31 de outubro de 2022

Bolsonaro perdeu, mas seguirá ditando ritmo da política

Presidente articulou melhor que outros políticos valores emergentes da sociedade

Miguel Lago

Cientista político, professor da Escola de Assuntos Públicos da Sciences Po (Paris) e da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Columbia (Nova York) e diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)

Folha de S.Paulo

Eleições costumam ser encaradas como forma de premiar ou punir o governo. O governante que melhora a vidas das pessoas seria reeleito ou elegeria seu sucessor. Aquele que piorasse a vida da população, não.

Em que pese a derrota, é surpreendente o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro (PL). A economia piorou, a fome voltou, as políticas públicas foram desmanteladas, milhares de pessoas morreram na pandemia por causa do comportamento do presidente e o futuro foi hipotecado. Em circunstâncias normais, não estaria sequer no segundo turno.

De onde vem a força de Bolsonaro? Alguns dirão que a sociedade brasileira é intrinsecamente conservadora e, portanto, preocupada com a preservação dos valores cristãos e da família. O capitão reformado seria aquele que melhor representa esse ideário.

Apoiadores de Bolsonaro acompanham a apuração das urnas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

A conclusão me parece apressada e superficial. Bolsonaro não é conservador, muito menos representa os valores cristãos.

O conservadorismo político se construiu integralmente em oposição à ruptura e à revolução. Mudanças radicais são seu pesadelo, e toda a força política conservadora busca suavizar as mudanças, impedir os arroubos, as rupturas. O conservadorismo é, por essência, contrarrevolucionário.

Bolsonaro é um revolucionário de extrema direita. Nada em seu discurso se relaciona à tradição conservadora brasileira. Ao contrário, ele articula forças emergentes e insurgentes presentes em nossa sociedade: a religiosidade neopentecostal, a estética do agro e a sociabilidade de perfil.

O Brasil é o maior país católico do mundo, mas a força religiosa preponderante é a neopentecostal. Para grande parte dos fiéis católicos, a identidade católica não é definidora das escolhas do dia a dia, como é a neopentecostal.

Esta identidade condiciona todas as decisões, desde a forma de se vestir, se comportar, consumir e votar. Sua influência no comportamento dos brasileiros é muito maior. Ainda que minoritária do ponto de vista estatístico, ela pesa muito mais do que a grande maioria silenciosa e desarticulada.

Sobre o segundo ponto, o Brasil depende cada vez mais do agronegócio. Seu peso na economia tem sido crescente e acompanha a desindustrialização do país. Essa força econômica emergente articula uma estética própria.

A vestimenta de gaúchos e sertanejos, tão típica de nossa tradição rural, foi substituídas pela de caubói. O rodeio se tornou o grande festival do país, e a música que mais toca nas rádios brasileiras é uma espécie de country music cantada em português.

A posse e o porte de arma completam a composição deste novo "homem do campo". A promoção dessa nova estética é articulada pelo setor e difundida pelo país inteiro sob os slogans "o agro é pop", "o agro é tech" e daí por diante…

Quanto ao último ponto, a população brasileira está entre as maiores consumidoras de redes sociais do mundo. A sociabilidade de grande parte de nossos compatriotas se dá primordialmente através dos perfis de redes sociais. Somos aquilo que desejamos projetar em nossos perfis. O conhecimento foi substituído pela opinião, e o encontro na praça deu lugar à aventura narcísica.

Bolsonaro soube articular muito bem esse novo ambiente comunicacional com a identidade neopentecostal e a estética do agro. Seu movimento se tornou o fio condutor dessas forças propulsoras e a partir delas o capitão reformado construiu uma nova gramática política desprendida da lógica do "bom governo".

O que está em jogo é derrubar a tradição brasileira e substituí-la por uma nova visão de mundo. Para tanto é necessário eliminar o "inimigo" —nomeado como "a esquerda", mas, na realidade, o bolsonarismo tem como alvo as construções sociais e institucionais de décadas da sociedade brasileira.

O bolsonarismo representa uma ruptura política e cultural com a tradição brasileira. Quem vota em Bolsonaro não o faz por acreditar racionalmente que ele representará melhor seus interesses, mas por representar suas opiniões. Trata-se de um voto exclusivamente identitário.

Enquanto essas forças forem as identidades políticas preponderantes no país, o bolsonarismo seguirá ditando o ritmo da política. Bolsonaro perdeu neste domingo (30) nas urnas, mas o trabalho para derrotar o bolsonarismo na sociedade será imenso.

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