10 de novembro de 2022

Brasil transformado

Lula retorna a um país mudado.

Rodrigo Nunes

Sidecar


Tradução / A eleição mais disputada da história do Brasil terminou no dia 30 de outubro com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva após derrotar Jair Bolsonaro. Quem foi às urnas sabia que não se tratava de uma eleição qualquer. Bolsonaro fez de tudo para manipular o processo democrático e ameaçou contestar qualquer resultado que não fosse do seu agrado. Mas Lula, o líder do Partido dos Trabalhadores (PT), de 77 anos, aproveitou a enorme popularidade que acumulou durante os anos em que esteve no poder e venceu com uma pequena margem o seu adversário, obtendo 50,9% dos votos frente a 49,1% angariados por Bolsonaro. Dessa maneira, recuperou parte do terreno que o PT havia perdido nas eleições de 2018 e ampliou o número de cadeiras da esquerda em um parlamento dominado pela direita. O resultado foi inédito: nunca antes um presidente brasileiro tinha sido eleito para um terceiro mandato, nem o presidente no poder tinha sido derrotado desde que foi introduzida a possibilidade da reeleição.

Há apenas três anos, a opinião predominante era de que Lula estava politicamente acabado e possivelmente destinado a passar o resto da sua vida atrás das grades após ser condenado por acusações de corrupção. Agora está de volta, mas o Brasil que vai presidir é muito diferente daquele que deixou para a sua sucessora Dilma Rousseff em 2010. A acirrada disputa eleitoral desmentiu a convicção, defendida por muitos da esquerda, de que esse continuava a ser essencialmente o mesmo país que elegeu o PT quatro vezes.

Uma vez no Palácio da Alvorada em janeiro próximo, Lula terá que lidar com uma economia em crise tanto no âmbito nacional como internacional, com o legado de seis anos de aguda disfunção institucional, com um Congresso dividido e com uma extrema direita poderosa. Embora no seu primeiro mandato Lula tenha se beneficiado do boom dos preços das commodities na virada do milênio, nenhum ganho desse tipo parece estar no horizonte e, mesmo que houvesse, a perspectiva de uma mudança climática descontrolada limita o alcance de sua eventual exploração. Dadas essas limitações, sua margem de manobra para aumentar os gastos sociais ou expandir os direitos dos grupos marginalizados será ainda menor do que em 2003.

Para compreender essas mudanças, não basta apontar a extensa rede de influenciadores online, de canais do YouTube, de grupos de WhatsApp e do Telegram, de canais de televisão, rádios e Igrejas Evangélicas, que se cristalizou em torno de Bolsonaro em 2018. Também é preciso examinar as dinâmicas de longo prazo desencadeadas pelos governos petistas nas décadas de 2000 e 2010, além daquelas que vieram à tona nos anos seguintes. Essas dinâmicas influenciaram os quatro principais motores da última campanha eleitoral: a impressionante demonstração de força de Bolsonaro, a degradação das instituições democráticas do Brasil, a ascensão do setor extrativista como força política e social e a ampla coalizão que o PT construiu. Este ensaio analisará cada uma dessas forças.

I.

Em 2018, Bolsonaro pode se gabar de ser o candidato da esperança e da mudança. Em 2022, carregava um histórico presidencial desastroso: constante turbulência política, aumento do custo de vida, corrupção flagrante, má gestão da pandemia da Covid-19. Esperava-se que esses problemas alijassem parcela considerável dos eleitores que haviam contribuído para sua vitória há quatro anos. De fato, quando os resultados foram anunciados, ficou claro que o destino de Bolsonaro foi selado pela fração do eleitorado que mudou sua lealdade para Lula no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Esta tendência não foi, no entanto, nem de longe tão forte quanto as pesquisas haviam previsto; em vez de perder a maioria do voto vacilante, Bolsonaro parecia ter atraído grande parte dele para seu núcleo mais fiel, que emergiu do ciclo eleitoral maior e mais coeso. Isso faz sentido, já que Bolsonaro, assim como Trump, sempre se preocupou mais em manter seus apoiadores comprometidos e mobilizados do que no dia a dia de governar. Embora essa estratégia o tenha feito perder muitos apoiadores centristas, também consolidou o bloco bolsonarista.

A coalizão de Bolsonaro se mantém unida em grande parte graças à impressionante infraestrutura de comunicação da extrema-direita. No entanto, suas origens remontam à crise econômica que eclodiu no último período do primeiro mandato de Dilma Rousseff e que desencadeou o término antecipado de seu segundo mandato, bem como às diversas reformas da previdência, do mercado de trabalho e dos gastos sociais que se seguiram. Entre aqueles que saíram da pobreza durante os anos de bonança, alcançar um padrão de vida de classe média (muitas vezes financiado com dívidas) tornou-se uma importante fonte de autoestima. A desaceleração iniciada em 2015 prejudicou o projeto de “inclusão pelo consumo” do PT, provocando descontentamento com o partido, agravado por sucessivos escândalos de corrupção.

A partir de então, uma longa tradição de “neoliberalismo de baixo” se conjugou com a propaganda libertária defendida “de cima” para produzir uma nova paisagem ideológica. À medida que o número de pessoas que trabalham por aplicativos no Brasil disparou (um aumento de 979,8% desde 2016), o subemprego, a desregulamentação e a crescente coerção econômica foram resignificados como sinais de liberdade pessoal, empreendedorismo e competição saudável no mercado, o que permitiu que setores do eleitorado recuperassem parcialmente a autoestima perdida no PT.

Ao mesmo tempo, um renovado investimento nos preconceitos de gênero, raça, religião e classe, que a direita apresentava como defesa dos valores familiares republicanos e cristãos, proporcionava uma compensação psicológica para a incerteza econômica e a redução das expectativas. À medida que a nova narrativa da crise, combinando ultraliberalismo e paranoia anticomunista, ganhou força, muitos dos que haviam se beneficiado das políticas sociais do PT chegaram a considerar seu progresso social como uma conquista individual e a culpar essas mesmas políticas, bem como os grupos e minorias que estas ajudaram, por suas tribulações atuais.

Esse sentimento de ressentimento entre a classe média baixa convergiu com outro que vinha se formando desde o primeiro mandato de Lula entre uma classe média alta presa entre os ricos, que estavam se tornando cada vez mais ricos, e os pobres, que estavam se tornando cada vez menos pobres (e assim ameaçavam seus marcadores de distinção de classe). Na campanha de Bolsonaro em 2018, esses dois estratos se uniram a uma classe capitalista que viu na queda do PT uma oportunidade de fazer avançar uma enxurrada de reformas (incluindo um teto permanente para os gastos públicos) e em Bolsonaro a oportunidade para garantir pelo menos quatro anos de predação desenfreada.

Depois de quatro anos durante os quais aconteceu exatamente isso, o Brasil é agora um país mais violento e desigual, o que, no entanto, não prejudicou necessariamente a posição política de Bolsonaro. Ao contrário, para muitos de seus adeptos, o atrativo do bolsonarismo é o que se poderia chamar de um estado de natureza diferencialmente distribuído: uma situação na qual o Estado não desempenha mais nenhum papel de mitigar as relações de poder existentes e cada pessoa é livre para exercer sua autoridade em qualquer esfera em que a exerça, mesmo que seja apenas sobre sua esposa e filhos ou sobre os grupos minoritários oprimidos.

Mesmo para quem está nas periferias, a ideia de que o Estado se mantenha à margem e se negue a intervir pode soar mais libertador do que ameaçador. Está em jogo uma forma perversa de igualitarismo: a sensação de que, se alguém é submetido a condições de vida e de trabalho cada vez mais cruéis, elas devem ser impostas pelo menos a todos, exceto, é claro, aos ganhadores em cujas fileiras se deseja ingressar e de cuja liberdade irrestrita se espera participar. Daí o paradoxal status de Bolsonaro como símbolo tanto de disciplina como de permissividade: representa uma forma de darwinismo social em que competir é operar no limite da moral e da lei, e vencer é deixar de se sujeitar às mesmas regras que os outros.

II.

No entanto, os resultados de 30 de outubro não foram um simples reflexo dessas tendências político-históricas. Seria dar muito crédito a Bolsonaro ignorar os efeitos de seu extraordinário uso do aparato estatal para apoiar sua campanha eleitoral. Essa é a segunda força motriz fundamental da disputa: embora a derrota do ex-capitão do Exército brasileiro tenha salvado o Brasil de trilhar um caminho semelhante ao da Hungria de Orbán, o processo eleitoral revelou a grande erosão das instituições brasileiras ocorrida nos últimos anos.

Embora Bolsonaro tenha prometido uma “nova política”, seu mandato na verdade radicalizou algumas das práticas mais obscuras da notoriamente gananciosa classe política brasileira. Ameaçado por investigações criminais que envolvem a ele e seus filhos, e temendo um julgamento político (impeachment) por sua resposta irresponsável à pandemia, o presidente bajulou o Congresso ao instituir um “orçamento secreto”, que desde 2020 entregou a deputados e senadores simpatizantes R$ 46,2 bilhões para serem utilizados fora de qualquer controle democrático. (Para efeitos de comparação, a investigação do caso Lava Jato pretendia recuperar 6,28 bilhões de reais desviados durante os governos do PT.)

Esse sistema, que aumenta enormemente as oportunidades de corrupção, ajudou a garantir a lealdade do Congresso, permitindo que Bolsonaro aprovasse um número impressionante de medidas clientelísticas antes da campanha presidencial. Entre elas estavam a expansão dos programas de transferência monetária, a abertura de linhas de crédito para os beneficiários desses programas, benefícios para caminhoneiros e taxistas (dois bastiões do bolsonarismo) e a redução de impostos sobre os combustíveis, tudo isso produziu uma recuperação temporária na situação econômica, dando credibilidade às afirmações de Bolsonaro de que o Brasil estava se saindo melhor do que outros países após a pandemia.

Embora Lula tenha mantido sua liderança entre a parcela mais pobre do eleitorado, essas reformas provavelmente ajudaram a fortalecer em parte o apoio que Bolsonaro teria perdido em consequência do aumento do custo de vida. Além disso, e isso é extremamente importante, essas medidas criaram um déficit fiscal estimado em pelo menos R$ 150 bilhões de reais, o que certamente limitará o programa do novo presidente.

Além dessa operação de compra de votos, Bolsonaro repetidamente criticou o processo eleitoral e sugeriu que se recusaria a reconhecer uma vitória de Lula. Cortejou abertamente o aparato de segurança, nomeou mais de 6.000 membros das Forças Armadas para cargos no governo e insinuou a possibilidade de um golpe de direita. Embora isso nunca tenha se materializado, a atuação da Polícia Rodoviária Federal, que consistiu, por exemplo, na interrupção de estradas em redutos de Lula no dia da eleição, demonstrou que não se tratava de uma ameaça totalmente vazia. Em plena campanha, até a luta contra a disfunção institucional começou a tomar contornos disfuncionais. Quando o Tribunal Eleitoral interveio para controlar a disseminação da desinformação por parte da direita, o fez de maneira legalmente questionável, alimentando assim as afirmações dos bolsonaristas de que estavam sendo alvos injustos da máquina estatal.

Tudo isso elevou a temperatura das eleições e envenenou a atmosfera política. Um de cada três eleitores, predominantemente mulheres e simpatizantes de Lula, citou a violência política como uma de suas preocupações. As tensões chegaram ao auge na semana que antecedeu o segundo turno, quando ocorreram dois grandes incidentes envolvendo aliados de Bolsonaro. No primeiro deles, o ex-deputado Roberto Jefferson, que caiu em desgraça, protagonizou um confronto armado com a Polícia Federal, que tentou prendê-lo depois que ele quebrou as condições da prisão domiciliar ao chamar uma ministra do STF de “prostituta arrombada”. Pouco depois, a deputada federal Carla Zambelli apontou uma pistola para um negro com quem teve uma briga nas ruas de São Paulo.

O presidente em exercício claramente esperava que essas tropas de choque protegessem sua posição. Após a eleição, ele ficou em silêncio durante 44 horas, consultando vários aliados e esperando para ver se os bloqueios de estradas que seus partidários protagonizaram se tornariam um movimento grande o suficiente para que pudesse contestar o resultado. Quando isso não aconteceu, fez um pronunciamento relutante de dois minutos em que não disse nada sobre seu oponente, comemorou o “verdadeiro surgimento” da direita durante o seu governo, fez algumas declarações vagas para manter vivas as esperanças entre sua base, e deixou seu chefe de gabinete anunciar que o processo de transição tinha começado.

III.

A terceira grande força motriz dessas eleições diz respeito à configuração do mapa eleitoral e à afirmação das áreas rurais brasileiras como força social e política. Bolsonaro venceu, muitas vezes por ampla margem, no Sul, Centro-Oeste e em partes do Norte do país: trata-se das terras do coração do agronegócio onde se expande a fronteira extrativista, perímetro que coincide com a expansão do desmatamento durante seu mandato. (Só na Amazônia o desmatamento aumentou 73% nos últimos quatro anos, enquanto com Lula havia diminuído 67%.)

Claro, os governos do PT estavam longe de serem inimigos da indústria extrativa; pelo contrário, seu compromisso com o boom das matérias-primas acelerou a reprimarização da economia brasileira iniciada nos anos 1990. Mais do que falar em “valores compartilhados”, o que explica a preferência de Bolsonaro pelo agronegócio era a perspectiva de uma acumulação sem obstáculos ou contrapesos, sejam elas o reconhecimento de títulos indígenas, as regulamentações ambientais ou as políticas distributivas.

Embora a maior parte das riquezas produzidas recentemente nos redutos do agronegócio tenha ido parar no bolso de um pequeno número de famílias, a vitória de Bolsonaro nessas regiões mostra que ações como o desmantelamento de órgãos estatais e o fomento da mineração e da exploração ilegal de madeira transmitiram com sucesso uma mensagem favorável àqueles que têm ambições: que seu governo apoia o aventureiro da fronteira e defende a livre iniciativa por todos os meios.

Durante o segundo mandato de Lula, a China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, consolidando firmemente o setor extrativista no cenário mundial. Mas foi apenas quando o setor abandonou Dilma, em 2015, que parecia ter atingido a maioridade política: nesse momento, já não se contentava mais em defender seus interesses econômicos imediatos, mas tentava impor sua agenda ao país como um todo. Com Bolsonaro, finalmente, o setor extrativista parecia perceber que uma forma ou outra de capitalismo fiscalizador – ou seja, uma situação em que o interesse em garantir o máximo de predação leva o capital a chegar a acordos diretos de divisão do poder com as forças de segurança transformadas em agentes econômicos e políticos independentes – seria o mais compatível com seu florescimento desenfreado.

A tendência histórica mais ampla nesse caso pode ser a reversão da dominação política do campo pelas grandes cidades (e pelos setores industriais e de serviços) iniciada por Getúlio Vargas na década de 1930. Essa reversão é uma consequência direta da fórmula de governo escolhida pelo PT durante a sua primeira fase no poder, que consiste em conciliar o crescimento econômico com a distribuição da riqueza, optando para isso pela linha de menor resistência e, consequentemente, utilizando a bonança proporcionada pelo boom dos preços das matérias-primas para combater a pobreza sem tentar fazer reformas estruturais em áreas cruciais, como a propriedade da terra e o sistema tributário.

A influência que esta abordagem tem dado às indústrias extrativas é tal que, como um analista apontou recentemente, tornou-se impossível governar sem o “mega-Centro-Oeste”. Embora isso seja indubitavelmente verdadeiro a curto e médio prazo, a questão para qualquer projeto político voltado para a igualdade econômica e política é se é possível governar com esse setor no longo prazo ou se continuar a alimentá-lo levará inevitavelmente a algo ainda pior do que aconteceu de 2016 para cá.

IV.

A quarta e última força motriz fundamental dessas eleições foi que o PT finalmente conseguiu materializar a frente ampla democrática que tentou construir em 2018 e que agora incorporou importantes lideranças da direita e centro-direita, que decidiram que já não podiam mais dar a Bolsonaro o benefício da dúvida. A composição do gabinete de Lula seguramente refletirá essa heterogeneidade política, bem como a necessidade de selar alianças com um parlamento de direita, mas ideologicamente diverso. Lula já afirmou que este não será um governo só do PT. No entanto, a verdadeira questão é se o PT tentará impor sua liderança à base governista ou se simplesmente tentará manter um equilíbrio, que está destinado a ser muito instável.

Durante os próximos quatro anos, o PT enfrentará novamente a pressão para combater a pobreza sem fazer reformas estruturais, mas desta vez sem as receitas provenientes do boom dos preços das commodities. Ao ingressar nas fileiras das lideranças mais jovens da chamada “nova onda progressista” na América Latina, o desafio de Lula, assim como para elas, será aprender as lições da onda anterior. Talvez a mais importante delas seja que, a não ser em uma situação revolucionária improvável, a questão nunca é fazer ou não concessões, mas sim se, mesmo quando se faz concessões, se está trabalhando para uma transformação de longo prazo do equilíbrio de forças. Caso contrário, e se não houver uma direção óbvia de viagem ou nenhuma agenda estratégica, então a linha entre a concessão e a capitulação desaparece e é provável que essas forças progressistas tenham que fazer mais e mais concessões. Dada a dupla ameaça da emergência climática e de uma florescente extrema direita, a decisão de trabalhar dentro das restrições existentes, sem se esforçar para mudá-las, inevitavelmente acabará em desastre.

As condições para uma presidência de Lula nunca foram tão desfavoráveis como agora, mas a situação também lhe oferece uma grande oportunidade: tirar o Brasil do isolamento internacional autoimposto e posicionar o país como líder mundial na luta por um Green New Deal justo, ecologicamente realista e socialmente transformador. Se essa estratégia for bem-sucedida, poderá ajudar a expandir sua margem de manobra em nível nacional. Usando uma metáfora do futebol, que o presidente eleito sem dúvida aprovaria, partir para o ataque pode ser a melhor forma de defesa. Resta saber se Lula, o político mais talentoso de sua geração, estará à altura desse desafio.

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