Débora Freire
Doutora em economia, é professora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG
A reconstrução do país passa pela correção de erros e abusos do governo Jair Bolsonaro (PL), que deve começar pela revisão do Orçamento. Entregue pelo governo atual, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) para 2023 é, nas palavras do senador José Serra (PSDB-SP), uma peça de ficção. Ele está correto.
O Ploa atual prevê contração do gasto primário em 1,4% do PIB em 2023 (mensurado em R$ 150 bilhões), o que significa que a relação gasto primário/PIB atingiria o patamar de 17,6%. Trata-se de uma redução do tamanho do Estado de grande envergadura, que tem importantes implicações. Significa, entre outros efeitos, a precarização na oferta de saúde e educação e a redução do fluxo de investimentos públicos, o que por sua vez contrai a capacidade do Estado de ofertar serviços. Vale ressaltar que o gasto com investimento já não tem sido suficiente para cobrir nem mesmo a depreciação do estoque de capital público existente.
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB) em reunião da equipe de transição no CCBB, em Brasília - Ueslei Marcelino - 11.out.22/Reuters |
A contração significa também reduzir o volume de transferências de renda para a população vulnerável, em um momento em que a fome assola os lares brasileiros e as projeções para o mercado de trabalho não são boas, dada a pífia expectativa de crescimento para 2023 em decorrência dos condicionantes externos. Se esta não é uma peça de ficção, é uma peça de horror.
O Ploa é também uma peça de ficção porque tenta manter o teto de gastos, que já não tem paredes. O teto, após seis modificações, está longe de cumprir com a função de uma âncora fiscal. Só no governo Bolsonaro, foi furado em R$ 795 bilhões acumulados em quatro anos. O teto erra já na sua concepção, ao impor uma prensa nos gastos públicos de forma homogênea que, com o crescimento natural das despesas de Previdência, esmaga as demais rubricas. Entre seus defensores, havia a expectativa de mais eficiência alocativa no Orçamento —"com a prensa, prevalecerão os bons gastos sociais". Bem, o orçamento secreto está aí para nos contar outra história.
É natural que o mercado, constituído pelos credores do governo, se preocupe com o nível do gasto e a trajetória da dívida. Sem âncora fiscal, cobram mais pelo empréstimo (juros). O que não é muito realista é tomar como âncora uma regra que não para de pé, impondo seu cumprimento estrito a um governo que tem uma tarefa de reconstrução, dada a catástrofe pandêmica e a necessidade de corrigir erros sistemáticos da administração anterior, na economia e no social.
Os ruídos percebidos nas últimas semanas acabam por ser uma tentativa de impor disciplina, embora seja contraditório disciplinar o que é inviável e precisa ser corrigido. O governo precisa de pragmatismo na política econômica, assim como o mercado também terá que internalizar de forma pragmática que a melhora fiscal, em um país assolado por miséria, deve ser um objetivo de médio prazo. Não se trata de uma licença para gastar em 2023: trata-se de uma licença para corrigir, que faz parte do pacto social que temos que fazer no Brasil pós-Bolsonaro.
Em relação ao governo eleito, seria importante que a licença para corrigir viesse acompanhada de uma sinalização clara a respeito de uma nova âncora fiscal e de uma melhor composição de gastos. A sinalização desse novo arcabouço poderia ter a capacidade de reduzir o ruído e trazer tranquilidade para que o futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seja aquilo que foi eleito para ser: um protagonista da recuperação social e ambiental brasileira.
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