retém a maioria das características que as pessoas tradicionalmente não gostam no capitalismo (por exemplo, empresas orientadas ao lucro, desemprego, poluição, recessões, pagamentos a provedores de capital, mercantilização, alienação, etc.).

O problema para os socialistas é que, quando começam a pensar seriamente sobre como uma economia socialista funcionaria, eles acabam em uma ladeira escorregadia, onde o comprometimento com uma derrubada revolucionária do capitalismo gradualmente se reduz a uma série de propostas mornas para a reforma da governança corporativa.

Ele está certo, claro, mas não percebe o quanto está certo. Muitos marxistas se tornaram “reformistas” logo após a morte de Marx, buscando mudanças graduais e incrementais em vez de buscar uma derrubada completa do sistema. Há até evidências de que o próprio Marx se inclinou para o reformismo mais tarde na vida. Então, se os marxistas de hoje são todos apenas “capitalistas de bem-estar social”, não deveríamos simplesmente abandonar o marxismo completamente? Não tão rápido. Sem Marx e o marxismo, não haveria “capitalismo de bem-estar social” em primeiro lugar. Ou seja, sem insights marxistas e sem a influência muito real do marxismo na política mundial, nunca teríamos alcançado os grandes avanços na reforma social-democrata que os liberais agora tomam como garantidos.

Isso deveria ser óbvio e demonstra o que é verdadeiramente valioso na teoria marxista. No entanto, Heath, como tantos liberais, é cego ao que torna o marxismo tão atraente — tanto que, em dois ensaios dedicados exclusivamente à teoria marxista, ele falha em reconhecer ou mesmo mencionar a contribuição teórica mais significativa oferecida pela tradição.

Parafraseando James Carville: é o sistema de classes, estúpido.

O Estado de bem-estar e o problema de classe

Sendo um bom liberal, Heath certamente admira os famosos e generosos estados de bem-estar social da Escandinávia. Ele se pergunta como os estados nórdicos conseguiram criar tais sistemas, onde tantos outros falharam? Por que todo partido de centro-esquerda pensante no mundo afirma abertamente aspirar a um estado de bem-estar social dinamarquês, mas quase nenhum o alcança? Será que as pessoas simplesmente rejeitam essa visão? Obviamente não, porque muitos partidos progressistas alcançam maiorias políticas e ainda assim falham em instituir o Projeto Escandinávia. Será que eles sonharam com esquemas que não são suficientemente deferentes às regras de mercado? Desde pelo menos a década de 1990, esse claramente não tem sido o caso. Então por que o “capitalismo de bem-estar social” — sem falar na social-democracia, muito menos no socialismo de mercado — parece tão ilusório? Se é tão eminentemente razoável, como Heath argumenta, por que é tão praticamente impossível?




Poderíamos listar os inúmeros fatores contingentes que podem ter causado o fim desta ou daquela política, ou deste ou daquele partido, ou deste ou daquele governo. Mas além de todas as razões históricas e contextuais específicas, há uma teoria geral disponível para nós que explica por que não podemos ter coisas boas. E o que é bonito sobre essa teoria é que, uma vez que a entendemos, não precisamos saber os nomes e biografias de inúmeros políticos individuais, suas crenças pessoais ou qual escândalo precedeu sua chegada ou saída do poder. Não precisamos saber os milhares de motivos pelos quais centenas de representantes do Congresso tomam milhares de decisões particulares que parecem se combinar para destruir a esperança de reformas sociais-democratas. Precisamos simplesmente saber dois fatos: que existe uma classe dominante e que ela não quer essas reformas.

Os ricos e influentes no topo da sociedade, juntamente com as instituições que controlam, têm interesse direto em resistir a impostos mais altos e restrições à sua capacidade de investir seu dinheiro da maneira que escolherem. E quando seu dinheiro é ameaçado, eles podem exercer poder de veto sobre o Estado democrático; eles podem afundar a “confiança empresarial” ou reter investimentos para orientar as políticas econômicas de nações inteiras. Este é um problema que não pode ser resolvido pela política monetária keynesiana, mensagens mais persuasivas ou esquemas de bem-estar favoráveis ​​ao mercado. É um problema político que requer uma solução política.

Foi o marxismo, e nenhuma outra teoria, que desvelou os mecanismos impessoais pelos quais a classe dominante governa. Esse domínio não é simplesmente o resultado de uma conspiração de homens de monóculo em salas cheias de fumaça (embora haja isso), mas sim decorre da compulsão maçante de motivos econômicos: competição, interesses racionais e maximização do lucro. A teoria de classe marxista fornece um esboço claro e consistente de como a sociedade capitalista moderna opera e identifica todos aqueles obstáculos muito resistentes à reforma social. Os liberais reconhecem isso, mas parecem ter a intenção de obscurecer a realidade disso. Agindo assim, eles se apegam a uma visão do mundo que sabem ser falsa, uma visão na qual a Razão Pura e a luz da ciência prevalecem sobre os interesses materiais cegos. No liberalismo, a classe social figura desajeitadamente. Na realidade, ela estrutura quase tudo.

Para confrontar o imenso poder concentrado da classe dominante no topo da sociedade, precisamos organizar a grande maioria do outro lado. Foi o marxismo, e somente o marxismo, que apontou esse fato. Pode ser verdade — e podemos admitir que é verdade — que os marxistas se enganaram, infinitamente, em como apelar à classe trabalhadora e para quais fins práticos seu programa político pode pender. Mas é a tradição marxista que revela que a classe trabalhadora é a chave. Os apelos políticos devem ser organizados como tal. Pensar na política como uma luta de classes democrática e organizar partidos de massa, conscientemente da classe trabalhadora, com programas políticos baseados em teorias econômicas marxistas, é o que permitiu que os suecos, dinamarqueses e noruegueses estabelecessem com sucesso Estados socialmente generosos. Por outro lado, é a ausência contemporânea dessa tendência política que deu origem à clara crise dos partidos de centro-esquerda e das sociedades liberais em todo o mundo.

Alguém pode não gostar de Marx, o homem, alguém pode refutar teorias marxistas sobre isso ou aquilo, alguém pode até mesmo falsificar previsões marxistas sobre grandes crises. Mas é difícil negar a verdade fundamental de que toda sociedade é uma sociedade de classes e que a classe dominante tem um interesse vital em manter seu domínio — um domínio que só pode ser desafiado pela ação concertada da maioria dos trabalhadores, seja por meios econômicos, como a greve, ou políticos, como o voto.

Encontrar muitas falhas no pensamento de Marx não invalida essa afirmação central. Rejeitar a contribuição teórica central de Marx porque muitos marxistas dogmáticos têm uma fé religiosa na crise revolucionária que se aproxima seria como dizer que não se pode aceitar a teoria do Big Bang porque se discorda da fé do padre Georges Lemaître em Deus. Afirmar, como Heath poderia, que Marx não merece nenhum crédito especial por ser o primeiro a sondar a questão de classe na sociedade capitalista seria como dizer que Darwin não merece nenhum crédito especial pela teoria da evolução.

Agitação acadêmica

Anegação de Heath dos insights de Marx o leva a cometer o maior erro em seu argumento. Lembre-se, ele pretende explicar por que o marxismo acadêmico declinou; por que há tão poucos marxistas em departamentos de filosofia, departamentos de letras, economia, sociologia e o resto. Isso não deveria ser um grande mistério. Na verdade, não há necessidade de uma história intelectual do marxismo para explicá-lo: o marxismo é tremendamente, até mesmo catastroficamente, não lucrativo como um programa de pesquisa para acadêmicos jovens e ambiciosos correndo em programas de pós-graduação e de pós-doutorado hoje.

A ideologia da academia reflete completamente os incentivos econômicos da universidade contemporânea e há muito pouco espaço para o pensamento crítico, especialmente um pensamento crítico tão profissionalmente inibidor quanto o marxismo. A melhor pergunta é: Por que o marxismo era tão popular na década de 1970?

Para essa resposta, também, podemos olhar para Marx. O sistema universitário do pós-guerra, abastecido com fundos públicos e relativamente isolado das influências corruptoras do mercado e de doadores privados, absorveu uma geração de jovens em ascensão de famílias de classe média e trabalhadora que, ao confrontar as crises capitalistas de sua época, se voltaram para Marx. Como eles ocupavam posições seguras em grandes universidades de pesquisa, podiam perseguir esses interesses sem navegar por uma luva competitiva de conferências acadêmicas, cada uma delas impondo conformidade com as tendências predominantes do mercado de trabalho acadêmico. Seus interesses não foram moldados pela tentação de oportunidades lucrativas oferecidas por centenas de fundações corporativas e organizações sem fins lucrativos. Eles sentiram pouca pressão para publicar constantemente e não perecerem. Nem precisaram desenvolver uma “marca” independente de mídia social para se promoverem implacavelmente a fim de garantir um emprego decente.

Em suma, podemos entender melhor as razões pelas quais o marxismo acadêmico declinou por meio da aplicação da própria teoria marxista, em vez de atribuí-la à falta de poder explicativo. Se assumíssemos, como Heath parece fazer, que as vertentes teóricas na academia sobrevivem ou declinam com base em seu poder explicativo, teríamos dificuldade para explicar o grande número de “interseccionalistas” ou foucaultianos ou qualquer tipo de teoria pseudoradical passageira que esteja atualmente circulando pelos corredores de Berkeley, Harvard e da Universidade de Nova York. Pois, quaisquer que sejam as divergências que Heath possa ter com o marxismo, ele não pode negar que mesmo sua aplicação mais vulgar realmente explica muito do que acontece no mundo, enquanto os seguidores mais sofisticados de Jacques Derrida parecem não conseguir se explicar em linguagem simples, muito menos qualquer coisa que aconteça no mundo real. No entanto, os primeiros são uma espécie em extinção, enquanto os últimos estão prosperando.

De certa forma, Heath estava em terreno muito mais firme ao defender que Rawls assassinou o marxismo, em vez de argumentar que o marxismo foi vítima de suas próprias inconsistências suicidas. Aqui, pelo menos, ele está se inclinando na direção certa. Como uma teoria social, o marxismo não tem um norte moral. Ele adota sua postura ética da sabedoria recebida do ensino moral ocidental, mas não fornece, ou elabora, um sistema moral que decorra dos insights fornecidos em sua teoria social. Como resultado, muitos marxistas se voltaram para Rawls na esperança de resolver esse problema, uma tendência que Heath identifica corretamente.

Infelizmente, Rawls não conseguiu resolver o vazio moral do marxismo, principalmente porque ele não se propôs a fazê-lo. Seu projeto era fornecer a justificativa moral para o socialismo liberal. Ele buscou completar o liberalismo como um sistema teórico tornando seu objetivo ético socialista, tentando reconciliar o individualismo liberal com o igualitarismo social — e conseguiu. Ao fazer isso, criou um argumento muito atraente e logicamente consistente para o socialismo. Um que era totalmente independente do marxismo.

Mas, apesar de sua elegância teórica e defensabilidade moral, o socialismo rawlsiano é na verdade mais impotente do que a variedade marxista. Isso porque, embora Rawls ofereça um argumento sobre como o mundo deveria ser, ele não explica como o mundo funciona, nem como podemos chegar à terra prometida. Pior, o comprometimento de Rawls com o liberalismo — a ideologia política mais compatível com a modernidade capitalista — parece, na melhor das hipóteses, inadequado para desafiar os princípios da sociedade de mercado. Rawls pode ter completado e aperfeiçoado o liberalismo como um sistema teórico — ironicamente, ao incorporar insights socialistas de longa data — mas, ao fazê-lo, mostrou o utopismo do projeto liberal. Com todo o respeito a Heath, talvez depois de Rawls, não é o marxismo, mas o liberalismo que se tornou ocioso.

Claro, o marxismo pode ter sofrido mais uma de suas muitas mortes, mas é difícil imaginar que ele não ressurgirá.

Colaborador

Dustin Guastella é diretor de operações do Teamsters Local 623 na Filadélfia e pesquisador associado do Center for Working-Class Politics.

Megalopolis é o triste nadir de Francis Ford Coppola

Francis Ford Coppola já foi um verdadeiro titã cinematográfico criando experiências inesquecíveis no cinema. Mas Megalopolis, sua saga exagerada do império americano em decadência, marca o declínio drástico de seus poderes como cineasta.


Adam Driver em Megalopolis. (Lionsgate Films)

A turbulenta estreia americana de Megalopolis é um evento melancólico por vários motivos. Principalmente porque marca o declínio drástico dos poderes de Francis Ford Coppola como cineasta, e pode acabar sendo o trabalho fracassado que encerra sua longa carreira. Mas também porque os comentários críticos em torno do filme, sejam positivos ou negativos, são em geral extremamente deprimentes. As poucas avaliações positivas tendem a incitar o público à necessidade de se sentir grato por este filme, ou qualquer outro filme que não seja um filme de super-heróis ou uma sequência de uma franquia ou uma reinicialização cansada de um sucesso de décadas, porque a expressividade humana no cinema está claramente condenada.

Mas um filme não é bom porque é o equivalente cinematográfico do último dodô, uma espécie em extinção que deve ser homenageada ao deixar de existir. Mesmo que Megalopolis fosse de alguma forma o Último Filme Verdadeiro, ainda seria um espetáculo bobo, uma bagunça pueril com algumas imagens bonitas, um tédio ideologicamente rançoso, um fracasso.

Megalopolis está indo muito mal com o público que vai ao cinema e sendo soterrado em críticas negativas, mas é notável o quão cuidadosa e gentilmente alguns críticos estão expressando suas reações ao épico de ficção científica exagerado. Ciente da lendária carreira cinematográfica de Coppola e ciente de que esse espetáculo cinematográfico amplamente autofinanciado pode muito bem ser o canto do cisne do diretor de oitenta e cinco anos, Manohla Dargis do New York Times escreve: "No final, o que importa é o filme, um testamento impetuoso, muitas vezes bonito, às vezes coagulado e nuamente pessoal. É um pouco louco, mas nossos filmes poderiam usar mais loucura, mais paixão, sentimento e coragem.”

Nossos filmes certamente poderiam usar tudo isso, mas há diferentes tipos de loucura, paixão, sentimento e coragem, e nem todos são salutares. Por exemplo, Vindicating Trump, de Dinesh D’Souza, um “documentário” atualmente em cartaz nos cinemas, provavelmente tem várias dessas qualidades.

Dargis também observa que Megalopolis representa um dos filmes mais experimentais de Coppola, como One from the Heart e Rumble Fish, e "poderia ter sido recebido mais generosamente... se o nome de Coppola não tivesse sido anexado".

Certamente não. O nome de Coppola anexado pode significar expectativas maiores, mas também significa que atenção principalmente respeitosa será dada. Qualquer rico Jane ou John Doe que decidisse gastar uma parte significativa de sua fortuna pessoal fazendo um filme como Megalopolis nunca teria conseguido um acordo de distribuição ou um lançamento comercial — até mesmo Coppola lutou para conseguir um. E se eles de alguma forma conseguissem, a zombaria escaldante em resposta teria arrancado a carne de seus ossos.

Caso você não esteja acompanhando esse fiasco do mundo cinematográfico, Megalopolis se passa em um império futurista fracassado representando os Estados Unidos da América, com Nova Roma representando a cidade de Nova York, onde um arquiteto brilhante chamado Cesar Catilina (CC, interpretado por Adam Driver), presidente da autoridade de design em Nova Roma, se esforça para criar moradias projetadas de forma inventiva que inspirem as pessoas a imaginar uma maneira melhor de viver. No entanto, como "as pessoas" estão assistindo seus prédios de apartamentos miseráveis ​​sendo demolidos para dar lugar a esse projeto público visionário, deixando-os desabrigados, CC está recebendo alguma resistência.

Ao longo do filme, os cidadãos comuns de Nova Roma são representados como, essencialmente, a multidão, sem noção e cruel, incapazes de entender a visão inspirada de Cesar que é para o seu próprio bem. Não é nenhuma surpresa quando Coppola coloca chapéus vermelhos MAGA em suas cabeças vazias enquanto são instados a se revoltar por políticos egoístas.

Aubrey Plaza em Megalopolis. (Lionsgate Films)

Também se opondo à visão de Cesar está o prefeito conservador e conservador, Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito); o primo ciumento, intrigante e de gênero fluido de Cesar, Clodio Pulcher (Shia LaBeouf), que tenta reunir o povo contra Cesar; e a mãe lunática de Cesar, Constance Crassus Catilina (Talia Shire), que o odeia por razões que nunca são esclarecidas.

Para complicar ainda mais a vida de Cesar estão sua namorada atual, a ambiciosa especialista em mídia Wow Platinum (Aubrey Plaza), que se voltará contra ele vingativamente quando ele a rejeitar; o tio de Cesar, Hamilton Crassus III (Jon Voight), um banqueiro poderoso; a filha festeira do prefeito, Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), que se apaixona por Cesar; e Vesta Sweetwater (Grace VanderWaal), uma estrela pop adolescente e reverenciada "virgem vestal" que acaba envolvendo Cesar em um escândalo.

As únicas pessoas que são consistentemente pró-Cesar são seu motorista e braço direito, Fundi Romaine (Laurence Fishburne), que também narra o filme; Jason Zanderz (Jason Schwartzman), um membro devoto da comitiva de Cesar; e a animada esposa do prefeito, Teresa Cicero (Kathryn Hunter). Caso contrário, são todos movimentos de poder implacáveis ​​e sexo manipulador entre os plutocratas.

Muito depende se o personagem de Cesar pode manter o centro da tela como um anti-herói convincente. Ele é um visionário aparentemente frio servindo a uma causa ética superior que não está interessado na vida das pessoas comuns, mas também é um homem atormentado lamentando a morte de sua amada esposa. E é um pouco surpreendente notar que Adam Driver, um excelente ator, simplesmente não consegue fazer isso. Seja ele mal escalado para esse papel de Grande Homem, ou mal dirigido, ou o papel seja apenas estupidamente concebido desde o início, Driver se debate dentro de seus perímetros, tentando dar um soco em uma grande cena emotiva após a outra que parece desconectada, desmotivada e levemente cômica.

A cena de abertura mostra Cesar no topo de um arranha-céu, saindo com medo, decidido a cometer suicídio. Vocês, cinéfilos, reconhecerão imediatamente a ascensão total de Coppola do filme dos irmãos Coen The Hudsucker Proxy (1994), especialmente quando Cesar sai da saliência e imediatamente usa seu dom mágico para parar o tempo e evitar sua própria morte. Lá está o pobre Adam Driver, seu corpo desengonçado e parecido com uma cegonha pendurado para a frente no espaço enquanto ele olha para a rua lá embaixo, parecendo bobo.

Em The Hudsucker Proxy, que é uma comédia, o suicídio do personagem principal é finalmente interrompido pelos poderes do "cronometrista", um velho negro sábio que vive na torre do relógio no centro da cidade moderna representativa, uma torre do relógio que é a chave para o funcionamento do mundo inteiro. Ele também narra os eventos do filme. (Megalopolis tem Fundi Romaine como o velho negro sábio narrador.)

Esta é apenas uma de uma série de citações inúteis de outros filmes. Outra é a cena em que Julia Cicero vai ao escritório da cobertura de Cesar para conhecê-lo pela primeira vez. Coppola a encena em termos de outro encontro crucial pela primeira vez na obra-prima de Michael Powell e Emeric Pressburger The Red Shoes (1948). Naquela cena, o ávido jovem compositor promissor Julian Craster (Marius Goring) chega ao escritório da cobertura do brilhante empresário de balé Boris Lermontov (Anton Walbrook) para coletar uma carta raivosa que ele escreveu e que, após reflexão posterior, percebeu ser infantil.

Lermontov é um Grande Homem vestindo uma túnica opulenta e sendo servido com um café da manhã elaborado, e a habilidade soigné de Walbrook de transmitir a insularidade meticulosa e a verdadeira excentricidade do gênio é a chave para toda a cena. Lermontov é aparentemente indiferente às preocupações do jovem Craster, mas ele reconhece algo interessante no compositor cabeça quente, e sua troca fatídica leva Craster a ser contratado para trabalhar com a orquestra de balé, o início de uma grande carreira própria.

Em Megalópolis, Cesar está sendo servido com seu café da manhã de Grande Homem por Fundi Romaine quando Julia Cicero chega ao seu escritório na cobertura para pegar uma foto de tabloide que ela havia furiosamente desfigurado e enviado a ele, que, após reflexão posterior, ela percebeu que era infantil. Cesar anuncia sua indiferença a Julia Cicero e todas as outras pessoas que não são intelectuais visionárias como ele. Mas então ele vê algo interessante na jovem princesa do clube, e sua troca fatídica leva a um caso de amor que blá blá blá.

Still de Megalopolis. (Lionsgate Films)

É uma cena terrível, desajeitadamente encenada em imitação infrutífera de um filme infinitamente melhor, e realmente mostra a situação de Adam Driver no papel mal concebido de Cesar Catilina, sendo obrigado a anunciar em diálogos grosseiros o que deveria estar implícito em cada olhar e gesto. Além disso, a vida amorosa de Cesar não é nem de longe tão interessante quanto o estudo de Powell e Pressburger sobre o impulso para a grandeza artística, um processo angustiante, mesmo que pareça, que impulsiona The Red Shoes.

Outras referências ao filme incluem a cena de morte flutuante subaquática de Night of the Hunter (1955), de Charles Laughton, e uma citação aleatória do filme noir/melodrama de 1945 Mildred Pierce, dada à víbora de uma mãe de Cesar: "Acho que os crocodilos têm a ideia certa — eles comem seus filhotes". Em um ponto, Cesar recita o solilóquio de Hamlet "ser ou não ser". Provavelmente há muitos outros que não peguei, e certamente há uma série de cenas comemorando o poder assustador do cinema mudo.

A reflexividade constante, chamando a atenção para o filme como filme, como uma cena da imagem que estamos olhando queimando, queimando e derretendo como se fosse um celuloide antigo altamente inflamável, é um metamovimento que me escapa completamente. O que Coppola está tentando transmitir em tantas referências à história do cinema? O que isso tem a ver com sua saga já exagerada do império americano fracassado que supostamente ecoa o destino do antigo império romano? Não faço ideia, além da suposição de que obviamente isso obceca Coppola, então entra no filme.

Este é um filme que faz você sentir pena dos atores, mesmo atores muito bem pagos, porque nada pode compensá-los por sua participação em algumas dessas cenas mortificantes. Nunca pensei que escreveria "pobre Shia LaBeouf", mas seu personagem Clodio é grotescamente concebido, e o faz gargalhar malevolamente sobre suas tramas malignas como uma bruxa de Halloween em um tour mal-assombrado de casa mal-assombrada. Coppola não tem problema em tratar seriamente o velho clichê de gênero fluido e sexualidade como marcadores de fraqueza depravada que tornaram os épicos bíblicos de Hollywood da era dos estúdios e as sagas de espada e sandália tão exagerados e hilários para as gerações posteriores.

A julgar por este filme — e os escândalos de assédio sexual em torno de sua produção — Coppola também não tem problema em marginalizar as mulheres em papéis tradicionais degradantes, mesmo em um retrato de uma sociedade futurista, então ele apresenta a esposa fiel e solidária; a amante quente e intrigante que se tornou uma harpia sedenta por poder; os atores saltitantes e seminus em papéis puramente decorativos; e assim por diante. Aubrey Plaza faz tudo o que é humanamente possível com seu papel cartunesco como a amante-harpia, mas não há como salvar a maneira ridícula como seu papel é escrito e dirigido. Sua cena de confronto em um elevador com Julia Cicero de Nathalie Emmanuel ("Olha, vadia!") é como um confronto pré-briga de gatos entre Joan Collins e Linda Evans na antiga novela Dynasty. Quanto àquela cena de sexo com Shia LaBeouf... vamos todos tentar seguir em frente e esquecer.

Como Julia Cicero, o ator britânico Emmanuel (Game of Thrones, as franquias Maze Runner e Velozes e Furiosos) está irremediavelmente fora de seu alcance. É totalmente cruel escalar uma atriz bonita, mas limitada, para um papel principal que ela não está nem um pouco pronta para desempenhar. Enquanto isso, a atriz extraordinariamente talentosa Kathryn Hunter (A Tragédia de Macbeth) é desperdiçada em um papel minúsculo como a devotada esposa do prefeito Cícero.

Velhos Coppola como Laurence Fishburne (Apocalypse Now, Rumble Fish, Gardens of Stone) e Talia Shire (os filmes Godfather, New York Stories) parecem saber o que fazer e mais ou menos escapar com sua dignidade.

Mesmo com o conhecimento prévio de que fazer filmes é um trabalho muito desgastante e que poucos diretores conseguem continuar fazendo isso efetivamente década após década, Megalopolis é uma experiência sombria e desmoralizante. É incrível lembrar que Francis Ford Coppola já foi um verdadeiro titã cinematográfico criando experiências indeléveis nos filmes.

Martin Sheen em Apocalypse Now. (Paramount Pictures)

Pense na abertura de Apocalypse Now (1979), com "The End" do The Doors na trilha sonora e as cenas do rosto drogado de Martin Sheen naquele quarto de hotel, com imagens sobrepostas do ventilador de teto girando e helicópteros voando e a selva queimando, logo antes de seu colapso traumatizado. Você ainda consegue ver e ouvir, não consegue?

Pense na morte do infeliz Fredo Corleone (John Cazale) em O Poderoso Chefão Parte II (1974), no pequeno barco de pesca no lago ao pôr do sol, murmurando sua última Ave Maria antes de ser assassinado pelo capanga de seu irmão. Você consegue imaginar, certo?

Pense em Rumble Fish (1983) em preto e branco reluzente, e os garotos do salão de bilhar assistindo ao antigo líder de gangue, o Motorcycle Boy (Mickey Rourke) jogar uma partida solitária e elegante de bilhar, um deles observando reverentemente que ele é como "um príncipe... realeza no exílio".

Pense na cena introdutória de Drácula (1992), de Bram Stoker, com as batalhas horríveis em silhueta preta contra o céu vermelho alucinante cheio de fumaça de batalha e as tomadas errantes sobre mapas antigos da Europa Oriental. E então a partida do cavaleiro romeno Dracul (Gary Oldman) quando ele parte para lutar contra os turcos após uma separação apaixonada de sua esposa condenada, Elisabeta (Winona Ryder).

Bem, eu poderia continuar e continuar.

Mas quanto a Megalópolis, uma vez que o choque inicial tenha passado, duvido que eu me lembre de alguma coisa, mesmo das montagens complexas de imagens sobrepostas, que Coppola sempre fez lindamente. O véu da misericórdia será desenhado sobre toda a experiência miserável, deixando apenas a memória dos grandes filmes de Coppola do passado.

Colaborador

Eileen Jones é crítica de cinema na Jacobin, apresentadora do podcast Filmsuck e autora de Filmsuck, USA.

Os créditos fiscais de Kamala Harris não resolverão o subinvestimento

Na semana passada, Kamala Harris revelou um plano lamentavelmente inadequado para aumentar o investimento na indústria por meio de créditos fiscais. Os fundos de pensão dos trabalhadores detêm bilhões em economias que poderiam financiar energia verde e moradia acessível, se fossem administrados democraticamente.

Michael A. McCarthy


Kamala Harris falando na Carnegie Mellon University em 25 de setembro de 2024, em Pittsburgh, Pensilvânia. (Jeff Swensen / Getty Images)

Na quarta-feira passada em Pittsburg, a candidata presidencial democrata e vice-presidente Kamala Harris delineou seu plano econômico, uma série de propostas que ela apelidou de "economia de oportunidade". O plano inclui uma estratégia para "investir em tecnologias emergentes e modernizar as indústrias tradicionais". Ele visa expandir a fabricação e inovação de energia limpa e tecnologia, ao mesmo tempo em que apoia trabalhadores, sindicatos e as comunidades onde essas plantas estão localizadas.

O plano proposto visa fazer isso quase exclusivamente com créditos fiscais. Mas os créditos fiscais por si só não redirecionarão os fluxos de investimento na escala imaginada pelos autores do plano, muito menos as exigências dos Estados Unidos. O problema hoje não é simplesmente que os capitalistas subinvestem nas áreas necessárias para garantir um futuro decente. É também que os próprios trabalhadores comuns estão sentados em enormes pools de capital sobre os quais não têm controle real.

Setembro de 2024 marca o quinquagésimo aniversário do Employee Retirement Income Security Act. Mais conhecido como ERISA, o governo de Gerald Ford aprovou a legislação para tornar a aposentadoria mais segura para os trabalhadores americanos. No entanto, o resultado de longo prazo dessa lei foi desviar o capital dos trabalhadores das coisas de que eles próprios precisam e dependem tão desesperadamente.

Os fundos de pensão arrecadam dinheiro de funcionários, empregadores e, às vezes, governos. Os curadores e gestores de ativos então investem esse dinheiro para fazê-lo crescer para os funcionários quando eles se aposentam. Nos Estados Unidos, os fundos de pensão públicos, incluindo aqueles patrocinados por governos estaduais e locais, têm aproximadamente US$ 5 trilhões em ativos sob gestão. Os fundos de pensão privados, incluindo planos tradicionais de benefícios definidos e 401(k)s, têm cerca de US$ 12 trilhões. O capital do trabalhador é colossal.

Mas hoje, esses fundos são investidos de formas que prejudicam os trabalhadores e as comunidades que eles pretendem proteger.

Os fundos de pensão investem bilhões em fundos imobiliários administrados por empresas como a Blackstone. Os gestores de ativos fazem o mínimo de atualizações possível e maximizam os aluguéis e preços de revenda. O resultado é o aumento dos custos com moradia. Os fundos de pensão investem bilhões em private equity. Mas as aquisições de private equity levam ao fechamento de fábricas e demissões. E talvez o mais crucial de tudo, os fundos de pensão não têm sido uma fonte confiável de investimentos verdes.

O fato de o capital do trabalhador se comportar como o capital de Wall Street não é simplesmente impulsionado pelo mercado. Em vez disso, é por design legislativo que os fundos de pensão imitam o pior das práticas de investimento de Wall Street e têm feito isso há décadas.

Há uma maneira de mudar isso: alterar a ERISA para exigir que os beneficiários do plano tenham espaço para deliberar e tomar decisões vinculativas sobre como seus próprios fundos investem.

A ERISA é uma lei abrangente. Ela abrange divulgação de informações do plano, seguro de rescisão, diretrizes de transação e requisitos de financiamento. Mas além dessas regras, a ERISA garantiu que os trabalhadores não seriam capazes de ter uma voz deliberativa sobre como seus fundos são investidos ao formalizar o dever fiduciário.

A seção 404(1)(a) da ERISA estipula que o investimento deve ser feito “com o propósito exclusivo de fornecer benefícios aos participantes”. A ERISA esclarece que aqueles que administram fundos de pensão o fazem “com o cuidado, habilidade, prudência e diligência” que um “homem prudente” usaria.

À primeira vista, isso pareceria para melhor. Em vez disso, as regras fiduciárias da ERISA vinculam as políticas de investimento dos fundos de pensão às práticas de investimento dominantes do setor de investimentos de forma mais ampla. A ERISA tornou a exigência de que o investimento em fundos de pensão espelhem as práticas de investimento de fundos de Wall Street com perfis de risco semelhantes uma obrigação legal. Boletins subsequentes em 2015 e 2018 divulgados pelo Departamento do Trabalho deixaram claro que considerações não financeiras só podem ser levadas em consideração "como desempates ao escolher entre investimentos que são iguais de outra forma".

Os gestores de investimentos dominaram esses fundos muito antes da ERISA. Com a ascensão da teoria moderna de portfólio e da hipótese de mercado eficiente nas décadas de 1950 e 1960, o setor de gestão de dinheiro nascente, o que viria a ser os poderosos gestores de ativos que agora dominam Wall Street, mudou seus investimentos para ações e se diversificou. Avançando para 2008, talvez não seja nenhuma surpresa que, se a prudência fiduciária é sobre fazer o que Wall Street faz, os próprios fundos de pensão também estavam atrelados aos títulos de alto risco e hipotecas subprime que desencadearam o colapso financeiro.

A ascensão do fiduciário profissional como o árbitro final de um "bom retorno" não foi isenta de controvérsias. Sindicatos como o United Mine Workers ganharam pensões para seus membros no período pós-guerra e imediatamente começaram a exercer controle sobre como esses fundos eram investidos.

Republicanos e democratas do sul responderam com a Lei Taft-Hartley em 1947. A lei proibiu boicotes secundários e fez com que os líderes sindicais assinassem declarações não comunistas, o que permitiu que os estados aprovassem leis de "direito ao trabalho". Mas menos conhecida, a Seção 302 exigia que os empregadores ocupassem pelo menos 50% dos assentos no conselho. Isso garantiu que os trabalhadores nunca pudessem ter uma voz majoritária.

Sem um cheque do trabalho, os empregadores e seus fiduciários contratados canalizaram investimentos de pensão para o capital americano. O capital dos trabalhadores controlava quase 25% de todas as ações corporativas americanas na época em que a ERISA foi aprovada.

A ERISA reforçou esse sistema, criando o contexto em que, em 1988, a KKR, uma empresa de capital privado, poderia sobrecarregar a Nabisco com dívidas, despojar seus ativos, demitir seus funcionários e vender as partes com o financiamento direto do Oregon Public Employee Retirement System Fund da AFSCME.

Ampliar a voz dos acionistas não é uma alternativa promissora. Os esforços recentes da Vanguard para incorporar a voz dos acionistas por meio de votação por procuração fracassaram. O beneficiário médio não tem fortes preferências de primeira linha sobre investimentos. E não há evidências de que os sindicatos que usam suas posições como acionistas para pressionar as empresas levem a políticas mais favoráveis ​​aos trabalhadores.

Hoje, a ERISA torna ilegal para os administradores de pensões integrar os valores e preferências dos beneficiários do plano em suas estratégias de investimento. Mas há uma maneira de atrair significativamente as preferências dos beneficiários para os perfis de investimento de seus fundos. Em The Master’s Tools: How Finance Wrecked Democracy (And a Radical Plan to Rebuild It), que será lançado com a Verso este ano, eu argumento que devem ser assembleias selecionadas aleatoriamente do direito dos beneficiários de deliberar e tomar decisões sobre como seu fundo investe.

Em todo o mundo, da Irlanda a Bogotá e Bélgica, os governos estão se voltando para assembleias deliberativas para lidar com problemas políticos complexos e polarizadores, que vão do aborto às mudanças climáticas. Estamos surfando em uma onda deliberativa.

Na Holanda este ano, o Pensioenfonds Detailhandel, um fundo de US$ 30 bilhões que cobre as economias de aposentadoria de trabalhadores do varejo, reuniu cinquenta beneficiários aleatórios do plano para discutir sua estratégia de investimento. Esses participantes foram selecionados para refletir a diversidade demográfica dos beneficiários de forma mais ampla.

Em várias reuniões, eles aprenderam sobre como seu fundo de pensão funciona e então deliberaram sobre como ele investiu e deveria investir. No final do processo, a assembleia fez quarenta e nove recomendações enfatizando sustentabilidade, direitos trabalhistas e condições de trabalho, moradia acessível e direitos humanos. Os beneficiários queriam que seu fundo obtivesse um retorno, mas não a custos sociais e ambientais.

Por causa de sua definição antidemocrática de prudência, a ERISA manteve experimentos como esse fora da mesa. Mas se alterada para incluir um processo para os beneficiários deliberarem e contribuírem para a política de seu fundo, a lei pode, em vez disso, fornecer uma estrutura para beneficiar as comunidades trabalhadoras para as quais os fundos foram criados em primeiro lugar. Se um progressista vencesse em novembro, ele deveria saber que meros créditos fiscais não alcançariam o que uma democracia maior alcançaria.

Colaborador

Michael A. McCarthy é professor associado de sociologia na Marquette University e autor de Dismantling Solidarity: Capitalist Politics and American Pensions Since the New Deal.

O Sri Lanka está passando por um terremoto político

No mês passado, o Sri Lanka elegeu um presidente declaradamente de esquerda pela primeira vez. O novo governo ficará preso entre as expectativas de seus apoiadores por mudança e a pressão do FMI para continuar com um destrutivo programa de austeridade.

B. Skanthakumar


Anura Kumara Dissanayake acena para apoiadores do partido durante um comício eleitoral em Kiribathgoda, Sri Lanka, em 18 de agosto de 2024. (Ishara S. Kodikara / AFP via Getty Images)

Tradução / O Sri Lanka elegeu seu primeiro presidente de esquerda em 21 de setembro. Anura Kumara Dissanayake recebeu 42% dos votos expressos, no primeiro teste de opinião pública desde que o estado insular com uma população de vinte e dois milhões de pessoas declarou falência em 2022.

O líder do Janatha Vimukthi Peramuna (JVP, Frente de Libertação Popular) e sua coalizão Poder Popular Nacional (NPP), que é popularmente conhecido como “AKD”, agora está onde uma revolta popular expulsou, dois anos atrás, Gotabaya Rajapaksa na metade de seu mandato presidencial. Para surpresa da direita, a bolsa de valores de Colombo se recuperou após a declaração do resultado.

Não foi a vitória esmagadora que os apoiadores do AKD insistiram que estava a caminho, ficando aquém dos 50% mais um voto necessários para uma vitória no primeiro turno. Sua eleição para a presidência ocorreu após a distribuição dos votos dos candidatos eliminados no primeiro turno, confirmando a clara vantagem do AKD sobre seu rival mais próximo, o ex-líder da oposição Sajith Premadasa.

Ele também não recebeu o mesmo nível de apoio das minorias étnico-religiosas tâmil e muçulmana (um pouco menos de 25% da população) como da maioria cingalesa (em grande parte budista) em uma sociedade pós-guerra dividida. Ainda assim, esse resultado é uma reviravolta incrível, contra todos os obstáculos de poder, classe e capital que estavam no caminho do AKD. Era simplesmente inimaginável até bem recentemente.

Tendo obtido apenas 3% dos votos em 2019, como o AKD foi impulsionado para o cargo mais alto do país em apenas um ciclo eleitoral? Quais são as origens do JVP e como ele evoluiu? Qual é o programa e a provável direção do novo governo, e quais desafios imediatos ele enfrenta?

Revolta popular e suas consequências

O terremoto político do mês passado não pode ser compreendido sem recordarmos o movimento popular (janatha aragalaya, “luta popular” em cingalês) de 2022. Durante o primeiro semestre daquele ano, com pico entre o início de abril e de julho, muitas centenas de milhares de pessoas foram às ruas, seja em ações auto organizadas nos bairros ou em protestos de larga escala em Colombo, sem uma liderança unificada ou demandas coerentes além de pedir a renúncia do presidente (#GotaGoHome) e uma forma pouco clara de “mudança de sistema”.

No início daquele ano, em uma crise de queima lenta que começou a fumegar durante a pandemia da COVID-19, as reservas cambiais atingiram o fundo do poço, esgotadas pelos pagamentos da dívida soberana, defesa da rupia em queda e diminuição da receita do governo. Incapaz de pagar pelas importações de combustível, alimentos e suprimentos farmacêuticos, o país simplesmente parou de funcionar.

Houve racionamento de energia para viagens e consumo doméstico; escolas e pequenos negócios fecharam; medicamentos essenciais eram escassos; itens de consumo básicos não estavam disponíveis ou então ficaram repentinamente muito mais caros. Em abril, os credores estrangeiros sabiam que o Sri Lanka deixaria de pagar os bilhões de dólares americanos devidos naquele ano, e o governo correu para Washington, DC, para um resgate do credor de última instância.

A descrença e a frustração iniciais com a incompetência de um governo eleito por uma quase super maioria nas eleições presidenciais e parlamentares em 2019 e 2020, respectivamente, rapidamente se transformaram em raiva contra todos os políticos e partidos no poder desde que o Sri Lanka conquistou a independência da Grã-Bretanha em 1948. Pessoas de todas as classes conectaram seu sofrimento com o interesse próprio arraigado do establishment político e com a grande corrupção que se manifestou em um megagolpe após o outro.

Durante o movimento de protesto, o objetivo era principalmente remover o presidente em exercício, Gotabaya Rajapaksa, e o clã Rajapaksa mais amplamente instalado no governo e na política nacional, incluindo seu irmão mais velho, o ex-presidente Mahinda Rajapaksa. Outros alvos eram os membros da legislatura, que os manifestantes buscavam substituir por novos representantes imaculados do povo em uma eleição antecipada.

No entanto, uma vez que Rajapaksa e seus familiares foram depostos do governo, Ranil Wickremesinghe, o líder histórico da direita neoliberal, manobrou para a presidência. Wickremesinghe resistiu às demandas para que o parlamento fosse dissolvido e reconstituído novamente. Ele violou os direitos humanos e a Constituição por meio da detenção e repressão de ativistas e adiou a eleição de órgãos do governo local, enquanto sujeitava os pobres e impotentes a um programa de austeridade do Fundo Monetário Internacional (FMI), tudo em prol da estabilidade (para os poderosos) e da recuperação (para os ricos).

Na verdade, até o dia da eleição presidencial, muitos temiam que Wickremesinghe arquitetasse um autogolpe para se fixar no poder, em vez de se submeter à humilhação nas urnas. Após a vitória do AKD, a eleição geral convocada para 14 de novembro, com sua oportunidade de expulsar a velha guarda de todos os partidos políticos, é um assunto inacabado de dois anos atrás.

A ascensão do JVP

O JVP-NPP não desencadeou a revolta nem a dirigiu. Foi uma entre várias correntes naquele momento. No entanto, sua narrativa e mensagem se tornaram o senso comum de um movimento multiclasse, amorfo, sobrecarregado com uma consciência de classe média.

O JVP por muitos anos tem martelado no discurso público a ideia de que os problemas políticos e econômicos do Sri Lanka são resultado da corrupção arraigada em ambas as esferas. Sua popularidade aumentou à medida que expôs suborno e corrupção no governo, ao mesmo tempo em que destacou desperdício e ineficiência no uso de fundos públicos. O que o partido não fez — como seria de se esperar de um grupo de origens marxistas — foi explicar como a corrupção é uma questão de economia política e seu nexo com o capitalismo, e não de pessoas perversas e instituições fracas.

Ao contrário dos demais partidos parlamentares do Sri Lanka, os representantes do JVP-NPP têm a reputação de serem livres de criminalidade e comportamento abusivo em suas vidas públicas e privadas, sendo vistos como membros disciplinados de uma organização moral. Durante e após a revolta de 2022, setores em expansão da sociedade, muito além do eleitorado social e étnico tradicional da aliança partidária, começaram a vê-lo como uma alternativa ética à classe política tradicional e um agente para mudança sistêmica.

Para apreciar o significado dessa mudança na opinião pública em direção ao JVP, precisamos oferecer uma rápida recapitulação de sua evolução nos últimos trinta anos e o histórico de seu atual líder. Os fundadores do JVP em meados do final da década de 1960 eram jovens quadros étnicos cingaleses do Partido Comunista do Ceilão (PCC) que foram atraídos pelo maoísmo. Este foi um período durante o qual o PCC se dividiu em grupos pró soviéticos e pró chineses; o JVP se desenvolveu primeiro como uma divisão deste último.

Desde então, o JVP se definiu como um partido marxista-leninista. No entanto, ele também assimilou a cultura e a ideologia budista cingalesa e defendeu o nacionalismo cingalês no passado recente contra ameaças externas (o “expansionismo indiano”) e internas (o “separatismo tâmil”) à soberania do estado e à integridade territorial.

O JVP organizou duas insurreições contra o estado sob a liderança de seu fundador, Rohana Wijeweera. A revolta de 1971 foi contra o governo de esquerda da Frente Unida de Sirimavo Bandaranaike, no qual o Partido Lanka Sama Samaja, anteriormente parte da Quarta Internacional trotskista, e o PCC pró soviético eram parceiros juniores da coalizão. A simpatia pública naquele momento e depois estava com os estudantes e jovens que pegaram em armas pela mudança social, mas foram mortos ou encarcerados por anos em campos de reabilitação.

Wijeweera e outros foram libertados em 1977 após a mudança de governo. A proibição do partido também foi suspensa, permitindo que ele começasse um trabalho político aberto entre vários grupos sociais, incluindo trabalhadores, estudantes universitários e do ensino básico, clérigos budistas e oficiais militares de baixa patente. Wijeweera foi o candidato do JVP na eleição presidencial de 1982, onde obteve 4% dos votos.

A segunda revolta

O próximo ponto de virada ocorreu após a violência patrocinada pelo Estado anti-tâmil em julho de 1983. O JVP e outros dois partidos de esquerda, nenhum dos quais teve qualquer envolvimento na perseguição, foram banidos pelo governo de direita de JR Jayewardene, tio de Ranil Wickremesinghe, cujo Partido Nacional Unido havia de fato liderado a violência.

Mais uma vez, o JVP foi para a clandestinidade. Começou a coletar armas, roubar bancos para obter fundos e fazer treinamento militar. O Estado estava agora em guerra com várias organizações militantes tâmis no norte e leste da ilha. O JVP, embora ele próprio em guerra com o Estado, era virulentamente oposto à autodeterminação da nação tâmil.

A Índia intensificou sua intervenção no conflito armado interno, posicionando tropas no norte e leste da ilha, de maioria tâmil, e havia um governo regional mediado pelos indianos e estabelecido com poderes limitados como uma solução política para a guerra. Foi nesse ponto que o JVP lançou sua segunda insurreição entre 1987 e 1989.

Enquanto a revolta de 1971 tinha a intenção de seguir a estrela do socialismo, desta vez ela foi lançada sob o signo do nacionalismo cingalês. O enfraquecimento da consciência da classe trabalhadora e o declínio dos sindicatos e partidos de esquerda na década de 1980 contribuíram para essa virada reacionária. O JVP mobilizou um Movimento Popular Patriótico (PPM) que foi além de seus membros na oposição ao papel da Índia no conflito étnico, bem como contra o governo de direita da época.

O PPM liderado pelo JVP assassinou autoridades e apoiadores do partido no poder, bem como as famílias do pessoal da segurança do Estado e seus próprios oponentes de esquerda, incluindo líderes estudantis, sindicalistas e organizadores camponeses. A violência desencadeada pelo JVP foi devolvida muitas vezes pelo Estado em uma onda de repressão que matou entre 40.000 e 60.000 homens e mulheres jovens.

Mais uma vez, o JVP foi esmagado. Desta vez, a vida de Wijeweera não foi poupada após sua captura em 1989. A memória desta era de terror (bheeshanaya em cingalês) pelo JVP foi explorada por seus rivais na eleição de 2024, buscando reverter a onda a seu favor.

A reconstrução

Foi durante a próxima fase de recuperação e reconstrução do JVP no início dos anos 1990 que Anura Kumara Dissanayake começou sua escalada dentro do partido. Ele veio de uma pequena família de fazendeiros na zona rural do centro-norte do Sri Lanka e estudou em escolas locais frequentadas por crianças pobres. Seu pai era um trabalhador menor em um departamento do governo.

Dissanayake se juntou ao JVP no final dos anos 1980 e era ativo em sua ala estudantil em uma universidade pública nos arredores de Colombo, onde obteve um diploma em ciências físicas. De alguma forma, nessa época, em que até mesmo o rumor de associação com o JVP poderia atrair uma sentença de morte, ele escapou com vida, ao contrário de muitos de seus contemporâneos.

Em meados da década de 1990, se tornou o organizador nacional da União dos Estudantes Socialistas do partido, entrando no comitê central do JVP. Em 1998, ele foi elevado ao politburo do JVP. Dois anos depois, entrou no parlamento pela primeira vez e manteve seu assento desde então. Em 2014, se tornou o principal líder do JVP, apenas o quinto desde sua fundação (os três primeiros foram mortos extrajudicialmente pelo estado em rápida sucessão entre novembro de 1989 e janeiro de 1990).

O JVP esteve antes no governo nacional apenas uma vez. Em 2004–5, ele fez parte de uma coalizão de curta duração, onde o AKD era responsável pelo portfólio agrícola politicamente significativo. Ele comandou um órgão local na província do sul na mesma época.

O final dos anos 1990 e o início dos anos 2000 também foi um período em que o JVP se mobilizou ativamente em manifestações de rua e até mesmo greves contra as negociações de paz com os Tigres de Libertação de Tamil Eelam (LTTE). Ele apoiou a campanha presidencial cingalesa-nacionalista de Mahinda Rajapaksa em 2005 e promoveu um retorno à guerra em larga escala após sua vitória, com os líderes do JVP visitando as linhas de frente para motivar os militares. O partido também peticionou com sucesso à Suprema Corte para separar as províncias do norte e do leste que os nacionalistas tâmeis veem como sua pátria tradicional.

Essa orientação do JVP na memória viva ajuda a explicar por que ele não conseguiu fazer um avanço político em áreas de maioria tâmil, apesar dos esforços conscientes para se organizar lá. Na eleição de 2024, no entanto, houve uma mudança marcante de atitude no norte e no leste, já que a parcela de votos do NPP disparou de 1% em 2019 para entre 7% e 10% no norte de maioria tâmil. Ele também ganhou entre 20 e 25% dos votos no leste uniformemente misto, onde um número significativo de jovens muçulmanos e cingaleses votaram no AKD.

A postura militarista do JVP e a proximidade com o etnonacionalismo cingalês também provocaram dois cismas dentro do partido: uma divisão racista de direita (Frente Nacional da Liberdade) em 2008 e uma divisão socialista de esquerda (Partido Socialista da Linha de Frente) em 2012. No entanto, o partido matriz manteve suas principais organizações, incluindo poderosos sindicatos dos setores público e privado, bem como sua representação em instituições eleitas.

O programa NPP

Por meio da formação da coalizão Poder Popular Nacional (NPP) em 2019, o JVP buscava deter e reverter sua marginalização eleitoral ampliando sua base de classe e se livrar de sua ideologia passada sem renunciar formalmente à sua história.

Embora o JVP tenha tido uma presença contínua no parlamento nas últimas três décadas com o maior bloco de parlamentares de esquerda desde 2000, o tamanho desse bloco flutuou bastante durante esse período (Tabela 1). Foi amplamente aclamado como a “terceira força” na política parlamentar, mas ficou muito atrás das duas alianças que se revezaram no governo. O papel de “oposição permanente”, com princípios, mas sem poder, era algo que os liberais e alguns esquerdistas acreditavam ser o destino do partido.

Em 2019, o JVP lançou o NPP como uma frente eleitoral “progressista” em vez de explicitamente de esquerda. Seus parceiros nessa frente são principalmente organizações da sociedade civil de ativistas políticos, trabalhistas e culturais mais jovens, com uma pitada de marxistas mais velhos (homens) do naufrágio da esquerda do Sri Lanka. É multiétnico e multirreligioso, embora a representação tâmil e muçulmana seja baixa. Há mais mulheres em sua liderança nacional do que nos outros partidos.

No entanto, o NPP é totalmente dependente do JVP para sua existência e infraestrutura organizacional. O principal ativo que ele oferece ao JVP é a classe e o perfil social que este último cortejou avidamente em seu caminho para o poder. O JVP agora contrapõe o “governo de especialistas” — isto é, acadêmicos, profissionais e empreendedores — ao desprezado “governo de políticos”. Em sua estimativa, é a classe média “educada” que deve representar aqueles que não podem se representar, enquanto os políticos executam as políticas que aconselham.

No entanto, a classe média, não menos que a elite, acha a aparência externa e o passado do JVP profundamente alarmantes. Para amenizar tais medos, o JVP, por meio do NPP, mudou programaticamente para a centro-esquerda. Enquanto expressa críticas ao neoliberalismo, agora ecoa seu repertório.

De acordo com a perspectiva atual do NPP, o setor privado é o motor do crescimento, enquanto o papel do Estado é monitorar, facilitar e regular os mercados. O Sri Lanka deve crescer e diversificar suas receitas de exportação, implementar acordos de livre comércio e atrair capital estrangeiro, com um ambiente de negócios adaptado às necessidades dos investidores. As zonas de promoção de investimentos devem se espalhar pela ilha e o mercado de capitais deve se expandir.

Por outro lado, o manifesto do NPP se afasta dos princípios do fundamentalismo de mercado ao enfatizar a importância da produção industrial e agrícola doméstica e a necessidade de apoio estatal às indústrias e agricultores. Ele pede crédito concessional para pequenas e médias empresas e alívio de empréstimos de microfinanças tomados por mulheres a taxas de juros usurárias.

A aliança se opõe à privatização de empresas estatais e promete aumentar as transferências de dinheiro para os pobres, ao mesmo tempo em que remove impostos indiretos sobre alimentos essenciais, medicamentos e produtos industriais locais. Ela também promete conduzir uma auditoria da dívida externa do Sri Lanka para identificar qual parte dela é odiosa e ilegítima.

Na área de direitos humanos e reformas políticas, o NPP promete abolir o draconiano Prevention of Terrorism Act (Ato de Prevenção ao Terrorismo), respeitar os direitos dos trabalhadores e promover a negociação coletiva. Ele também quer introduzir uma nova constituição que abolirá os poderes executivos do presidente e delegará autoridade às regiões, incluindo o norte e o leste, de maioria tâmil.

Os desafios

Sem maioria parlamentar e ciente da desaprovação pública para a corte parlamentar vigente, que em sua maioria vem do partido Rajapaksa, o AKD dissolveu o parlamento logo após ser empossado. As eleições parlamentares devem ser realizadas antes de agosto do ano que vem. Ele formou um governo interino com os três legisladores atuais de seu partido.

Sua nomeação da única parlamentar mulher do NPP como primeira-ministra — um cargo que é menos poderoso do que o da presidência, mais ou menos como o sistema francês — foi bem recebida. A eleição geral ocorrerá em 14 de novembro. Com uma campanha eleitoral recém-concluída, outra começa. O resultado desta eleição determinará se o NPP tem o mandato e os números para impulsionar seus planos legislativos.

Enquanto isso, o AKD afirmou, como repetidamente indicado durante sua campanha, que o NPP continuará com o programa do FMI. No entanto, ele pretende negociar mudanças que darão maior alívio aos pobres. O FMI insistiu que suas metas econômicas e condicionantes são invioláveis. Se o NPP se submeter a essa posição, ele terá que abandonar suas promessas de bem-estar e impor austeridade não moderada.

A agência de classificação global Moody’s deu a seguinte avaliação:

Embora a eleição de Dissanayake constitua uma grande mudança no cenário político do Sri Lanka, acreditamos que o amplo apetite por reformas permanecerá intacto. Não esperamos uma interrupção significativa na agenda de reformas do país ou nas políticas macroeconômicas, que incluem a reestruturação da dívida em andamento e os ajustes estruturais sob seu programa com o Fundo Monetário Internacional.

A manutenção de dois funcionários-chave que estavam alinhados com o presidente anterior e eram escravos do FMI como governador do Banco Central do Sri Lanka e secretário do Tesouro ressalta as continuidades que devemos esperar em termos de política econômica. Por mais desafiador que seja para o novo governo garantir a maioria de que precisa na eleição geral, um presidente de esquerda achará ainda mais difícil andar na corda bamba entre o FMI e os credores estrangeiros, de um lado, e as esperanças e expectativas de seus seguidores, de outro.

Colaborador

B. Skanthakumar é membro da Associação de Cientistas Sociais em Colombo e coeditor de Pathways of the Left in Sri Lanka (Instituto Ecumênico de Estudo e Diálogo, Colombo, 2014).

Hamas não é estúpido e aceita abrir mão de governar Gaza sozinho, diz líder palestino

Em entrevista à Folha, membro do Comitê Executivo da OLP afirma que Irã serve de desculpa de Israel para tomar terras

Igor Gielow

Ramallah (Cisjordânia) - Quase um ano após lançar o mais brutal ataque contra Israel em 50 anos, o Hamas aceitou abrir mão do controle que tinha da Faixa de Gaza em favor de um governo de consenso liderado pela ANP (Autoridade Nacional Palestina).

A afirmação foi feita à Folha por um dos 16 membros do Comitê Executivo da OLP (Organização da Liberação da Palestina), Wassel Abu Youssef. "O Hamas não é politicamente estúpido. Tudo já foi acertado nas reuniões em Moscou, em Pequim e nos encontros secretos", disse.

O membro do Comitê Executivo da OLP Wassel Abu Yousef em seu escritório - Igor Gielow/Folhapress

Youssef não é da Fatah, a facção palestina que comanda a ANP e é centrada em Ramallah, capital da Cisjordânia. É o líder da Frente de Liberação da Palestina —organização rotulada de terrorista pelos EUA— no principal conselho dos palestinos.

É a primeira vez que um integrante do grupo fala abertamente sobre isso. Anonimamente, um membro do Hamas havia dito à rede saudita Al Arabiya que esse deveria ser o resultado de um encontro que está marcado para ocorrer nesta semana no Cairo, mas cuja realização é duvidosa dada a escalada do conflito entre Israel e o Hezbollah.

A reportagem não conseguiu contato com nenhum representante do grupo terrorista de Gaza, mas a indicação de Youssef, que é diretor de Organizações Populares da OLP, vai em linha com especulações de que tal acordo estaria pronto.

Uma semana antes de o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, ser morto em Teerã, em junho, o grupo e a Fatah assinaram na China acordo para a transição de governo quando a guerra acabar. "O que precisamos é nos unir. Vamos ter boas notícias em breve", afirmou.

Youssef falou em seu escritório na sede da OLP, entidade fundada em 1964 que representa legalmente os interesses palestinos. A ANP, criada por ela 30 anos depois, é o governo formal da Cisjordânia sob os Acordos de Oslo —pelos quais há reconhecimento mútuo com Israel, mas os termos nunca foram totalmente implementados.

"Oslo foi morto por Israel há muito tempo", declarou o dirigente. "O que nos resta é pressão decisiva na arena internacional, resistir internamente e ajudar o povo."

Em 2006, pouco depois da morte do líder Iasser Arafat (1929-2004), o sempre presente cisma palestino se fez mais forte. O Hamas ganhou a eleição parlamentar, mas o sucessor de Arafat, Mahmoud Abbas, não cedeu poder aos radicais baseados em Gaza.

Isso levou a um racha no qual o Hamas ficou com o controle de Gaza, e a ANP de Abbas, de parte da Cisjordânia. Antes do 7 de Outubro, o governo de Binyamin Netanyahu facilitou a vida do Hamas e lhe concedeu várias vantagens, buscando assim dividir os palestinos —o dinheiro vindo principalmente do golfo Pérsico acabou comprando armas, e deu no que deu.

Youssef emprega a retórica usual para falar de Israel, questionando as atrocidades do Hamas e preferindo debater o que chama de "campanha genocida" do Estado judeu, não só em Gaza, mas em particular contra os moradores da Cisjordânia.

Ele considera que o papel do Irã como disseminador de influência por meio de prepostos como Hamas e Hezbollah é uma "desculpa de Israel". Para o dirigente, quem de fato ameaça todo o Oriente Médio é Netanyahu e sua política de força.

Falas à parte, se for fato que o Hamas cedeu à realidade em solo, esmagado mas não destruído como está por um ano de guerra, esta peça se encaixa num quebra-cabeças complexo.

Fiadores de Israel, os Estados Unidos apresentaram com aliados um plano de cessar-fogo para as atuais hostilidades entre Tel Aviv e o Hezbollah que dá margem a um acerto maior.

Analistas duvidam, contudo, que um empoderado Netanyahu vá baixar o tom agora que coleciona trunfos militares sobre os rivais, como a morte dos líderes do Hamas e do grupo libanês, todos bancados pelo arquirrival Irã.

Há questões de cunho interno também. Abbas, 88, é questionado nas áreas palestinas como um líder corrupto e centralizador. Qualquer unidade entre os seus passa por fazer as pazes, antes mesmo do que com o Hamas, com Mohammed Dahlan.

Um nativo de Gaza, Dahlan comandava a segurança palestina com mão de ferro depois do estabelecimento da ANP. Foi perseguido por Abbas, que o expulsou da Cisjordânia sob acusação de ter matado Arafat em 2011.

Desde então, vive um exílio luxuoso nos Emirados Árabes Unidos e é visto como um nome que poderia comandar um governo pós-Hamas em Gaza.

A reconciliação no momento de crise tem poderosos incentivadores, Na sede da OLP no domingo (29) estava o maior empresário palestino, Munib Rachid Mansri, lendário aliado de Arafat.

Aos 90 anos, ainda é ouvido com atenção, até porque comanda negócios diversos na Cisjordânia a partir de seu palacete em Nablus, o Beit Felasteen (Casa da Palestina, em árabe). Interlocutor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de quem é fã, ele é duro com o aliado Abbas.

"Seu discurso na ONU foi ótimo, mas ele precisa fazer a lição de casa. A legitimidade do governo dele acabou há 14 anos. Ele precisa fazer novas eleições", afirmou à reportagem. Abbas nunca cumpriu a promessa de possibilidade de alternância de poder em seus 20 anos, e voltou a fazê-la nas Nações Unidas.

Se essa conjunção astral na política palestina irá ocorrer, e se terá qualquer impacto sobre Netanyahu, é incerto. Tanto Youssef quanto Mansri compartilham o pessimismo ante a escalada militar israelense no Líbano, dizendo que o objetivo final de Tel Aviv é tomar também a Cisjordânia.

Há também aspectos da realidade. O novo líder do Hamas, Yahya Sinwar, não é visto há semanas, segundo militares de Israel, que supõem que ele esteja sozinho, cercado por reféns dos 7 de Outubro como escudos humanos.

O Hamas, ainda que vivo, parece alquebrado assim como o Hezbollah. Qual voz ativa teria em uma negociação futura, ainda mais com a rejeição a priori que terá sempre por parte de Israel, é uma incógnita.

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