5 de novembro de 2022

Acabou

Golpe infame de 2016 finalmente fecha o seu ciclo

Hebe Mattos
Historiadora e professora titular livre do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

Folha de S.Paulo

"Acabou!" Foi a frase que ouvi do meu vizinho de assento, quando aterrissava no Rio de Janeiro, após uma noite mal dormida em um voo internacional em 4 de março de 2016. Ele ligara o celular e havia lido a notícia da condução coercitiva do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Percebi que dormira com o inimigo e que o cerco contra a República de 1988 que eu tanto prezava estava se fechando.

Sou uma historiadora formada na luta pela redemocratização do Brasil. Acompanhei a ação dos movimentos sociais no processo constituinte que projetou as pautas políticas que marcariam as décadas que se seguiram, apesar da ação conservadora final do centrão, que então se constituiu como força política, e das disputas em torno da agenda econômica e social que as acompanhariam. Grosso modo, eram pautas de ampliação e reconhecimento de direitos: civis, políticos, sociais, culturais —e que se tornaram, pela pressão de diferentes atores e movimentos, patrimônio comum da nossa democracia.

Montagem traz Dilma Rousseff deixando o Palácio do Alvorada em 6.set.2019 após sofrer impeachment. Na outra foto, tirada no domingo 31..out.2022, ela utiliza o mesmo vestido durante a comemoração da vitória de Lula (Fotos: Pedro Ladeira - 6.set.2016/Folhapress e Eduardo Knapp - 31.out.2022/Folhapress)

Mas, naquele ano de 2016, tudo parecia desmoronar. Da esquerda à direita só se falava no fim da Nova República. Os direitos conquistados pareciam poucos. A política de transparência tornava a corrupção "a maior de todos os tempos". O velho centrão, com a maioria de implicados nos casos desvendados, se unira para aprovar o impedimento da presidenta eleita que, republicana, recusava-se a interferir nas investigações. Para meu desespero, a oposição democrática decidiu que valeria a pena se unir a eles.

Queriam implementar o programa econômico que pensavam mais correto, ainda que derrotado nas urnas.

Retorno a 2016 não para revisitar velhas mágoas, mas para afirmar um ponto, para mim, essencial naquele contexto. Uma nova extrema direita, de caráter fascista, que emergiu no seio dos movimentos de 2013, foi protagonista no processo. Esteve na base das práticas jurídicas da Lava Jato e conseguiu celebrar a memória da ditadura em pleno Congresso Nacional. Era um fenômeno novo no quadro democrático da Nova República, absolutamente ancorado no século 21 global.

Os documentários "O Processo" e "Amigo Secreto", de Maria Augusta Ramos, são narrativas poderosas da nossa tragédia. As instituições funcionavam, mal. A Constituição de 1988 continuou como bússola da resistência democrática, em grande parte graças ao protagonismo de novos atores políticos, como a Coalizão Negra por Direitos.

Quatro anos de um governo negacionista nos ensinaram algo. Divergências no campo democrático não podem nos permitir conciliar com o fascismo. A extrema direita brasileira se consolidou como força política, é fato, mas, pelo menos neste 2022, terá que se submeter à vontade das urnas. O governo de transição já está instalado.

A República de 1988 viveu sua mais profunda crise e se reinventou. No ano do bicentenário do surgimento da nação, continua firme e forte. Se algo acabou —como o vestido de Dilma Rousseff (PT) na celebração da vitória eleitoral do presidente Lula bem lembrou— foi, finalmente, o golpe infame iniciado em 2016.

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