Como essa realidade pôde ter ficado tanto tempo invisível?
Salem Nasser
Professor de direito internacional da FGV Direito SP
Folha de S.Paulo
As palavras têm poder, dizem. E apartheid é, de fato, uma palavra forte. Quando a encontramos, ela nos transporta para a lembrança de um sistema de segregação racial e de opressão que vigia na África do Sul até um passado tão incrivelmente recente e que nos dizia muito sobre o potencial de crueldade que o ser humano carrega consigo.
Mas a palavra apartheid e o seu sentido, a realidade que descreve, não são coisas que se encerram totalmente na geografia da África do Sul e no período coberto pela história do sistema naquele país. Pode haver, e há, apartheid em outros lugares e tempos.
É justamente o que diz a Anistia Internacional (AI), uma das mais importantes organizações de direitos humanos do mundo. Em seu mais recente relatório, a AI denuncia o apartheid construído e implementado por Israel em detrimento dos palestinos que vivem sob seu controle.
Não é a primeira vez que a organização denuncia crimes e violações de direitos fundamentais dos palestinos, mas é a primeira vez que aponta explicitamente para a existência de um sistema de apartheid.
Máquina israelense destrói casa palestina no sul de Hebron - Mamoun Wazwaz - 28.dez.2021/Xinhua |
Antes deles, em abril de 2021, a Human Rights Watch também quebrou o que parecia ser um tabu e soltou um relatório em que acusava Israel de ter ultrapassado a barreira dos crimes de apartheid e perseguição. Há algo novo na ousadia dessas organizações quando elas resolvem chamar as coisas pelos seus nomes.
Chama a atenção o fato de que o relatório da AI não fala de um vestíbulo recentemente cruzado, mas se refere a décadas de construção, desenvolvimento e implementação do sistema.
A pergunta se impõe: por que demoraram tanto para usar a palavra? Parte da resposta está em que ela ajuda a tornar visível uma realidade que muitos poderes querem resguardar sob um manto de invisibilidade. Por isso mesmo, os custos para as instituições podiam ser muito altos. Agora, a ousadia pode indicar que a realidade é tão explicitamente indecente que já não se pode calar e que os custos de dizer serão mais facilmente suportados.
A palavra tem ainda outro poder, que se casa com a sua força simbólica evidente: ela aponta, ao mesmo tempo, para o aspecto criminoso das práticas israelenses e para o fato de que elas constituem e servem a um sistema, um sistema de dominação e opressão de um grupo racial sobre outro.
Agnès Callamard, secretária-geral da AI, referiu-se assim ao que viu em Israel e Palestina: "... o que eu vi me chocou até âmago; não foi a violência —eu já vi violência—, foi a crueldade do sistema, a intricada e evolutiva administração de controle, despossessão e desigualdade, a detalhada e incrível burocratização sobre a qual o sistema está montado, a sua pura banalidade!".
Apontar para o fato de que se está diante de um sistema de segregação racial joga nova luz sobre o sentido e a gravidade dos crimes e das violações de direitos humanos que agora aparecem como parte de um todo coerente.
O relatório faz bem ao nos explicar essa verdade em termos técnicos, jurídicos, fazendo referência a tratados internacionais, decisões de tribunais e opiniões de grandes juristas.
Escavadora destrói casa palestina no sul de Hebron - Mamoun Wazwaz - 23.nov.2021/Xinhua |
Mas ele não fala apenas aos juristas; fala antes a todos nós enquanto seres humanos. Ele nos diz, essencialmente, que, em Israel e onde mais esse Estado exerce controle sobre os palestinos, há uma lei que diz ser aquele o lar nacional apenas dos judeus; que ali serão bem-vindos os judeus de qualquer lugar do mundo, mas que a população local, originária, não pode gozar o direito de reunião familiar e corre o risco de expulsão; que ali os palestinos são privados de direitos fundamentais como a liberdade de movimento, acesso à saúde, acesso à água; que ali os palestinos têm suas casas demolidas, são expulsos de suas aldeias, têm suas terras expropriadas, são presos administrativamente, sem acusação ou julgamento...; e, mais importante, que tudo isso é consciente, é voluntário, é planejado, é burocraticamente implementado, é um sistema, um sistema construído para manter a dominação de um grupo racial sobre outro!
Como pode ser que algo assim exista em nosso tempo? E que essa realidade seja tão facilmente demonstrável e ainda assim tenha ficado invisível? Será que agora já será possível enxergar?
Perto da cidade de Tubas (Cisjordânia), palestinos protestam diante de militares israelenses contra a expansão de assentamentos judeus - Ayman Nobani - 31.jul.2021/Xinhua |
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