Anna Virginia Balloussier
Folha de S.Paulo
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lançou uma carta aos evangélicos nesta quarta (19), a 11 dias do segundo turno. Tarde demais? Num hotel próximo à avenida Paulista, cercou-se de pastores do chamado protestantismo histórico, todos do evangelicalismo progressista. Furou a bolha?
Essas perguntas circulavam à boca miúda e explicitavam a dificuldade crônica de a esquerda dialogar com o segmento religioso mais vistoso desse pleito, dado seu alto potencial de engajamento eleitoral.
Pentecostais e neopentecostais são a ampla maioria dos evangélicos no Brasil. Todas as grandes lideranças dessa corrente hoje respaldam Jair Bolsonaro (PL). No encontro com Lula só tiveram a palavra pastores da vertente histórica. Não que ela seja menos conservadora na média —basta lembrar da Igreja Presbiteriana do Brasil, que quase aprovou uma diretriz para ejetar a esquerda de seus quadros.
O ex-presidente Lula se reúne com lideranças evangélicas em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress |
Mas a força maior está no pentecostalismo nacional, que ganhou representação política no ato. A deputada federal eleita Marina Silva (Rede-SP), a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) e uma jovem vereadora do PSDB de Goiânia, Aava Santiago, todas da Assembleia de Deus, discursaram.
Aava fez uma fala forte, com "um apelo, porque crente gosta é disso", para que todos ali lutassem contra "o sequestro da nossa fé". Crente gosta de muitas coisas, até porque a igreja evangélica brasileira é muito horizontal, sem estrutura similar à do Vaticano, com um líder único irradiando ordens para a base.
Mas esse nicho também tem seus cabeças, que servem de farol aos milhares de pastores dispostos a orientar fiéis politicamente. Lula não vai conseguir —nem quer—, a essa altura, fazer as pazes com alguns desses nomes que estiveram com o PT no passado, como Silas Malafaia e Edir Macedo.
Há dúvidas, porém, se os aliados evangélicos de sempre, gente à esquerda sem grande interlocução com a massa pentecostal, levarão Lula muito além. Há no PT desconfiança com aqueles vistos como forasteiros.
Na plateia, por exemplo, estavam dois nomes mais familiarizados com esse quinhão religioso. Romualdo Panceiro, ex-bispo da Universal, um "milagre de Deus" que Edir Macedo chegou a apontar como seu sucessor natural, e Paulo Marcelo, cria do Gideões Missionários da Última Hora, congresso pentecostal que serviu de escola para pregadores como Marco Feliciano. Nenhum deles foi chamado ao microfone.
O PT delega ao seu núcleo evangélico, sob comando de Benedita da Silva, a organização de eventos para o segmento. Recorre aos mesmos nomes, respeitados pela esquerda evangélica, mas com alcance limitado fora desse círculo reduzido, para engrossar o caldo evangélico pró-Lula.
A direita foi bem-sucedida em colar à imagem da esquerda exibições mais radicais de pautas legítimas de um grupo social, como feministas seminuas protestando perto de símbolos religiosos. Nos templos fica a impressão de que qualquer crença mais conservadora não tem vez ali. O bolsonarismo agradece.
O pastor Ricardo Gondim é um que teme o timing do evento. "Chegou um pouco tarde [para atenuar] na difusão de fake news sobre o PT ser inimigo das igrejas." Na coordenação da Frente Evangélica pelo Estado de Direito, Nilza Valéria Zacarias também diz que a carta foi tardia. "A gente tá feliz, mas tinha que ter acontecido no primeiro turno. Havia muita resistência na campanha."
Havia mesmo, e do próprio Lula, admite Gilberto Carvalho, ex-ministro e integrante da campanha petista. "Lula tem imensa dificuldade em resvalar em qualquer postura que pareça uso eleitoral da fé", diz.
O ex-presidente também não via necessidade de customizar sua fala para crentes, segundo o correligionário. "Ele achava que, falando para o conjunto da população, falava para os evangélicos."
Só que não. "Nos demos conta de que, mais do que influência, havia coerção de pastores" em prol de Bolsonaro, afirma Carvalho. Lula se tocou, "a muito custo, de que alguma coisa precisava ser feita".
O pastor Oliver Goiano, dos Evangélicos do PT, diz acreditar que a bolha em alguma medida foi, sim, furada. O ex-presidente abordou temas preciosos para conservadores, como aborto, banheiro unissex e uma suposta ideologia de gênero que a esquerda tentaria impregnar nas escolas.
Ele se distanciou dessas bandeiras. Apresentou-se como pai, avô e bisavô que vê a família como "uma coisa sagrada". Creditou a Satanás a sandice de que defenderia banheiros mistos como forma de incluir transgêneros. Disse "verdades em que acredita, sem oportunismo eleitoral", afirma Carvalho.
Muitos ali presentes elogiaram o tom, visto como fundamental para combater mentiras espalhadas por bolsonaristas, como se no dia seguinte a uma vitória de Lula os postos de saúde fossem distribuir pílulas abortivas a esmo. Havia certo incômodo no ar, porém, com concessões excessivas ao conservadorismo. Como se o ex-presidente enviasse para o final da fila pautas importantes para boa parte da esquerda.
Lula tem um chão de ovos pela frente, e cada pisada terá de ser calculada para não "criar problemas no outro campo", nas palavras de Carvalho. Quantos ovos serão quebrados para fazer essa omelete eleitoral?
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