VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)
[RESUMO] A geografia da produção econômica global vem sendo redesenhada por novos vetores, como o acesso a energia limpa, favorecendo a competitividade de países em desenvolvimento, sustentam autores, mas o contexto de mudanças exige superar o Consenso de Washington e investir em uma articulação ampla voltada para a prosperidade sustentável.
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O Consenso de Washington, uma espécie de arcabouço de governança macroeconômica e financeira que caracterizou o auge do período neoliberal e influenciou diretamente a política econômica dos países em desenvolvimento, está em vias de esgotamento. O artigo do presidente Lula (PT) no jornal The New York Times apontou apropriadamente que até os EUA reconheceram que esse arcabouço chegou a seu limite.
Difundido por organismos multilaterais, em especial as instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional) com o apoio do Tesouro dos Estados Unidos, o Consenso de Washington se fundamentou em três pilares centrais: estabilização inflacionária via austeridade fiscal, liberalização do comércio e do fluxo de capitais e privatização generalizada de serviços e empresas públicas.
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Vista aérea do Parque da Cidade, um dos locais que sediarão a COP30, em Belém - Marx Vasconcelos - 28.jun.25/Reuters |
O Consenso de Washington surgiu nos anos 1990 como resposta às "décadas perdidas", apostando que o problema central era um Estado excessivamente intervencionista. Essa leitura, porém, simplificou um quadro muito mais complexo, marcado por restrições externas severas, instabilidade financeira internacional e forte dependência de capitais estrangeiros.
Ao priorizar liberalização e austeridade, a agenda acabou deixando em segundo plano o fortalecimento de capacidades produtivas nacionais e a coordenação necessária para sustentar mudanças estruturais, algo que limitou o espaço para estratégias de desenvolvimento adaptadas às realidades do Sul Global e contribuiu para exacerbar uma divisão internacional do trabalho desfavorável a países em desenvolvimento.
Três décadas depois, esse receituário mostra-se inadequado. A geografia da produção está sendo redesenhada por novos vetores: riscos geopolíticos, custos elevados de energia, tarifas de carbono e pressões regulatórias levam empresas a buscar não apenas mão de obra barata, mas principalmente energia limpa e acessível para sustentar operações industriais intensivas em energia.
Nesse contexto, o Brasil pode aproveitar o protagonismo conquistado no G20 e no Brics para, durante a COP30, apresentar as bases de um novo marco de governança para o desenvolvimento, que chamamos de Consenso de Belém.
A proposta atualiza os princípios do desenvolvimento para um mundo que já não é o dos anos 1990, integrando clima e economia de forma indissociável: transformar vantagens naturais, como energia limpa e abundante, em capacidades produtivas por meio de políticas industriais direcionadas, planejamento territorial e financiamento adequado. Esse movimento pode estimular a descentralização do desenvolvimento econômico, criando polos produtivos e ampliando oportunidades fora dos centros tradicionais, bem como contribuir para a redução de emissões.
De certa forma, esse entendimento converge para o novo espírito do tempo. Depois de décadas de retórica em torno da redução do papel econômico cumprido pelo Estado, os países desenvolvidos voltaram a adotar políticas industriais explícitas, ainda que, na prática, nunca tenham deixado de aplicá-las, mesmo enquanto defendiam o contrário.
Nos Estados Unidos, programas como o Inflation Reduction Act, lei do governo Biden que objetivava reduzir a inflação e incluiu uma série de medidas para a redução de emissões de carbono, direcionaram grandes volumes de recursos públicos para reconstruir capacidades produtivas internas e acelerar a transição energética. A União Europeia, à luz do European Green Deal, que busca tornar o continente o primeiro bloco neutro em carbono, segue caminho semelhante, com metas de produção de tecnologias limpas e mecanismos regulatórios para conter importações poluentes.
Essas iniciativas, combinadas com novos impulsos protecionistas, mostram que a competição global está demandando mais planejamento, maior coordenação e volumes significativos de investimentos públicos.
Diante dessas necessidades, o Consenso de Belém propõe criar condições e prover diretrizes para que países do Sul também possam formular políticas industriais focalizadas, baseadas nas práticas mais atuais, como condicionalidades, microdirecionamento e transparência, capazes de transformar suas vantagens naturais em capacidades produtivas. Assim, é possível evitar que esses países na economia de baixo carbono permaneçam como fornecedores de matérias-primas.
Durante décadas, a geografia da produção industrial foi moldada por uma lógica simples: a pergunta central era "onde é possível produzir com qualidade e baixo custo?" e a resposta quase sempre apontava para a Ásia. O custo da energia, nesse sentido, entrava como insumo genérico porque os combustíveis fósseis são abundantes, transportáveis e globalizados.
Esse paradigma, porém, está mudando. À medida que os custos de energia tradicionais sobem, as tarifas de carbono avançam e as exigências regulatórias se tornam mais rígidas, empresas passam a buscar não apenas mão de obra barata e acesso a mercados, mas também energia renovável e acessível para sustentar operações industriais que consomem grandes quantidades de energia. A pergunta, portanto, mudou para "onde é possível produzir com energia limpa e barata para atender às novas exigências de mercado?". Isso altera não apenas as respostas, mas também as rotas de desenvolvimento possíveis.
Assim, a geografia da produção está sendo reordenada por novos vetores. A localização produtiva, por exemplo, antes guiada quase exclusivamente por custos e eficiência, passa agora a depender também da descarbonização, não por altruísmo ambiental, mas porque as barreiras climáticas se tornarão penalizações financeiras e empresas não podem esperar para reagir. Esse movimento de realocação impulsionado pela busca por energia limpa e barata leva o nome de "powershoring" e tem sido medido por estudos recentes.
Em uma economia baseada em fontes renováveis, não é possível "transportar" o sol do Marrocos para a Baviera ou levar o vento de Pipa, no Rio Grande do Norte, para a Coreia do Sul. Isso redefine a energia: de um insumo passivo, ela se torna elemento estruturante de qualquer estratégia de desenvolvimento e abre uma janela histórica de oportunidade para países do Sul Global, que podem converter sua abundância e diversidade de recursos renováveis em um vetor de industrialização e em cadeias de valor verdes capazes de descentralizar os fluxos de renda internacionais.
Diversas evidências já mostram que setores como aço de baixo carbono, polisilício, amônia verde e outros pilares dos complexos produtivos de baixo carbono tendem a ser mais competitivos no Sul Global, demonstrando a viabilidade o fenômeno do "powershoring". Nesse sentido, na Europa já surgem vozes que sugerem repensar a presença de setores intensivos em energia. Por declarações à imprensa vemos que lideranças do setor privado e também público da Europa já começam a demonstrar interesse em parceiros estratégicos no Sul Global.
Mas esse processo não ocorrerá sem uma ação coordenada do poder público e dos setores privados: para maximizar suas vantagens e se converter em centros de agregação de valor, os países do Sul precisam focalizar suas intervenções e escolher os elos certos das cadeias produtivas de maior potencial.
Fica claro o anacronismo de uma agenda macroeconômica e de política industrial pautada no Consenso de Washington: o fomento de um "bom ambiente de negócios" não é suficiente para responder aos desafios atuais.
Neste contexto de mudanças, o que se exige é uma articulação ampla voltada para a prosperidade sustentável, que seja capaz de responder às demandas ligadas ao enfrentamento da pobreza, à redução das desigualdades e à geração de empregos de qualidade a partir de uma nova economia da descarbonização incorporando o combate à crise climática como eixo estruturante do desenvolvimento e como oportunidade para a expansão de capacidades.
Uma transição justa também implica reconhecer que o modelo herdado ao longo de um século de relações centro-periferia não pode ser perpetuado na economia de baixo carbono. O Consenso de Belém, portanto, não se limita às agendas climática e econômica, mas propõe um novo equilíbrio entre mercados, poder público e ação coletiva, capaz de reconstruir a confiança social e abrir caminho para um futuro de prosperidade partilhada de forma coesa, respeitando novas as dinâmicas socioeconômicas e os limites planetários.
O Brasil, com a COP30, tem a chance de liderar a construção deste novo marco de entendimento econômico, isto é, propor um novo consenso que permita aos países em desenvolvimento serem donos do seu próprio destino.
Rosana Santos
Engenheira eletrotécnica, doutora em energia pela USP, membro do Conselho de Engenheiros para a Transição Energética da ONU e diretora-executiva do Instituto E+ Transição Energética
Renato H. de Gaspi
Cientista político e pesquisador sênior para a América Latina no Net Zero Industrial Policy Lab, da Universidade Johns Hopkins
Pedro Marques
Doutor em economia pela USP e codiretor do Made-USP (Centro de Macroeconomia das Desigualdades)
Edlayan Passos
Engenheiro mecânico, mestrando em energia pela USP e especialista no Instituto E+ Transição Energética
João Marcelo Abbud
Economista, mestrando em desenvolvimento sustentável pela UnB (Universidade de Brasília) e pesquisador no Instituto E+ Transição Energética
Ao priorizar liberalização e austeridade, a agenda acabou deixando em segundo plano o fortalecimento de capacidades produtivas nacionais e a coordenação necessária para sustentar mudanças estruturais, algo que limitou o espaço para estratégias de desenvolvimento adaptadas às realidades do Sul Global e contribuiu para exacerbar uma divisão internacional do trabalho desfavorável a países em desenvolvimento.
Três décadas depois, esse receituário mostra-se inadequado. A geografia da produção está sendo redesenhada por novos vetores: riscos geopolíticos, custos elevados de energia, tarifas de carbono e pressões regulatórias levam empresas a buscar não apenas mão de obra barata, mas principalmente energia limpa e acessível para sustentar operações industriais intensivas em energia.
Nesse contexto, o Brasil pode aproveitar o protagonismo conquistado no G20 e no Brics para, durante a COP30, apresentar as bases de um novo marco de governança para o desenvolvimento, que chamamos de Consenso de Belém.
A proposta atualiza os princípios do desenvolvimento para um mundo que já não é o dos anos 1990, integrando clima e economia de forma indissociável: transformar vantagens naturais, como energia limpa e abundante, em capacidades produtivas por meio de políticas industriais direcionadas, planejamento territorial e financiamento adequado. Esse movimento pode estimular a descentralização do desenvolvimento econômico, criando polos produtivos e ampliando oportunidades fora dos centros tradicionais, bem como contribuir para a redução de emissões.
De certa forma, esse entendimento converge para o novo espírito do tempo. Depois de décadas de retórica em torno da redução do papel econômico cumprido pelo Estado, os países desenvolvidos voltaram a adotar políticas industriais explícitas, ainda que, na prática, nunca tenham deixado de aplicá-las, mesmo enquanto defendiam o contrário.
Nos Estados Unidos, programas como o Inflation Reduction Act, lei do governo Biden que objetivava reduzir a inflação e incluiu uma série de medidas para a redução de emissões de carbono, direcionaram grandes volumes de recursos públicos para reconstruir capacidades produtivas internas e acelerar a transição energética. A União Europeia, à luz do European Green Deal, que busca tornar o continente o primeiro bloco neutro em carbono, segue caminho semelhante, com metas de produção de tecnologias limpas e mecanismos regulatórios para conter importações poluentes.
Essas iniciativas, combinadas com novos impulsos protecionistas, mostram que a competição global está demandando mais planejamento, maior coordenação e volumes significativos de investimentos públicos.
Diante dessas necessidades, o Consenso de Belém propõe criar condições e prover diretrizes para que países do Sul também possam formular políticas industriais focalizadas, baseadas nas práticas mais atuais, como condicionalidades, microdirecionamento e transparência, capazes de transformar suas vantagens naturais em capacidades produtivas. Assim, é possível evitar que esses países na economia de baixo carbono permaneçam como fornecedores de matérias-primas.
Durante décadas, a geografia da produção industrial foi moldada por uma lógica simples: a pergunta central era "onde é possível produzir com qualidade e baixo custo?" e a resposta quase sempre apontava para a Ásia. O custo da energia, nesse sentido, entrava como insumo genérico porque os combustíveis fósseis são abundantes, transportáveis e globalizados.
Esse paradigma, porém, está mudando. À medida que os custos de energia tradicionais sobem, as tarifas de carbono avançam e as exigências regulatórias se tornam mais rígidas, empresas passam a buscar não apenas mão de obra barata e acesso a mercados, mas também energia renovável e acessível para sustentar operações industriais que consomem grandes quantidades de energia. A pergunta, portanto, mudou para "onde é possível produzir com energia limpa e barata para atender às novas exigências de mercado?". Isso altera não apenas as respostas, mas também as rotas de desenvolvimento possíveis.
Assim, a geografia da produção está sendo reordenada por novos vetores. A localização produtiva, por exemplo, antes guiada quase exclusivamente por custos e eficiência, passa agora a depender também da descarbonização, não por altruísmo ambiental, mas porque as barreiras climáticas se tornarão penalizações financeiras e empresas não podem esperar para reagir. Esse movimento de realocação impulsionado pela busca por energia limpa e barata leva o nome de "powershoring" e tem sido medido por estudos recentes.
Em uma economia baseada em fontes renováveis, não é possível "transportar" o sol do Marrocos para a Baviera ou levar o vento de Pipa, no Rio Grande do Norte, para a Coreia do Sul. Isso redefine a energia: de um insumo passivo, ela se torna elemento estruturante de qualquer estratégia de desenvolvimento e abre uma janela histórica de oportunidade para países do Sul Global, que podem converter sua abundância e diversidade de recursos renováveis em um vetor de industrialização e em cadeias de valor verdes capazes de descentralizar os fluxos de renda internacionais.
Diversas evidências já mostram que setores como aço de baixo carbono, polisilício, amônia verde e outros pilares dos complexos produtivos de baixo carbono tendem a ser mais competitivos no Sul Global, demonstrando a viabilidade o fenômeno do "powershoring". Nesse sentido, na Europa já surgem vozes que sugerem repensar a presença de setores intensivos em energia. Por declarações à imprensa vemos que lideranças do setor privado e também público da Europa já começam a demonstrar interesse em parceiros estratégicos no Sul Global.
Mas esse processo não ocorrerá sem uma ação coordenada do poder público e dos setores privados: para maximizar suas vantagens e se converter em centros de agregação de valor, os países do Sul precisam focalizar suas intervenções e escolher os elos certos das cadeias produtivas de maior potencial.
Fica claro o anacronismo de uma agenda macroeconômica e de política industrial pautada no Consenso de Washington: o fomento de um "bom ambiente de negócios" não é suficiente para responder aos desafios atuais.
Neste contexto de mudanças, o que se exige é uma articulação ampla voltada para a prosperidade sustentável, que seja capaz de responder às demandas ligadas ao enfrentamento da pobreza, à redução das desigualdades e à geração de empregos de qualidade a partir de uma nova economia da descarbonização incorporando o combate à crise climática como eixo estruturante do desenvolvimento e como oportunidade para a expansão de capacidades.
Uma transição justa também implica reconhecer que o modelo herdado ao longo de um século de relações centro-periferia não pode ser perpetuado na economia de baixo carbono. O Consenso de Belém, portanto, não se limita às agendas climática e econômica, mas propõe um novo equilíbrio entre mercados, poder público e ação coletiva, capaz de reconstruir a confiança social e abrir caminho para um futuro de prosperidade partilhada de forma coesa, respeitando novas as dinâmicas socioeconômicas e os limites planetários.
O Brasil, com a COP30, tem a chance de liderar a construção deste novo marco de entendimento econômico, isto é, propor um novo consenso que permita aos países em desenvolvimento serem donos do seu próprio destino.
Rosana Santos
Engenheira eletrotécnica, doutora em energia pela USP, membro do Conselho de Engenheiros para a Transição Energética da ONU e diretora-executiva do Instituto E+ Transição Energética
Renato H. de Gaspi
Cientista político e pesquisador sênior para a América Latina no Net Zero Industrial Policy Lab, da Universidade Johns Hopkins
Pedro Marques
Doutor em economia pela USP e codiretor do Made-USP (Centro de Macroeconomia das Desigualdades)
Edlayan Passos
Engenheiro mecânico, mestrando em energia pela USP e especialista no Instituto E+ Transição Energética
João Marcelo Abbud
Economista, mestrando em desenvolvimento sustentável pela UnB (Universidade de Brasília) e pesquisador no Instituto E+ Transição Energética
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