12 de novembro de 2022

Obra de Paulinho da Viola, 80, carrega sentido inequívoco de modernidade

Desde seu primeiro compacto, músico vem perseguindo a poesia sonoro-literária dos mestres, com Cartola à frente

Sidney Molina
É violonista, professor e crítico musical​​. Autor dos livros "Mahler em Schoenberg" e "Música Clássica Brasileira Hoje" e fundador do quarteto de violões Quaternaglia

Folha de S.Paulo

[RESUMO] Em inúmeras canções, Paulinho da Viola, que completa 80 anos neste sábado (12), tratou das dificuldades, e mesmo da impossibilidade, de compor um samba. Ainda assim, o compositor angustiado vê na tarefa dolorosa da criação ao menos um alento diante das desilusões e do sofrimento.

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Paulinho da Viola nunca gostou de compor. Em uma entrevista extraída do acervo da Rádio Cultura de São Paulo, ele mesmo diz: "Eu não gostava muito de compor não. Eu gostava de cantar e acompanhar os outros. Tem gente que adora compor, faz isso todo dia. Eu levo muito tempo para compor, eu confesso que não tenho essa facilidade e, às vezes, é uma coisa dolorosa". [1]

Filho de César Faria (1919-2007), violonista cuja atuação discreta e precisa ajudava a conectar as vibrações de Jacob do Bandolim às "baixarias" virtuosísticas de Dino 7 Cordas, Paulinho sempre se sentiu à vontade, seja como cantor ou instrumentista, diante dos rigores sóbrios da interpretação musical.

Paulinho da Viola, que completa 80 anos, em estúdio no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 11.nov.22/Folhapress

O sentido de modernidade na arte de Paulinho é inequívoco. Não só o seu espírito intimista seria impensável sem o advento da bossa nova, como sua obra velejou do hard bop de Charles Mingus (veja-se "Roendo as Unhas", de 1973) ao pop funk (tal como em "Cadê a Razão", de 1983); da vanguarda paulista (ele foi parceiro e intérprete de Arrigo Barnabé) ao choro instrumental (que rendeu até mesmo um álbum completo, "Memórias Chorando", de 1976).

Todavia —caso raro em uma geração afeita aos vanguardismos—, Paulinho de fato "colou" desde muito jovem nos mestres do passado. Não custa lembrar que, antes de lançar o primeiro disco solo autoral, em 1968, ele já havia participado da gravação de seis LPs como vocalista-ritmista-violonista acompanhador: foram dois álbuns do espetáculo "Rosa de Ouro" (que lançou a já sexagenária Clementina de Jesus), três discos como integrante do conjunto A Voz do Morro (idealizado por Zé Keti) e um registro com o parceiro Elton Medeiros (1930-2019).

Ainda no início da carreira, quando sua discografia individual não chegava a três álbuns, ele produziu um LP histórico da velha-guarda de sua escola de coração, a Portela, contendo canções de Manacéa, Aniceto, Mijinha, Armando Santos, Monarco e outros. Sua energia musical buscou, inicialmente, a excelência da performance, desdobrando-se na pesquisa pelas raízes do samba e suas belezas.

Estimulado por Hermínio Bello de Carvalho e pelo próprio Zé Keti, ele enfim começou a compor sistematicamente e, em 1969, lançou no formato do compacto duplo (um vinil com duas faixas de cada lado, estrutura análoga aos EPs de hoje) um dos mais incríveis produtos já realizados no país nesse formato. As duas primeiras faixas eram "Sinal Fechado" e "Foi um Rio que Passou em Minha Vida": aos 27 anos, Paulinho da Viola tornou-se nacionalmente reconhecido como compositor.

O que ele começou a perseguir desde então, em suas melodias amplas, na entoação exata dos sentidos de cada palavra, nos contrastes harmônicos das seções "B" das canções, foi a poesia sonoro-literária dos mestres, tendo a imagem de Cartola (1908-1980) à frente.

Não por coincidência, Paulinho havia estreado informalmente no mundo artístico no Zicartola, restaurante dirigido pelo casal Cartola e dona Zica. Seus sambas são, em muitos sentidos, cartolianos.

Alguns temas são recorrentes em sua obra: o mar (lugar para se guardar sentimentos e desilusões), a solidão, a ilusão (e sua irmã gêmea, a desilusão), o amor, claro, que tudo permeia, e também a composição. De fato, muitas vezes Paulinho da Viola compôs sambas sobre a dificuldade (ou mesmo a impossibilidade) de compor um samba.

Em uma melodia descendente, que preenche o espaço verticalmente, como em "Nas Ondas da Noite" (1971), as formas ressoantes do samba são fruto de uma chama. Anos depois, em "Bebadosamba" (1996), a imagem da chama será também incorporada à ideia de um "chamado".

Já em "Nada de Novo", canção que fechava o compacto duplo de 1969, "meu samba, sem razão, se acabou". À dor que perpetua o sofrimento, apontada por Eliete Negreiros, soma-se a impossibilidade da criação, o fracasso poético: "Não sei pra que a gente fica desse jeito".

Em "Num Samba Curto" (1971), "meu samba andou parado até você aparecer mudando tudo". Na faixa seguinte do mesmo álbum, "Pressentimento", ele monta a equação: "Nosso amor não dura nada; mas há de dar um poema; que transformarei num samba quando a gente se deixar".

Por fim, na taoísta "Para Ver as Meninas" ("hoje eu vou fazer" —a meu jeito— "um samba sobre o infinito") há abordagem que contrasta com os sambas feitos sob medida para as situações práticas do mundo ("Coisas do Mundo, Minha Nêga", de 1968).

Na estranhíssima valsa "Vinhos Finos, Cristais" (1971), primeira parceria com o tropicalista José Carlos Capinam, os dentes da noite, os dentes da vida, os dentes da saudade, os dentes de um cão e os dentes da paixão alojam-se "entre os dentes podres da canção".

O silêncio do violão, carregado para o mais profundo fundo do baú ("Guardei Minha Viola", 1972), entoado com a habitual voz cristalina e límpida, de vibrato exato, é um jeito de tentar esquecer a ingratidão. No entanto, em "Quando Bate uma Saudade" (1988), "quando um poeta se encontra sozinho num canto qualquer do seu mundo, vibram acordes, surgem imagens, soam palavras, formam-se frases".

Em "Cantoria" (1988), parceria com Hermínio Bello de Carvalho, compor é ofício que deságua o sofrimento, "é compreender a canção como um navio, que vai zarpando ignorando mapas, tocando as águas que nem harpas".

O antológico álbum "Bebadosamba", de 1996, abre com mais um samba que discorre sobre os mistérios da criação artística. Elíptico, "Quando o Samba Chama" narra as contradições entre amor, solidão, silêncio e criação. "Solidão é a sombra maior entre a gente/ Se algum pensamento que vem não seduz/ O poeta declina/ Daquilo que ele não sente/ E o silêncio é o peso que ele conduz/ Mas se o tempo se acha no Sol do poente/ E do céu se retira um pedaço do azul/ O poeta ressurge/ E lança no ar a semente/ E reparte feliz a sua luz."

O tema da criação é esmiuçado por Paulinho também na escolha precisa de sambas novos e antigos de outros autores, que ocupam espaço proeminente em seus álbuns, como "Alento" de Paulo César Pinheiro ("o alento de tudo é canção") ou "Peregrino", de Toninho Nascimento e Noca da Portela (ele virá, o samba, "num riso de criança, numa lágrima de dor, talvez de uma esperança, ou de um sonho que passou").

Ter como precursor imediato um cancionista como Cartola pode representar o contato com a seiva criativa que inspira, mas também motivo de angustiante defesa paralisante.

Curiosamente, Paulinho não gravou um número significativo de canções de Cartola. A interpretação mais memorável é a de "Não Quero Mais Amar a Ninguém", presente no álbum "Nervos de Aço" (1973), e ele mesmo expressa a dificuldade para conseguir cantar "As Rosas não Falam" —"nem sozinho eu conseguia cantar esse samba" (CD "Bebadachama", 1997).

Espremida entre o intérprete convicto e o compositor sofrido, a relação poética dá-se no compasso da desilusão, na dança entre presente e passado, no ponto em que Portela e Mangueira se encontram.

Graças à tecnologia (e à produtora Adriana Braga, que pinçou o exemplo), há um lugar em que o revertério do tempo pode ser vivenciado. A faixa integra "No Tom da Mangueira" (esse Tom é Tom Jobim), álbum de 1991 com a participação de vários convidados. Sozinho ao violão, Paulinho canta, de Cartola, "Fiz por Você o que Pude". Editada como segunda parte da faixa surge, inesperadamente do passado, a voz emocionante de Cartola para completar a canção. O canto dos dois não pode se tocar, mas eles estão tão próximos quanto possível.

"Continuam nossas lutas/ Podam-se os galhos, colhem-se as frutas/ E outra vez se semeia/ E no fim desse labor/ Surge outro compositor/ Com o mesmo sangue na veia." Como já previa o "Samba do Amor", parceria tripla de Paulinho com Elton Medeiros e Hermínio, gravada em seu primeiro LP, "voltar quase sempre é partir/ para um outro lugar".

[1] O trecho está no segundo dos 13 programas da série "Quem me Navega É o Mar: a Música de Paulinho da Viola", que apresento de novembro a janeiro na rádio Cultura Brasil por ocasião dos 80 anos do músico.

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