Bloco não é rival do G7, mas oferece cada vez mais algo que a antiga ordem não consegue: inclusão em vez de exclusão, reforma em vez de estagnação
Celso Amorim
Assessor-chefe da Assessoria Especial da Presidência da República; ex-ministro das Relações Exteriores (2003-2010, governo Lula) e da Defesa (2011-2015, governo Dilma)
Acabo de completar 83 anos, 62 dos quais dedicados à diplomacia e aos assuntos internacionais. Ao longo destes anos, testemunhei inúmeras crises e guerras. Eu me preparava para os exames de admissão à carreira diplomática quando a Crise dos Mísseis de Cuba se desenrolava, em 1962. Alguns anos depois, em 1967, então aluno da Academia Diplomática em Viena, eclodiu a Guerra dos Seis Dias entre Israel e seus vizinhos árabes.
Esses conflitos foram devastadores para os diretamente envolvidos, mas nenhum chegou verdadeiramente a ameaçar uma guerra global. Ficamos horrorizados com o uso de napalm no Vietnã ou com o bombardeio do Golfo de Tonquim. Estremecemos diante da repressão da Primavera de Praga. No entanto, poucos acreditavam que esses eventos provocariam um confronto direto entre Washington e Moscou. Até mesmo na Crise dos Mísseis havia uma convicção silenciosa de que a racionalidade prevaleceria. Kennedy e Khrushchev, supúnhamos, encontrariam um modo de recuar.
As coisas são diferentes agora.
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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursa durante cúpula do Brics no Rio de Janeiro - Pablo Porciuncula - 7.jul.2025/AFP |
As guerras modernas já não são movidas apenas por ideologia ou rivalidade econômica. Elas são inflamadas por fervor religioso e disputas territoriais, ecoando as tensões que precederam a Primeira Guerra Mundial. As regras do comércio internacional são ignoradas. O multilateralismo, desacreditado, enfrenta pressões sem precedentes. A ordem do pós-guerra, como a conhecíamos, não existe mais.
A criação do G7, em 1975, foi um sintoma precoce da erosão do multilateralismo. Embora a Carta da ONU tenha estabelecido o Conselho Econômico e Social para tratar de questões econômicas globais, as maiores economias do mundo nunca lhe deram a devida atenção. Diante da iminência dos choques do petróleo da década de 1970, elas se recolheram em um clube exclusivo.
Nos anos 1990, após a queda da União Soviética, a Rússia foi admitida no clube, transformando o G7 em G8. Em 2005, surgiu o formato G8+5, que incluía Brasil, China, Índia, México e África do Sul. No entanto, a inclusão de nações em desenvolvimento pouco fez para democratizar a tomada de decisões. O G8 permaneceu uma oligarquia. Os convidados participavam mais na forma do que no conteúdo, e as verdadeiras decisões eram tomadas sem eles.
Enquanto o G7/G8 se consolidava, os países em desenvolvimento buscavam se organizar em defesa de interesses comuns. O Movimento dos Não Alinhados surgiu desse desejo por um caminho independente durante a Guerra Fria. A descolonização e a evolução das teorias de desenvolvimento deram origem ao G77. Embora representativos em sua composição, esses grupos enfrentavam dificuldades para alcançar consenso. O mais grave: eles permaneciam excluídos de uma representação equitativa nos órgãos que detinham poder real —especialmente o Conselho de Segurança da ONU.
A crise financeira de 2008 impôs uma revisão de paradigmas. A criação do G20 reconheceu que a solução dos problemas globais exigia vozes para além do G8. Na mesma época, surgiu o Brics —símbolo da demanda por um sistema multilateral mais justo.
Embora o acrônimo tenha sido criado pelo economista-chefe de uma agência de classificação de risco, o Brics foi gradualmente se transformando em um fórum político. Após um encontro conjunto com o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), em Brasília, a África do Sul ingressou formalmente no bloco, em 2011. Essa sólida base de membros originais se expandiu em 2023, com novas adesões. Hoje, o Brics alcança um equilíbrio justo entre representatividade e eficiência.
Uma característica distintiva do bloco é seu foco em soluções práticas para as necessidades do mundo em desenvolvimento. Em 2014, estabeleceu o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), que ampliou e simplificou a oferta de financiamento público, particularmente nas áreas de infraestrutura e desenvolvimento sustentável. Na 17ª Cúpula do Brics, realizada este ano no Rio de janeiro, sob a presidência do Brasil, avançamos discussões cruciais sobre comércio em moedas locais, fluxos de investimento, cooperação em inteligência artificial, ação climática e cooperação em saúde.
O Brics não foi concebido como um rival do G7. No entanto, cada vez mais oferece algo que a antiga ordem não consegue: inclusão em vez de exclusão, reforma em vez de estagnação. Hoje, sua missão é canalizar esse impulso para construir um mundo que seja justo e sustentável, onde o multilateralismo prevaleça. Não precisamos de nada menos que isso.
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