21 de fevereiro de 2022

O espectro do mercado

A China entre o capitalismo e o comunismo.

Andrew B. Liu

The Nation

Observando a Bolsa de Valores de Xangai em uma corretora de Pequim. (Robyn Beck / AFP via Getty Images)

Market Maoists: The Communist Origins of China's Capitalist Ascent
Por Jason M. Kelly

Como a China Escapou da Terapia de Choque: O Debate da Reforma de Mercado
Por Isabella M. Weber

Nos últimos anos, houve uma nova virada no relacionamento entre a República Popular da China e o resto do mundo. No início dos anos 2000, quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio e fez os preparativos para sua primeira Olimpíada, pessoas de fora estavam otimistas de que ela seria assimilada a uma ordem mundial liderada pelos Estados Unidos, abraçando os mercados globais e aposentando sua antiga economia socialista. Mas essas previsões otimistas desapareceram desde a crise financeira de 2008 e a ascensão de Xi Jinping em 2013 como líder do Partido Comunista Chinês. A ideia de crescimento sem fim declarada pelos liberais americanos na década de 1990 foi substituída pela lógica de soma zero de que o sucesso da China virá às custas dos outros. Verdade ou não, a China tem sido bem-sucedida: sua economia continuou a crescer, não apenas com o comércio global, mas também por meio de dívidas financiadas pelo governo e investimentos em infraestrutura, tanto no país quanto no exterior, na Ásia, África e Américas. O fato de a China ter adotado tal abordagem em vez dos programas de austeridade e políticas de livre mercado dos antigos estados soviéticos deixou claro para os líderes dos Estados Unidos e da União Européia que a China emergiu no século 21 não apenas como um parceiro comercial e um aliado, mas como um rival em potencial.

O surgimento de uma nova era também sugere o fim de uma antiga. No futuro, podemos olhar para trás, para a pandemia de Covid-19 e as hostilidades EUA-China como o ponto culminante da ascensão econômica de quatro décadas da China, que começou no final dos anos 1970 com a morte de Mao Zedong e a coroação política de Deng Xiaoping. Ao mesmo tempo em que grande parte da Ásia, África e América Latina estagnou sob políticas de austeridade e desregulamentação, a China passou por uma transformação sem precedentes de país do terceiro mundo a potência global. Grande parte do crédito é dado a Deng, que supervisionou um novo conjunto de políticas econômicas conhecidas como gaige kaifang (reforma e abertura), desmantelando o sistema de comunas agrárias em favor de um sistema de responsabilidade familiar e abrindo as cidades costeiras ao comércio e investimento. Mas, como ficou claro em dois novos livros, Market Maoists, de Jason Kelly, e Como a China Escapou da Terapia de Choque, de Isabella Weber, a história real é muito mais complexa. Posicionando o desenvolvimento econômico e a reintegração da China em termos históricos mais longos, ambos os livros argumentam que os arquitetos da economia socialista da China há muito experimentam e emprestam de sistemas econômicos mistos de todo o mundo. A "nova" China é, de fato, muito mais antiga: ampliando o elenco de personagens além de Mao e Deng para outras facções dentro do estado, Kelly e Weber mostram como a economia política da China foi moldada por vibrantes debates internos e profundas mudanças intelectuais ao longo de várias gerações, complicando as opiniões recebidas sobre os contornos do comunismo chinês.

Ambos os livros destacam políticas concretas que desafiam os estereótipos do período designado "alto socilismo" dos anos 1950 aos anos 1970 e a era subsequente de reforma do mercado. Kelly demonstra como as políticas orientadas para o mercado durante a era Mao criaram os precedentes para a internacionalização subseqüente. A partir da década de 1940, a fronteira entre Hong Kong e Guangdong tornou-se um ponto de encontro crucial entre a China e o mercado mundial, e centros costeiros semelhantes foram centrais para as estratégias de desenvolvimento do país nas décadas de 1980 e 1990. Além disso, a partir da década de 1960, o Ministério de Comércio Exterior da China experimentou bases de produção de exportação que importavam matérias-primas do exterior, refinavam-nas com mão-de-obra local e as reexportavam para o exterior como bens de maior valor agregado, tudo em busca de moeda estrangeira. Essa estratégia foi resumida na frase "yijin yangchu" ("usar importações para cultivar exportações") e pressagiava a mudança da década de 1990 em direção à industrialização voltada para a exportação. De fato, Kelly nos lembra que muitos dos líderes envolvidos nas reformas do final do século —o antigo primeiro-ministro Zhou Enlai, o membro do Comitê Central Chen Yun e o ministro das Finanças Li Xiannian— já estavam experimentando soluções baseadas no mercado nas décadas anteriores às políticas lideradas por Deng e pelo primeiro-ministro Zhao Ziyang.

Por outro lado, Weber argumenta que os líderes chineses buscaram manter um controle substancial sobre a economia na década de 1980 — o mesmo período, muitos agora assumem, em que a China se juntou acriticamente a um crescente consenso neoliberal global. Na narrativa de Weber, a China evitou o destino de outros ex-países socialistas, com sua abdicação extrema às forças do mercado, por causa dos esforços de Zhao e de um círculo de jovens reformadores econômicos de mentalidade rural de sua confiança, que pressionou por um sistema de preço duplo para desenvolver a agricultura e as indústrias pesadas da China. Paradoxalmente, essa decisão de manter elementos de uma economia socialista ajudou a sustentar a ascensão da China como potência capitalista. Ainda hoje, o Estado chinês vê o mercado principalmente em termos instrumentais —como diz Weber, uma "ferramenta na busca de seus objetivos de desenvolvimento mais amplos"— preservando assim um grau de soberania econômica que distingue a China de outros países poderosos.


Market Maoists enfoca as origens da nova economia da China e as incursões do Partido Comunista Chinês no comércio internacional de 1949 até o final dos anos 70. Kelly lança sua história em uma estrutura decididamente pós-Guerra Fria, evitando a ideia de uma rivalidade estrita entre estados socialistas e capitalistas. Se olharmos além das alianças políticas e examinarmos as políticas reais da China, argumenta ele, encontraremos uma realidade que era "menos doutrinária, mais nuançada e muitas vezes ideologicamente promíscua". Notavelmente, o livro de Kelly é uma história do PCC e não o arco mais longo da história chinesa. O contexto dos tratados dos portos da era Qing e da era republicana e o comércio semicolonial permanecem ausentes, mesmo que tenham moldado a perspectiva da primeira geração do partido. Além disso, apesar de convidar à reflexão sobre a porosidade das categorias "capitalismo" e "socialismo", Kelly as usa como termos geopolíticos diretos para designar as alianças da Guerra Fria, com pouca ruminação sobre o que significavam conceitualmente e como se sobrepunham de maneiras surpreendentes.

As preocupações e pontos fortes de Kelly, ao contrário, são de arquivo. O livro Market Maoists começa em Hong Kong nas décadas de 1930 e 1940, quando a cidade se tornou uma valiosa porta de entrada para a diáspora chinesa que vivia no exterior e um centro para a exportação de matérias-primas e importação de moedas estrangeiras. Durante a guerra com o Japão (1937-1945) e a subsequente Guerra Civil entre o partido nacionalista Kuomintang e os comunistas rebeldes (1946-1949), o PCCh montou um escritório clandestino em Hong Kong, então uma colônia britânica, e alistou jovens quadros para criar empresas de fachada, canalizando suprimentos e dinheiro para sua base no norte. Kelly oferece retratos cativantes de jovens agentes chineses como Liao Chengzhi e Qin Bangli, descendentes da burguesia que passaram para o outro lado. Reutilizando sua perspicácia técnica e comercial para ajudar a sustentar o grupo rebelde a milhares de quilômetros de distância, a dupla fundou a Liow and Company, que parecia ser uma pequena empresa comercial. Em 1948, com o PCCh desgastando as forças do KMT na Manchúria, a Liow and Company seria renomeada para China Resources, ou Hua Run, e se tornaria uma importante holding estatal que até hoje facilita o comércio entre o continente, Hong Kong e o resto do mundo.

Com essas empresas e conexões, o PCC começou, mesmo antes da fundação da República Popular, a enviar matérias-primas —principalmente grãos e soja— de Dalian, Manchúria, para Hong Kong, a fim de trocá-las por suprimentos valiosos. As remessas viajaram de trem para a península coreana e depois a bordo de navios soviéticos para o porto de Victoria. Lá, os quadros do partido também aproveitavam para visitar o Hong Kong Shanghai Banking Corporation (HSBC) no centro da cidade e descarregar vários quilos de ouro que revestiam seus coletes.

Os estudantes da China moderna reconhecerão que os primeiros anos do governo do partido nas décadas de 1940 e 1950 foram marcados por debates sobre como fazer a transição gradual para o comunismo. Mao afirmou que a República Popular deveria expandir e instrumentalizar o desenvolvimento capitalista sob o governo do partido antes de mudar para o socialismo, uma teoria conhecida como "nova democracia". Governando um país empobrecido, os líderes do PCC entenderam que construir uma China forte e independente exigiria dinheiro e recursos então concentrados nas mãos de uma burguesia nacional. O comércio não era exceção: na década de 1940, o governo chinês não via necessariamente os Estados Unidos e seus aliados europeus como rivais mortais. Somente com a eclosão da Guerra da Coréia, com as forças americanas e chinesas se enfrentando, as políticas hostis de contenção da Guerra Fria se solidificaram na Ásia. Posteriormente, os Estados Unidos impuseram um embargo aos produtos chineses e apreenderam cerca de US$ 42,5 milhões em ativos chineses em bancos americanos. Isso só tornou Hong Kong mais importante para a República Popular, já que a fronteira com Guangdong se tornou palco de um animado mercado negro de mercadorias e um fluxo de refugiados deixando a China (como explora a nova pesquisa de Peter Hamilton, Denise Ho e Zhou Taomo).

Anteriormente, os funcionários do PCC viam o comércio em termos pragmáticos, embora por razões políticas permanecessem em segredo. Com o embargo, Zhou Enlai e Mao Zedong entenderam a conveniência política de defender ruidosamente o comércio exterior. Em abril de 1952, representantes chineses participaram de uma importante conferência comercial realizada em Moscou com 443 delegados de países "capitalistas" e "socialistas". Eles buscaram ativamente acordos com a França, Alemanha Ocidental, Paquistão e Indonésia, entre outros, que teriam totalizado mais de $ 220 milhões (apesar de alguns acordos terem sido malsucedidos), proclamando-os como atos de internacionalismo contra as "políticas imperialistas americanas de embargo e bloqueio." Em uma cena cômica, representantes chineses e britânicos em Genebra, anos depois, deslizaram silenciosamente pedaços de papel para frente e para trás com listas de itens em potencial para comércio. O lado chinês pressionou o Reino Unido a exportar bens proibidos pelo embargo dos EUA, como metais, navios e veículos, enquanto o lado britânico se recusou a ir além da lista acordada de medicamentos e produtos químicos. O subtexto geopolítico foi entendido por ambas as partes, mas nunca expresso.

Embora o comércio exterior represente menos de 10% do PIB da China, a aquisição de moedas e tecnologias estrangeiras se mostrou essencial para os projetos domésticos. Durante a década de 1950, Chen Yun, membro do Comitê Central, ajudou a elaborar o primeiro Plano Quinquenal do país, que envolvia contratos de tecnologia soviética em troca de matérias-primas chinesas. Para complementar a escassez de moeda estrangeira, as autoridades locais também realizaram a primeira Feira de Cantão em 1957, atraindo comerciantes de todo o mundo para examinar sedas, chás e artesanatos chineses. A feira continua a funcionar duas vezes por ano e foi durante muitos anos uma discreta tábua de salvação para o mercado global.


Mas se tantos elementos para a atividade internacional já existiam na década de 1950, então o que impediu Chen Yun e Zhou Enlai de abraçar mais abertamente o comércio mundial e as práticas capitalistas até a década de 1970? A resposta mais simples, para Kelly, é Mao Zedong.

Depois de apenas alguns anos de operação, o Ministério do Comércio Exterior tinha "muito do que se orgulhar", escreve Kelly, observando que estabeleceu relações com 82 países e regiões. Mas esse otimismo foi destruído quando Mao liderou uma campanha econômica de rápida coletivização e industrialização agrícola, impulsionada por incentivos morais e mobilização em massa, que viria a ser conhecida como o Grande Salto Adiante.

Na visão de Mao, o Grande Salto Adiante remediaria os desequilíbrios do primeiro Plano Quinquenal ao aumentar a produção tanto na cidade quanto no campo. No entanto, no frenesi e na desorganização da campanha, grandes áreas do campo foram deixadas em pousio e inúmeros metais domésticos foram inutilizados em fornos de quintal. Para o Ministério do Comércio Exterior, o Salto foi um desastre que "sabotou" suas políticas pró-comércio. As deficiências agrícolas significavam que a China poderia cumprir menos da metade de seus contratos de exportação, principalmente de arroz, trigo e carne de porco, e a campanha de Mao também "desenraizou a disciplina e o controle que o Ministério do Comércio Exterior há muito procurava incutir em seu trabalho", Kelly escreve.

A Revolução Cultural, que começou quatro anos após o Grande Salto Adiante, revelou-se igualmente desastrosa. No interregno, o Ministério do Comércio Exterior começou a importar grãos do Canadá e, com o fim da aliança sino-soviética em 1960, buscou mais negócios com a Austrália, Europa e Japão. Mas esses planos bem elaborados foram mais uma vez frustrados por uma grande campanha maoísta. Desta vez, os números do comércio não sofreram muito, mas a Revolução Cultural devastou a burocracia e várias figuras importantes na história de Kelly -incluindo Qin Bangli, Ye Jizhuang e Li Xiannian, membros do partido que ajudaram a criar políticas comerciais em décadas anteriores- foram posteriormente expurgados pelo partido ou "comatidos" por rebeldes revolucionários.

Kelly reconhece que houve muitas razões pelas quais a China embarcou no Grande Salto Adiante e na Revolução Cultural, incluindo o aumento das desigualdades entre cidade e país e entre partidários e não-partidários. Mesmo assim, para ele, a culpa recai principalmente sobre Mao e sua psicologia peculiar -um tema familiar nos estudos sobre a China. A Revolução Cultural, argumenta Kelly, foi o produto da mente deteriorada de Mao e seu medo de um "legado" diminuído. Embora as preocupações de Mao com as novas desigualdades de classe do país sejam reconhecidas, elas são enquadradas como coisas que existiam apenas em seus escritos -as preocupações paranóicas de um líder idoso. Não se entende, como argumentaram os sociólogos Joel Andreas e Wu Yiching, que essas campanhas se desenvolveram a partir de contradições sociais objetivamente identificáveis específicas do sistema socialista.

Kelly está compreensivelmente mais interessada nos resultados das campanhas do que em sua lógica inicial. Mas ao enquadrar essa história através da oposição entre uma burocracia prática e tecnocrática e seu líder louco, ele corre o risco de minar o poder explicativo de seu livro. Terminei a leitura dos Market Maoists com a impressão de que os dirigentes do partido eram mais ou menos secretamente capitalistas o tempo todo, defendendo os ideais do socialismo e da revolução apenas nominalmente ou cinicamente. Como resultado, a liberalização econômica subsequente não parece mais a transição histórica mundial que realmente foi, mas sim uma continuação apolítica e quase inevitável das políticas e programas liderados por Zhou, Chen e outros na década de 1950. Ao contrário de seu título, então, o livro de Kelly coloca Mao contra o mercado: em vez de localizar as "origens" da "ascensão capitalista" da China na era socialista, ele vê aqueles primeiros ideais políticos como um obstáculo temporário contra a inelutável e natural marcha de a economia mundial.


Como a China Escapou da Terapia de Choque, em contraste, destaca não a continuidade da ascensão capitalista da China, mas as divergências políticas muito reais que animaram a primeira década da "   reforma e abertura" de Deng. Na década de 1980, muitos reformadores adotaram o conselho de uma ortodoxia neoliberal emergente que defendia a liberalização instantânea de todos os preços na economia chinesa -ou seja, desfazendo o sistema de preços planejado pelo estado para todos os bens, de cigarros e bicicletas a petróleo e algodão bruto. A liberalização de preços combinada com a austeridade fiscal constituiu um "pacote de reformas" que mais tarde seria adotado na Europa Oriental e nos ex-estados soviéticos na década de 1980 sob o título de "terapia de choque". Se tivesse acontecido na China, argumenta Weber, os resultados teriam sido igualmente desastrosos, levando à hiperinflação, desindustrialização e queda de renda.

Felizmente, um punhado de reformadores chineses jovens, pragmáticos e de orientação rural liderou um contramovimento para persuadir o principal tomador de decisões econômicas do estado, o primeiro-ministro Zhao Ziyang, a adotar um sistema de preços gradualista de duas vias (shuanggui zhi). O núcleo industrial da economia socialista permaneceria sob controle de preços do estado, enquanto os bens "não essenciais" nas margens foram gradualmente mercantilizados, permitindo à China maximizar seu potencial econômico. Os trágicos eventos de 1989, no entanto, com violência estatal em massa contra estudantes e trabalhadores na Praça Tiananmen de Pequim, resultaram no exílio político de Zhao e muitos dos jovens reformadores, enterrando um registro valioso de debate vibrante, mesmo quando as consequências de suas políticas ajudaram a garantir a ascensão da China na virada do século.

Weber começa seu livro com uma pergunta básica: por que o Estado chinês decidiu manter o controle de preços em uma era que buscava liberar o mercado? Em sua opinião, há muitas razões históricas e também econômicas. Ela enquadra os debates da década de 1980 em termos derivados do texto Guanzi, do século VII aC, que defendia que, em questões econômicas, deve-se distinguir entre bens "leves e pesados" (qingzhong): ou seja, entre bens essenciais "pesados", como sal, grãos e seda, que o Estado tem o dever de regulamentar, versus tudo o mais, que as autoridades poderiam deixar desprotegidas da dinâmica do mercado. Tais princípios fundamentaram a economia do Império Qing do século 18, por exemplo, especialmente quando se tratava de sua regulamentação de celeiros maciços, o mais elaborado programa de combate à fome na história mundial. Os princípios "leves e pesados", sugere Weber, também influenciaram as duas vertentes da reforma de preços na década de 1980.

Outra fonte para o esquema de preço duplo veio dos tempos modernos: os planejadores dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial racionaram e fixaram preços para produtos básicos, e o novo estado chinês, recuperando-se de décadas de guerra com o Japão e guerra civil com o KMT, também fixou muitos preços para estabelecer uma nova moeda. Em ambos os casos, o problema foram as dificuldades excepcionais da guerra, que levaram a uma superabundância de dinheiro em circulação que ultrapassou os bens materiais. Em vez de estimular a produção, como a economia neoclássica poderia argumentar, a alta demanda combinada com a oferta inelástica significava que os preços subiriam infinitamente e a especulação e o entesouramento ultrapassariam a agricultura produtiva e a indústria. Na China, o novo estado conseguiu priorizar itens "pesados" ou essenciais, comprando grãos e tecidos e vendendo-os a preços designados pelo estado, cortando especuladores e restaurando a fé na nova moeda, o renminbi. Assim, as estratégias de controle de preços adotadas pelos reformadores da década de 1980 também podem ser vistas em várias épocas e lugares ao longo da história mundial, nem exclusivamente chinesas nem exóticas para a economia moderna.


A partir dessa pesquisa histórica, Weber volta-se para as tensões não resolvidas no sistema socialista que se acumularam nas décadas anteriores à década de 1980. A partir da década de 1950, ela observa, o PCCh implementou um monopólio estatal sobre a compra e venda de produtos agrícolas, subsidiando a indústria urbana extraindo excedentes do campo. O principal método era a "tesoura de preços" do Estado — termo cunhado por Trotsky — que pagava preços baixos pelos produtos agrícolas e vendia os produtos industriais de volta ao campesinato a taxas mais altas. Tal exploração atraiu protestos camponeses e trabalhistas ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, formando o contexto econômico crucial para o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural — fatores estruturais não enfatizados no relato de Kelly. Mesmo antes da morte de Mao, o PCC reconhecia amplamente a necessidade de mudança: embora o modelo soviético tivesse proporcionado à China ganhos absolutos no PIB, a economia era atormentada por padrões de vida atrasados e pobreza generalizada, e tornou-se impossível ignorar as histórias de camponeses fugindo para Hong Kong. Com a reintegração política de Deng e Chen no final da década de 1970, o Estado se comprometeu com uma abordagem pragmática e não ideológica do crescimento econômico. "Não mudar não era uma possibilidade", disse Zhao Renwei, um grande reformador, a Weber em uma entrevista. "Tínhamos que reformar. Mas como reformar? Isso não estava claro."

Para resolver essa questão, os economistas chineses primeiro voltaram seu foco para pensadores do Leste Europeu, que compartilhavam seu vocabulário marxista e stalinista, e depois para acadêmicos europeus e americanos imersos na tradição neoclássica. Eles deram atenção especial aos emigrados de países socialistas que visitaram a China: Włodzimierz Brus da Polônia (então na Universidade de Oxford), Ota Šik da Tchecoslováquia (então na Universidade de St. Gallen, na Suíça) e János Kornai da Hungria (então em Harvard). Eles também organizaram reuniões com funcionários do Banco Mundial, primeiro em Zhejiang em 1982 e depois em um navio de cruzeiro chamado M.S. Bashan no rio Yangzi em 1985. Cada voz enfatizou que os controles de preços ao estilo soviético e chinês eram estruturalmente falhos e que era necessário reformar a economia adotando os preços de mercado.

A China, ao que parecia, estava caminhando para um "pacote de reformas". Isto é, até que uma geração de jovens intelectuais começou a defender a manutenção parcial da estrutura de controle de preços. Nascidos entre 1940 e 1960, esses reformadores compartilharam a experiência de viver e trabalhar no campo durante a Revolução Cultural. Eles eram profundamente sensíveis aos problemas do coletivismo, mas também, de forma mais ampla, à "questão agrária" de como elevar os padrões materiais do campesinato. Eles eram almas gêmeas, sugere Weber, com membros mais velhos do partido nascidos na virada do século, cujas experiências formativas vieram das bases guerrilheiras em Yan'an, no norte. "Aqueles que passaram muitos anos em uma aldeia pobre", escreve Weber, "acostumaram-se a viver entre os camponeses e eram diferentes de seus colegas mais jovens ou daqueles que permaneceram nas cidades".

Para esses jovens pensadores, a China precisava seguir um caminho econômico misto - caminhando para a descoletivização, mas ainda controlando os preços de setores industriais essenciais. Como Wang Xiaoqiang, um dos reformadores rurais, explica vividamente a Weber, muitos bens de consumo — como relógios, bicicletas, rádios e TVs — estavam supervalorizados na época, mas a concorrência de mercado naturalmente reduziria seus preços. O verdadeiro problema residia nos bens de capital e matérias-primas fornecidos pelo Estado – madeira, cimento, produtos químicos, carvão, minério de ferro, fertilizantes – cujos preços eram muito baixos. Como esses itens eram usados em todas as indústrias a jusante, as reformas do pacote neoliberal ampliariam a demanda e disparariam seus preços. A menos que fossem regulamentados, os preços mais altos teriam graves "efeitos cascata", induzindo uma "reação em cadeia" de inflação descontrolada, reminiscente da Segunda Guerra Mundial.

O argumento dos jovens intelectuais venceu em 1984, convencendo Zhao Ziyang a formalizar o sistema de via dupla. O estado liberalizaria gradualmente os bens não essenciais nas margens, mas manteria o poder sobre os essenciais no núcleo industrial socialista: controlaria o "pesado", mas liberaria o "leve".

Nos dois anos seguintes, no entanto, as demandas pelo pacote de reforma ficaram ainda mais altas. Wu Jinglian, atualmente membro da Conferência Consultiva Política do Povo, foi uma das vozes mais fortes, promovendo o trabalho de Kornai e servindo como elo da China, escreve Weber, para uma "rede transnacional que transcende a divisão da Guerra Fria" que serviu como "o terreno fértil para o neoliberalismo na Europa Oriental". Por um breve período, parecia que Zhao poderia reconsiderar o esforço de Wu e Kornai para a liberalização da noite para o dia e a correção do mercado, comentando em particular em março de 1986 que "o pacote de reformas é superior à reforma por medidas individuais". Mas os reformadores rurais mais uma vez prevaleceram. O economista Li Yining, um dos veteranos do campo, argumentou publicamente que o pacote de reformas pressupunha concorrência e informação perfeitas, preços flexíveis e suprimentos elásticos, nenhum dos quais existia na China ou poderia ser criado de uma só vez. O problema não era o desalinhamento dos preços planejados e naturais, mas o subdesenvolvimento das empresas chinesas. Somente o desenvolvimento contínuo da indústria pesada poderia aliviar o excesso de demanda.


É instrutivo comparar a análise de Weber com um tratamento semelhante de Julian Gewirtz, atualmente diretor para a China no Conselho de Segurança Nacional do presidente Biden. Em seu recente livro  Unlikely Partners: Chinese Reformers, Western Economists, and the Making of Global China, Gewirtz abordou os mesmos debates de liberalização da década de 1980, mas os enquadrou como uma história de reformadores superando conservadores e pensadores cosmopolitas conquistando o nativismo. O livro de Weber complica essa história da inevitabilidade da globalização, destacando como, de fato, esses debates da década de 1980 renderam críticas incisivas ao pensamento neoliberal.

Em última análise, tanto os reformadores de pacote como os rurais concordaram com a necessidade de um sistema de mercado, e ambos foram receptivos a ideias de todo o mundo. A verdadeira discordância, observa Weber, girava em torno de algumas questões fundamentais sobre a investigação social e os valores humanos subjacentes à economia. A premissa de partida para os neoliberais era a existência de um mercado em bom funcionamento, expresso através do movimento de preços. Por meio de cálculos complexos, eles esperavam "acertar os preços" e liberar totalmente as forças do mercado. Em contraste, os reformadores rurais enfatizaram as diferenças históricas e regionais da China, priorizando pesquisas de campo, evidências empíricas e testes de hipóteses. Eles discordavam que a vida econômica pudesse ser reduzida a atividades de mercado, consistentemente traçando distinções tanto contra quanto dentro do reino da produção, entre agricultura e indústria leve versus indústria pesada. Bens de todos esses setores podem ter compartilhado um valor de mercado subjacente conhecido, mas isso não garante que eles se comportariam de maneira semelhante. O núcleo industrial de energia, aço e produtos químicos existia há décadas, projetado para funcionar em uma economia planejada. Era inadequado para a competição, sofrendo de restrições materiais inevitáveis, como tecnologia mais antiga e cadeias de suprimentos não integradas. Maior demanda não induziria disciplina, mas sobrecarregaria o sistema.

Os reformadores rurais, a meu ver, também faziam um alerta. Embora os números econômicos fossem abstraídos das realidades concretas, crises materiais ainda poderiam surgir nas economias capitalistas, causando um curto-circuito nos modelos mais elegantes. Enquanto a troca de mercado pega o que é sólido e o desmancha no ar, é no campo da produção, da agricultura à indústria, que persistem os teimosos materialismos. Parece que os reformadores rurais eram incomuns entre sua geração em trazer continuamente a atenção de volta para a morada oculta da produção, menos preocupados com o desenvolvimento de um mercado perfeito do que com o projeto de reindustrialização. "A resposta não está nos livros ou nos modelos de outros países", disse Chen Yizi, um dos reformadores rurais. "Só com a prática podemos encontrar a melhor forma de construir um país socialista com características chinesas." Eles adotaram essa visão por várias razões, sugere Weber: familiaridade íntima com as dificuldades do campo, experiência em primeira mão com o trabalho agrícola coletivo e fluência nos clássicos do marxismo, de Lenin a Stalin e a Mao, em contraste com a ciência neoclássica. que enamorou Wu Jinglian e os proponentes do pacote de reformas. Em última análise, embora Weber escreva sobre o desafio ao idealismo neoliberal do ponto de vista prático, os reformadores rurais também apresentaram um provocativo desafio intelectual da própria economia socialista como uma formidável tradição de pensamento.

Ainda assim, a história de Weber termina com um profundo senso de emoção. No verão de 1989, os líderes chineses discordaram violentamente sobre os protestos na Praça Tiananmen, e as divisões dentro do partido resultaram na prisão ou exílio, em graus variados, de Zhao Ziyang e dos reformadores Chen Yizi e Wang Xiaoqiang, apagando seus legados. Na ausência de um contrapeso, os líderes chineses nas próximas décadas buscariam políticas mais voltadas para o mercado, semelhantes às reformas neoliberais de preços.

De fato, Weber inicialmente apresenta os debates econômicos da década de 1980 como de natureza política e girando em torno de questões de poder na sociedade. Mas também é justo fazer perguntas mais amplas -não abordadas diretamente por Weber- sobre como os reformadores rurais teriam divergido de políticas subsequentes de mercantilização social, como a precarização dos trabalhadores fabris, a explosão da migração da mão-de-obra rural e a privatização da indústria rural. O que ela deixa claro é que a economia capitalista mista, cujo projeto foi forjado na década de 1980, permaneceu intacta, apesar das aparências. No ano passado, Xi Jinping sinalizou que as empresas estatais no centro da economia chinesa teriam um papel maior do que nos regimes anteriores, tanto para administrar a pandemia em curso e suas consequências econômicas quanto para conduzir o país a uma "recuperação em forma de V".

Os reformadores rurais podem ter evitado o desastre da terapia de choque, mas a economia que salvaram é diferente da que imaginaram. A China de hoje não é o produto de nenhum modelo de partido único, seja maoísta ou neoliberal, mas um híbrido involuntário de diversas forças históricas conflitantes.


Kelly e Weber apresentam duas interpretações plausíveis sobre a ascensão econômica da China no final do século XX. Em um deles, a China integrou-se suavemente ao mercado mundial, explorando experiências mais antigas com comércio costeiro e diplomacia internacional. No outro, as autoridades estatais evitaram o destino da terapia de choque da Rússia e até mesmo da crise asiática de 1997, precisamente ao restringir a influência de uma ortodoxia econômica ascendente e universalizante que priorizava o interesse do mercado sobre o bem-estar material e o desenvolvimento industrial. Ambas as interpretações fornecem informações valiosas sobre a China que conhecemos hoje, refletindo o caráter multifacetado da segunda maior economia do mundo, que extrai seus pontos fortes de uma mistura de competição de mercado e poder estatal declaradamente iliberal.

Weber escreve que os reformadores na China divergiram com sucesso do ideal neoliberal nacional, mas isso não serve para negar que a ascensão da China é central para a história da era neoliberal global. Não muito tempo atrás, era possível narrar a história do neoliberalismo reduzindo-o à ideologia de um punhado de economistas de Chicago e Viena, que conseguiram disseminar suas ideias para o resto do mundo. Desde então, novos estudos ampliaram essa investigação além do "Ocidente" para incluir padrões sincronizados que se desdobram no "resto": projetos de desenvolvimento na América Latina, zonas de processamento de exportação na Ásia e paraísos fiscais offshore em territórios pós-coloniais. Da mesma forma, se a posição da China como potência econômica levou os sinólogos a prestar mais atenção à história global, então, da mesma forma, os estudiosos do capitalismo do Atlântico Norte acharão cada vez mais inevitável levar o estudo da China mais a sério. O outro lado da financeirização extrema da vida econômica na Euro-América, parece-me, foi a industrialização liderada pelo estado da Ásia Oriental.

Se as noções anteriores de que a China se assimilaria a uma ordem mundial liderada pelos EUA provaram ser uma ilusão, então deveria ser de vital importância reexaminar o que, exatamente, o projeto socialista significava no século XX. Sem dúvida, a China foi totalmente reintegrada à economia global após um longo hiato, mas esse não foi um movimento unilateral. Por mais de meio século, formuladores de políticas e pensadores econômicos na China —de Mao a Deng, abrangendo reformadores rurais e de pacote— estudaram ideias e práticas de mercado globalmente ascendentes, assimilando algumas, mas não outras, em suas próprias tradições do socialismo chinês, submetendo-as em seu próprio universo específico de significado.

Andrew B. Liu é professor assistente de história na Villanova University e autor de Tea War: A History of Capitalism in China and India.

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