Luiz Eduardo Soares
Antropólogo e cientista político. Professor aposentado do Instituto de Ciências Sociais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), foi secretário nacional de Segurança Pública (2003) e subsecretário de Segurança do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Autor, entre outros livros, de "Dentro da Noite Feroz: o Fascismo no Brasil", "Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos" e "Elite da Tropa", com André Batista e Rodrigo Pimentel
Folha de S.Paulo
[RESUMO] Obra recém-lançada examina os jogos de linguagem relacionados à categoria populismo, polissêmica e vaga, transformada em importante ferramenta política para enaltecer e estigmatizar governos e políticos. O conceito não é necessariamente positivo nem negativo, argumentam os autores, e um populismo virtuoso, compatível com a democracia liberal, pode expandir direitos e reduzir desigualdades.
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Quem jamais se deparou com frases do tipo "Lula e Bolsonaro são populistas, portanto, iguais na essência" ou "Bolsonaro e Lula são polos opostos, unidos pela natureza que lhes é comum, o populismo"? Ou ainda "a polarização divide o país; por isso, é necessário uma terceira via que una o Brasil em torno de um projeto avesso ao populismo", "austeridade fiscal ou populismo, o impasse nacional" e "políticas redistributivas são populistas, por isso a social-democracia atrasou o Brasil"?
Enquanto isso —embora em menor número hoje—, há lideranças e pensadores que valorizam o populismo e se identificam com as ideias que, de seu ponto de vista, a palavra representa. Em meio à batalha ruidosa e tantas vezes ruinosa de interpretações, nos sentimos confusos e perdidos. "Do que Falamos quando Falamos de Populismo" (Companhia das Letras) desenha um mapa que nos ajuda a escapar da Torre de Babel política e sacia nossa indignação ao repelir as falsas simetrias que normalizam o bolsonarismo.
O livro de Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago é precioso, muito mais importante que seu tamanho talvez sugira e absolutamente oportuno, como as declarações acima demonstram. É uma dessas obras raras, destinadas a cumprir papel central no debate público, sem prejuízo da longevidade de sua contribuição à reflexão acadêmica.
Seu objeto é o populismo, ou melhor, como indicado no título, são os jogos de linguagem postos em circulação por essa categoria vaga e mordaz, vazia e venenosa, polissêmica e ambígua, simples e complexa, fria e incandescente, carregada de história e de valor, imersa em regimes afetivos diversos. Trata-se de uma ferramenta política controversa, perigosa e útil, seja à demolição, seja à construção.
Os autores abrem o texto citando Ernesto Laclau, que pensava o populismo como um significante vazio —diríamos "palavra-valise" se nosso repertório evocasse Lewis Carroll. De acordo com os momentos, os alvos e as fontes de enunciação, o termo populismo tem se prestado a funcionar como categoria de acusação ou atributo reivindicado com orgulho. A palavra leva e traz significados diferentes e opostos, de acordo com as conjunturas e as intenções do freguês: pode estigmatizar governos ou validá-los, desmoralizar políticos ou enaltecer suas virtudes.
Enquanto isso —embora em menor número hoje—, há lideranças e pensadores que valorizam o populismo e se identificam com as ideias que, de seu ponto de vista, a palavra representa. Em meio à batalha ruidosa e tantas vezes ruinosa de interpretações, nos sentimos confusos e perdidos. "Do que Falamos quando Falamos de Populismo" (Companhia das Letras) desenha um mapa que nos ajuda a escapar da Torre de Babel política e sacia nossa indignação ao repelir as falsas simetrias que normalizam o bolsonarismo.
Apoiadores de Jair Bolsonaro realizam protesto golpista em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília - Ueslei Marcelino - 15.nov.22/Reuters |
O livro de Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago é precioso, muito mais importante que seu tamanho talvez sugira e absolutamente oportuno, como as declarações acima demonstram. É uma dessas obras raras, destinadas a cumprir papel central no debate público, sem prejuízo da longevidade de sua contribuição à reflexão acadêmica.
Seu objeto é o populismo, ou melhor, como indicado no título, são os jogos de linguagem postos em circulação por essa categoria vaga e mordaz, vazia e venenosa, polissêmica e ambígua, simples e complexa, fria e incandescente, carregada de história e de valor, imersa em regimes afetivos diversos. Trata-se de uma ferramenta política controversa, perigosa e útil, seja à demolição, seja à construção.
Os autores abrem o texto citando Ernesto Laclau, que pensava o populismo como um significante vazio —diríamos "palavra-valise" se nosso repertório evocasse Lewis Carroll. De acordo com os momentos, os alvos e as fontes de enunciação, o termo populismo tem se prestado a funcionar como categoria de acusação ou atributo reivindicado com orgulho. A palavra leva e traz significados diferentes e opostos, de acordo com as conjunturas e as intenções do freguês: pode estigmatizar governos ou validá-los, desmoralizar políticos ou enaltecer suas virtudes.
Mas atenção, nada aqui é trivial. Os autores não são ingênuos: se formaram em escolas respeitáveis, atuam em instituições cujos méritos são amplamente reconhecidos, conhecem a bibliografia pertinente e deixam transparecer competência e maturidade intelectual sem exibicionismos retóricos, privilegiando sempre que possível a fluência da leitura. Não nos ofereceriam soluções ligeiras e simplistas.
Por isso, quando passam dos fenômenos às palavras (isto é, do populismo como fenômeno às variações do conceito), não o fazem apenas para constatar inconsistências e propor soluções relativistas, abençoando a confusão semântica. Não estamos diante de um manual para neófitos. Barros e Lago sabem perfeitamente que, entre os interesses e as paixões, entre as intenções e a produção interlocucionária (e performática) de sentido, há mediações, instituídas e instituintes, conscientes e inconscientes.
Eles sabem, portanto, que a manipulação utilitária tem de medir forças com a espessura da linguagem —sua materialidade inscrita em dinâmicas de poder e submetida tanto ao enviesamento do desejo quanto às refrações provocadas pela floresta de símbolos em que vivemos. Símbolos cambiantes que ocultam e desvelam o que nos é dado conceber, símbolos que não estão fora de nossa experiência sensível —ao contrário, lhe são indissociáveis— nem das práticas comunicativas, intra e intersubjetivas.
Adicionemos mais uma camada de complexidade: a categoria populismo (que é linguagem em ação, um performativo, portanto, à medida que envolve ato que classifica, hierarquiza, desqualifica ou fortalece) não é qualquer uma. Ela dialoga com tradições remotas, articula outras categorias matriciais e remete a eixos estruturantes de algumas de nossas mais caras cosmologias.
Quando falamos em populismo, puxamos fios que nos enredam em tramas de sentido e de atos históricos, arcaicos e atualíssimos. Tais redes de significações e práticas mobilizam temas e conceitos como, por exemplo, povo, poder, relações entre seus integrantes e com o universo externo, cidadão e estrangeiro, familiar e exótico, racismo e respeito, inclusão e exclusão, diferenciação, hierarquia e igualdade, coletividade e individualidade, cooperação e conflito, sujeitos e assujeitamento, autonomia e dominação, liberdade e contrato, autoridade e representação, fontes de legitimidade e limites da representação, participação e obediência, desobediência legítima e violação, pluralidade e unidade, divergência e consenso, multiplicidade e singularidade, normas e anomia, ordem e caos, razão e argumentação, medida e critério, juízo e desrazão, direitos e deveres, guerra e paz, convívio e insegurança, expectativas e a estabilidade de um mundo comum, Estado, nação, governo e suas modalidades, instituições e revoluções, maioria e minoria, manipulação e dignidade, equidade, abuso e violência, público e privado etc.
O léxico evocado, riquíssimo e intrinsecamente controverso —que transcende a linguagem, insisto, porque remete a instituições e processos vividos, memória e prospecções, teologias e escatologias laicas— permite combinações e desdobramentos que estão sempre em expansão, graças às lutas permanentes, à conflagração entre classes e à criatividade hermenêutica que nos é dado cultivar.
Expansão para o passado e para o futuro, compondo as constelações que nos guiam para imaginar utopias, compreender e mudar o presente, refutar alternativas abjetas e temidas, mas também para, com frequência assombrosa, naturalizar o monstruoso em nós e nos outros, inclusive o poder.
Como se vê, os novelos semânticos e as dinâmicas dos fenômenos que estão subsumidos pela tematização da categoria populismo tornam inviável isolá-la e pinçá-la para um exame asséptico. O exame se fará com as mãos sujas, em meio impuro.
Discutir populismo equivale a pensar (identificar, interpretar e valorar) fatos do mundo —que é o nosso, do qual não nos podemos afastar— e as condições de sua existência e de sua inteligibilidade. Estão em jogo ontologias, antropologias e epistemologias.
Cada pronunciamento que aplica o epíteto populista a uma política pública, a uma liderança, a um governo mobiliza uma descarga torrencial de energias históricas, encapsuladas em palavras e atos de origem imemorial e inconsciente para os interlocutores, lançando maldições que enfeitiçam seus alvos ou os exaltando e, nessa medida, os imantando com o encantamento da eternidade. Não é pouca coisa.
A linguagem corporal e verbal de uma pessoa —jornalista, política ou cientista política— adjetivando uma mobilização popular ou um programa governamental como populista corresponde a uma intervenção política —também simbólica e afetiva, por óbvio— que condena ou valoriza o objeto de sua (des)qualificacão, contribuindo para a formação das comunidades que se agregam em torno da repulsa ou do apreço ao populismo e aos objetos da adjetivação.
A sensibilidade dos autores para a natureza inapelavelmente híbrida da categoria performática populismo os faz transgredir as fronteiras artificiais que separam academia, mídia e arena política, tantas vezes diferenciadas como se fossem necessariamente puras e autônomas. Estamos todos juntos e misturados, nossas corporeidades e linguagens, as materialidades econômicas, anímicas, ambientais e climáticas.
Nós e o que chamávamos de natureza torpedeamos a cartografia weberiana —eis aí mais uma dimensão do Antropoceno— e, cada vez mais, com as novas mídias e tecnologias, outras características globais das sociabilidades contemporâneas: por mais que tantos jornalistas professem a fé na objetividade neutra e recorram a expedientes discursivos e protocolos de edição para se persuadir e persuadir o distinto público de que é o caso; por mais que a metodolatria positivista, os rituais acadêmicos e os mecanismos de distinção operem nas universidades para consagrar o rigor de suas práticas, as quais supostamente garantiriam acesso privilegiado à "realidade" e a superioridade do conhecimento que produzem; por mais que a arena política seja limitada aos espaços institucionais com suas regras de funcionamento, restringindo a participação, esvaziando ruas e praças, porque a modernidade laica logrou diferenciar as esferas da vida social e racionalizar suas especificidades, separando saberes, gramáticas, disciplinas, valores, poderes e funções.
A juventude, o trânsito internacional e a rara combinação de formação acadêmica, engajamento cívico e coragem para ousar ajudam a compreender a sem-cerimônia com que os autores exploram a transdisciplinaridade na crítica política, furando bloqueios e barreiras.
O livro põe lado a lado personagens que vivem em mundos formalmente separados e mostram como alguns tópicos das pautas midiáticas, temas partidários e programas ideológicos penetram os "laboratórios" teóricos e como, por outro lado, conceitos acadêmicos ingressam na grande conversa do mundo público, abrindo e fechando caminhos, fortalecendo ou enfraquecendo lutas democráticas. Cada espaço se reapropria da moeda comum a seu modo.
Os autores, discutindo os muitos significados —positivos e, majoritariamente, negativos— atribuídos ao termo, transformam essa categoria em um análogo do contraste, aquela substância aplicada na veia de pacientes submetidos a tomografias. Fazendo a palavra circular pelo corpo cultural e político, o livro nos oferece retratos vívidos de nosso organismo social, com suas patologias e potencialidades.
Descrita e analisada a variação semântica do populismo, os autores tomam posição. Observam que a visão negativa predominante, embora eventualmente flagre aspectos verdadeiros dos fenômenos observados (até porque tais aspectos se verificam em escalas de intensidade ou em gradações), tende a expressar motivação demofóbica. Sugerem que a categoria populismo seja assumida como perspectiva ético-política ou ideológico-política positiva, quando fiel aos princípios da democracia liberal.
Enquanto conceito, populismo deveria ser entendido —aqui os autores se reportam a Chantal Mouffe e Ernesto Laclau— como uma lógica política que constrói identidades coletivas, se apoiando na oposição discursiva entre "o povo" e as "elites". A segunda característica do populismo seria sua disposição esteticamente transgressora. A terceira, sua capacidade de transformar instituições.
O conceito é trabalhado em detalhes a partir de diferentes exemplos históricos e não deve ser considerado necessariamente positivo nem invariavelmente negativo. O critério de juízo, para os autores, é a compatibilidade ou não com a democracia liberal: se há tal compatibilidade —e, mais que isso, se as políticas adotadas expandem direitos, ampliam a inclusão, elevam a qualidade de vida, reduzem desigualdades, combatem o racismo e a misoginia, viabilizam a sustentabilidade ambiental, fortalecem a equidade e garantem a liberdade—, tratar-se-ia de um populismo positivo, justamente por reafirmar e estender as virtudes intrínsecas aos princípios democrático-liberais, aqueles que, com frequência, são negligenciados ou mesmo violados na realidade concreta das democracias liberais.
As boas práticas populistas elevariam o grau de emancipação social, aproximando a realidade das sociedades ao modelo democrático-liberal que, mesmo não sendo plenamente alcançável, orientaria as ações e mobilizaria iniciativas, no permanente esforço de sua realização. Em certa medida, não seria exagero dizer que, na perspectiva dos autores, o populismo virtuoso seria a democracia liberal em ação, rumo à autorrealização de seus princípios.
É natural que leitores nos sintamos instados a questionar quando a obra é rica e densa, quando não subestima reflexões normativas e tem coragem de se expor e arriscar, com transparência e honestidade, quando constrói suas concepções por meio da análise crítica de alternativas e recusa a ideia de que adversários políticos são inimigos a eliminar —valeria o mesmo, com mais razão, para o dissenso intelectual. Em outras palavras, quando a obra nos convida ao diálogo.
Por isso, me sinto autorizado, senão estimulado, a compartilhar com os autores e a comunidade de seus leitores algumas divergências. Democracia liberal, a meu ver, é uma categoria dupla tão polissêmica e problemática quanto populismo, o que torna discutível tomá-la como eixo de referência ou critério de juízo sobre o valor ou o sentido histórico do que se entende por populismo.
Uma vez que não estamos no fim da história e que o capitalismo não esgota os potenciais da imaginação humana e da criatividade coletiva, subordinar modelos democráticos aos limites do liberalismo soa insuficiente e empobrecedor. A associação entre democracia e liberalismo ocorreu historicamente e, embora tenha fertilizado a experiência democrática, em diversos aspectos, foi também uma das causas de sua frustração.
Outro ponto de dissenso: o vocabulário que mobilizo quando penso em emancipação impede que eu veja sentido em lhe atribuir gradações, como fazem os autores, isso porque trabalho com conceitos como classe e capitalismo, sem os quais a ideia de emancipação acaba se confundindo com acesso a direitos.
Discordo ainda da definição do bolsonarismo como populismo de ultradireita. Prefiro considerá-lo uma modalidade de fascismo, o que tem implicações políticas, não só intelectuais.
Minhas divergências, entretanto, não reduzem minha admiração pela qualidade da obra e meu reconhecimento de sua relevância.
DO QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE POPULISMO
Por isso, quando passam dos fenômenos às palavras (isto é, do populismo como fenômeno às variações do conceito), não o fazem apenas para constatar inconsistências e propor soluções relativistas, abençoando a confusão semântica. Não estamos diante de um manual para neófitos. Barros e Lago sabem perfeitamente que, entre os interesses e as paixões, entre as intenções e a produção interlocucionária (e performática) de sentido, há mediações, instituídas e instituintes, conscientes e inconscientes.
Eles sabem, portanto, que a manipulação utilitária tem de medir forças com a espessura da linguagem —sua materialidade inscrita em dinâmicas de poder e submetida tanto ao enviesamento do desejo quanto às refrações provocadas pela floresta de símbolos em que vivemos. Símbolos cambiantes que ocultam e desvelam o que nos é dado conceber, símbolos que não estão fora de nossa experiência sensível —ao contrário, lhe são indissociáveis— nem das práticas comunicativas, intra e intersubjetivas.
Adicionemos mais uma camada de complexidade: a categoria populismo (que é linguagem em ação, um performativo, portanto, à medida que envolve ato que classifica, hierarquiza, desqualifica ou fortalece) não é qualquer uma. Ela dialoga com tradições remotas, articula outras categorias matriciais e remete a eixos estruturantes de algumas de nossas mais caras cosmologias.
Quando falamos em populismo, puxamos fios que nos enredam em tramas de sentido e de atos históricos, arcaicos e atualíssimos. Tais redes de significações e práticas mobilizam temas e conceitos como, por exemplo, povo, poder, relações entre seus integrantes e com o universo externo, cidadão e estrangeiro, familiar e exótico, racismo e respeito, inclusão e exclusão, diferenciação, hierarquia e igualdade, coletividade e individualidade, cooperação e conflito, sujeitos e assujeitamento, autonomia e dominação, liberdade e contrato, autoridade e representação, fontes de legitimidade e limites da representação, participação e obediência, desobediência legítima e violação, pluralidade e unidade, divergência e consenso, multiplicidade e singularidade, normas e anomia, ordem e caos, razão e argumentação, medida e critério, juízo e desrazão, direitos e deveres, guerra e paz, convívio e insegurança, expectativas e a estabilidade de um mundo comum, Estado, nação, governo e suas modalidades, instituições e revoluções, maioria e minoria, manipulação e dignidade, equidade, abuso e violência, público e privado etc.
O léxico evocado, riquíssimo e intrinsecamente controverso —que transcende a linguagem, insisto, porque remete a instituições e processos vividos, memória e prospecções, teologias e escatologias laicas— permite combinações e desdobramentos que estão sempre em expansão, graças às lutas permanentes, à conflagração entre classes e à criatividade hermenêutica que nos é dado cultivar.
Expansão para o passado e para o futuro, compondo as constelações que nos guiam para imaginar utopias, compreender e mudar o presente, refutar alternativas abjetas e temidas, mas também para, com frequência assombrosa, naturalizar o monstruoso em nós e nos outros, inclusive o poder.
Como se vê, os novelos semânticos e as dinâmicas dos fenômenos que estão subsumidos pela tematização da categoria populismo tornam inviável isolá-la e pinçá-la para um exame asséptico. O exame se fará com as mãos sujas, em meio impuro.
Discutir populismo equivale a pensar (identificar, interpretar e valorar) fatos do mundo —que é o nosso, do qual não nos podemos afastar— e as condições de sua existência e de sua inteligibilidade. Estão em jogo ontologias, antropologias e epistemologias.
Cada pronunciamento que aplica o epíteto populista a uma política pública, a uma liderança, a um governo mobiliza uma descarga torrencial de energias históricas, encapsuladas em palavras e atos de origem imemorial e inconsciente para os interlocutores, lançando maldições que enfeitiçam seus alvos ou os exaltando e, nessa medida, os imantando com o encantamento da eternidade. Não é pouca coisa.
A linguagem corporal e verbal de uma pessoa —jornalista, política ou cientista política— adjetivando uma mobilização popular ou um programa governamental como populista corresponde a uma intervenção política —também simbólica e afetiva, por óbvio— que condena ou valoriza o objeto de sua (des)qualificacão, contribuindo para a formação das comunidades que se agregam em torno da repulsa ou do apreço ao populismo e aos objetos da adjetivação.
A sensibilidade dos autores para a natureza inapelavelmente híbrida da categoria performática populismo os faz transgredir as fronteiras artificiais que separam academia, mídia e arena política, tantas vezes diferenciadas como se fossem necessariamente puras e autônomas. Estamos todos juntos e misturados, nossas corporeidades e linguagens, as materialidades econômicas, anímicas, ambientais e climáticas.
Nós e o que chamávamos de natureza torpedeamos a cartografia weberiana —eis aí mais uma dimensão do Antropoceno— e, cada vez mais, com as novas mídias e tecnologias, outras características globais das sociabilidades contemporâneas: por mais que tantos jornalistas professem a fé na objetividade neutra e recorram a expedientes discursivos e protocolos de edição para se persuadir e persuadir o distinto público de que é o caso; por mais que a metodolatria positivista, os rituais acadêmicos e os mecanismos de distinção operem nas universidades para consagrar o rigor de suas práticas, as quais supostamente garantiriam acesso privilegiado à "realidade" e a superioridade do conhecimento que produzem; por mais que a arena política seja limitada aos espaços institucionais com suas regras de funcionamento, restringindo a participação, esvaziando ruas e praças, porque a modernidade laica logrou diferenciar as esferas da vida social e racionalizar suas especificidades, separando saberes, gramáticas, disciplinas, valores, poderes e funções.
A juventude, o trânsito internacional e a rara combinação de formação acadêmica, engajamento cívico e coragem para ousar ajudam a compreender a sem-cerimônia com que os autores exploram a transdisciplinaridade na crítica política, furando bloqueios e barreiras.
O livro põe lado a lado personagens que vivem em mundos formalmente separados e mostram como alguns tópicos das pautas midiáticas, temas partidários e programas ideológicos penetram os "laboratórios" teóricos e como, por outro lado, conceitos acadêmicos ingressam na grande conversa do mundo público, abrindo e fechando caminhos, fortalecendo ou enfraquecendo lutas democráticas. Cada espaço se reapropria da moeda comum a seu modo.
Os autores, discutindo os muitos significados —positivos e, majoritariamente, negativos— atribuídos ao termo, transformam essa categoria em um análogo do contraste, aquela substância aplicada na veia de pacientes submetidos a tomografias. Fazendo a palavra circular pelo corpo cultural e político, o livro nos oferece retratos vívidos de nosso organismo social, com suas patologias e potencialidades.
Descrita e analisada a variação semântica do populismo, os autores tomam posição. Observam que a visão negativa predominante, embora eventualmente flagre aspectos verdadeiros dos fenômenos observados (até porque tais aspectos se verificam em escalas de intensidade ou em gradações), tende a expressar motivação demofóbica. Sugerem que a categoria populismo seja assumida como perspectiva ético-política ou ideológico-política positiva, quando fiel aos princípios da democracia liberal.
Enquanto conceito, populismo deveria ser entendido —aqui os autores se reportam a Chantal Mouffe e Ernesto Laclau— como uma lógica política que constrói identidades coletivas, se apoiando na oposição discursiva entre "o povo" e as "elites". A segunda característica do populismo seria sua disposição esteticamente transgressora. A terceira, sua capacidade de transformar instituições.
O conceito é trabalhado em detalhes a partir de diferentes exemplos históricos e não deve ser considerado necessariamente positivo nem invariavelmente negativo. O critério de juízo, para os autores, é a compatibilidade ou não com a democracia liberal: se há tal compatibilidade —e, mais que isso, se as políticas adotadas expandem direitos, ampliam a inclusão, elevam a qualidade de vida, reduzem desigualdades, combatem o racismo e a misoginia, viabilizam a sustentabilidade ambiental, fortalecem a equidade e garantem a liberdade—, tratar-se-ia de um populismo positivo, justamente por reafirmar e estender as virtudes intrínsecas aos princípios democrático-liberais, aqueles que, com frequência, são negligenciados ou mesmo violados na realidade concreta das democracias liberais.
As boas práticas populistas elevariam o grau de emancipação social, aproximando a realidade das sociedades ao modelo democrático-liberal que, mesmo não sendo plenamente alcançável, orientaria as ações e mobilizaria iniciativas, no permanente esforço de sua realização. Em certa medida, não seria exagero dizer que, na perspectiva dos autores, o populismo virtuoso seria a democracia liberal em ação, rumo à autorrealização de seus princípios.
É natural que leitores nos sintamos instados a questionar quando a obra é rica e densa, quando não subestima reflexões normativas e tem coragem de se expor e arriscar, com transparência e honestidade, quando constrói suas concepções por meio da análise crítica de alternativas e recusa a ideia de que adversários políticos são inimigos a eliminar —valeria o mesmo, com mais razão, para o dissenso intelectual. Em outras palavras, quando a obra nos convida ao diálogo.
Por isso, me sinto autorizado, senão estimulado, a compartilhar com os autores e a comunidade de seus leitores algumas divergências. Democracia liberal, a meu ver, é uma categoria dupla tão polissêmica e problemática quanto populismo, o que torna discutível tomá-la como eixo de referência ou critério de juízo sobre o valor ou o sentido histórico do que se entende por populismo.
Uma vez que não estamos no fim da história e que o capitalismo não esgota os potenciais da imaginação humana e da criatividade coletiva, subordinar modelos democráticos aos limites do liberalismo soa insuficiente e empobrecedor. A associação entre democracia e liberalismo ocorreu historicamente e, embora tenha fertilizado a experiência democrática, em diversos aspectos, foi também uma das causas de sua frustração.
Outro ponto de dissenso: o vocabulário que mobilizo quando penso em emancipação impede que eu veja sentido em lhe atribuir gradações, como fazem os autores, isso porque trabalho com conceitos como classe e capitalismo, sem os quais a ideia de emancipação acaba se confundindo com acesso a direitos.
Discordo ainda da definição do bolsonarismo como populismo de ultradireita. Prefiro considerá-lo uma modalidade de fascismo, o que tem implicações políticas, não só intelectuais.
Minhas divergências, entretanto, não reduzem minha admiração pela qualidade da obra e meu reconhecimento de sua relevância.
DO QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE POPULISMO
Preço R$ 49,90 (160 págs.); R$ 29,90 (ebook) Editora Companhia das Letras Autores Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago
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