16 de fevereiro de 2023

O banqueiro central dos pobres precisa se esforçar mais

Campos Neto deve priorizar geração de emprego e moderar retornos financeiros da Faria Lima

André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP


A arrogância do poder permite sinceridades que a alma tentaria esconder. Em entrevista ao programa Roda Viva na segunda (13), Roberto Campos Neto, presidente do BC (Banco Central), apresentou a "agenda social" do banco. Não falou de emprego, nem de renda. Falou de Pix.

Ele contou que um menino veio lhe vender um "produtinho". Quando disse não ter dinheiro, a criança falou: faz um Pix. Surpreso, ouviu do menino que o sistema de pagamentos tinha mudado a sua vida. Orgulhoso, sentiu que impactou a vida do povo.

No dia seguinte, a Unicef mostrou que 32 milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem na pobreza, fruto da pandemia e da desastrosa ausência de política social de Bolsonaro e Guedes.

Camps Neto, presidente do Banco Central, em sua participação no programa Roda Viva - Nadja Kouchi - 13.fev.2023/TV Cultura

O Pix digitalizou a esmola e o trabalho infantil. No mundo interconectado, a pobreza digitalizada está um degrau acima da pobreza analógica. Cidadania no mundo capitalista só se acessa com dinheiro. Chamar isso de agenda social revela o que Campos Neto tentou esconder: seu vínculo espiritual ao neoliberalismo sem compaixão do governo Bolsonaro. Vejamos.

Quando o presidente do BC falou das causas da inflação, só se lembrou das expectativas implícitas na curva de juros. É por ela que a Faria Lima informa à autoridade monetária se suas expectativas estão ancoradas ou não. Se não estiverem, a Selic (taxa básica de juros) tem que ficar lá em cima.

O relatório trimestral de inflação do BC aponta outras causas: choques de custos de energia e de alimentos (PPI da Petrobras e Guerra da Ucrânia), deslocamentos de demanda promovidos pela pandemia e a disseminada indexação que autonomiza o repasse de preços. Tudo isso mantém a inflação resistente à queda.

O juro alto não ataca estas causas, mas reduz a atividade do resto da economia, segurando outros preços. Em vez de investir em produtividade, as empresas defendem seu lucro arrochando a renda do trabalhador. O efeito é a destruição de empregos.

A política monetária restritiva mina o poder de barganha dos trabalhadores, como sugeriu artigo publicado pelo Fed (Federal Reserve, o banco central americano). Amparada pela reforma trabalhista de 2017, a precarização do trabalho domestica a ousadia do trabalhador, motivando-o a aceitar qualquer salário para ter um emprego.

Campos Neto destacou que o desemprego está menor do que o nível pré-pandemia, só esqueceu de falar sobre a qualidade das ocupações.

Relatório do Ipea mostra que a recente queda da desocupação resulta da retração da força de trabalho. Traduzindo: o trabalhador demitido pode escolher entre a precarização do setor informal e se tornar um microempresário; talvez os dois, se for muito dedicado.

É aí que entra a ação social do BC —via microcrédito e open finance– auxiliando a pejotização de trabalhadores. Tem mais: segundo Campos Neto, o BC pensou na educação financeira dos pobres (para dar valor ao dinheiro) e dos empreendedores de si mesmos.

Pausa para desabafo. Não conheço um rico que dê tanto valor ao dinheiro quanto uma pessoa pobre. Quem deveria ter aula de educação financeira é a massa de ricos endividados até os dentes e que sonegam impostos. Ser rico sem pagar suas contas é fácil. Heroísmo é chegar ao fim do mês com a renda mediana brasileira. Fim da pausa.

Em 2022, oito em cada dez empregos formais foram de baixa qualificação. A Selic no atual patamar inviabiliza qualquer política industrial consistente, que integre a formação da mão de obra ao desenvolvimento da indústria e de serviços sofisticados.

O presidente do Banco Central precisa assumir o objetivo de fomentar o pleno emprego, como previsto na lei complementar 179/2021, e mobilizar o Copom a reduzir gradativamente a taxa de juros.

Para ser o banqueiro central dos pobres, ele deve priorizar a geração de emprego e moderar os retornos financeiros da Faria Lima. A verdadeira compaixão é uma árvore de raízes amargas, mas de frutos doces.

Bom carnaval a todos!

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