Michele Oliveira
Folha de S.Paulo
Desde a chegada do fascismo ao poder, há cem anos, a Itália é considerada um laboratório que produz tendências políticas depois emuladas internacionalmente. Nos anos 1990, a vocação ganhou novos capítulos, ao antecipar o declínio de partidos tradicionais à direita e à esquerda e a entrada em cena de personagens estranhos às disputas eleitorais ou que haviam sido rejeitados.
A acelerar a ruptura estava a Operação Mãos Limpas, investigação iniciada em 1992 contra esquemas de corrupção entre agentes públicos e empresários. Seu efeito imediato foi o colapso da Democracia Cristã e do Partido Socialista Italiano, duas siglas de massa, e nos anos seguintes viriam a instabilidade crônica e a normalização da ultradireita —que se transformaram em marcas da política italiana.
Enquanto isso, as contradições do Irmãos da Itália são resultado de um partido pós-fascista que está tentando se tornar conservador normal. Já o Força, Itália tenta se posicionar como garantidor pró-europeu da direita. Mas não sou totalmente convencido dessa imagem mais moderada —basta ver declarações de seus líderes, com teor claramente sexista e racista.
Entre o fim do quarto governo Berlusconi [2011] e a vitória de Meloni, o Partido Democrático integrou seis dos sete governos, nem sempre por escolha dos eleitores. Por que a centro-esquerda não convence os italianos nas urnas? Ela foi aceitando cada vez mais a ideia de que o caminho da Itália para o progresso é por meio de uma integração mais estreita na Europa e que esse processo poderia ser liderado por banqueiros, tecnocratas, figuras sem mandato. Em vez de apresentar programas sociais que mobilizem a classe trabalhadora, a esquerda tem tido uma abordagem tecnocrática da política.
O PD incorporou isso, e para muitos setores isso é sinal de que a Itália se torna mais moderna; mas, para a maioria, os resultados desse processo têm sido insuficientes. A Itália é o único país na zona do euro que tem menor PIB agora do que quando aderiu à moeda [1999].
Folha de S.Paulo
Desde a chegada do fascismo ao poder, há cem anos, a Itália é considerada um laboratório que produz tendências políticas depois emuladas internacionalmente. Nos anos 1990, a vocação ganhou novos capítulos, ao antecipar o declínio de partidos tradicionais à direita e à esquerda e a entrada em cena de personagens estranhos às disputas eleitorais ou que haviam sido rejeitados.
A acelerar a ruptura estava a Operação Mãos Limpas, investigação iniciada em 1992 contra esquemas de corrupção entre agentes públicos e empresários. Seu efeito imediato foi o colapso da Democracia Cristã e do Partido Socialista Italiano, duas siglas de massa, e nos anos seguintes viriam a instabilidade crônica e a normalização da ultradireita —que se transformaram em marcas da política italiana.
A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, ao lado do vice e ministro da Infraestrutura, Matteo Salvini, em entrevista coletiva em Roma - Filippo Monteforte - 22.nov.22/AFP |
"O sentimento antipolítico que hoje se espalha no Ocidente surgiu não só na época de Donald Trump e do brexit, mas na Itália um quarto de século antes", escreve o historiador David Broder em "Primeiro Eles Tomaram Roma: Como a Extrema Direita Conquistou a Itália após a Operação Mãos Limpas", recém-lançado no Brasil pela Autonomia Literária.
Embora escrito em 2020, antes de Giorgia Meloni se tornar primeira-ministra, o livro mostra como sua vitória também tem conexões com o terremoto provocado pela operação. "Paradoxalmente, o sentimento antipolítica dos anos 1990, numa fase vista como o fim das ideologias, foi o que acabou por reabilitar um partido originário no fascismo —e, basicamente, o Irmãos da Itália é a continuidade dele", diz à Folha.
Broder está no Brasil para a Festa Literária das Editoras Independentes (Flipei), em Paraty, onde nesta sexta (25) participa de uma mesa sobre os cem anos do fascismo.
Embora escrito em 2020, antes de Giorgia Meloni se tornar primeira-ministra, o livro mostra como sua vitória também tem conexões com o terremoto provocado pela operação. "Paradoxalmente, o sentimento antipolítica dos anos 1990, numa fase vista como o fim das ideologias, foi o que acabou por reabilitar um partido originário no fascismo —e, basicamente, o Irmãos da Itália é a continuidade dele", diz à Folha.
Broder está no Brasil para a Festa Literária das Editoras Independentes (Flipei), em Paraty, onde nesta sexta (25) participa de uma mesa sobre os cem anos do fascismo.
A Mãos Limpas acabou abrindo o caminho para personagens com discurso antipolítica chegarem ao poder. Trinta anos depois, a eleição de Giorgia Meloni também tem raízes nisso? A Itália, antes da Mãos Limpas e depois da Segunda Guerra, teve partidos estáveis e enraizados. A Democracia Cristã, o Comunista e o Socialista tinham valores claros e representavam os interesses econômicos e sociais dos italianos. O que a operação acabou por fazer foi destruir a força e o enraizamento das legendas e, como efeito imediato, levar Silvio Berlusconi à arena eleitoral.
Houve a troca de partidos de massa por operações de mídia e legendas que não tinham o mesmo alcance. Hoje há um sistema partidário incrivelmente volátil, em que, de uma eleição para outra, os resultados mudam completamente. O Irmãos da Itália teve 4% dos votos em 2018 e, em setembro último, 26%.
A Mãos Limpas foi também um gatilho para a criação de uma aliança na qual pós-fascistas do Movimento Social Italiano (MSI) foram incluídos pela primeira vez. Paradoxalmente, o sentimento antipolítica dos anos 1990, numa fase vista como fim das ideologias, foi, ao mesmo tempo, o que acabou por reabilitar um partido originário no fascismo. E, basicamente, o Irmãos da Itália é a continuidade dele. A ascensão de Meloni não é uma ruptura repentina da ultradireita, é a continuidade de um processo em curso.
A Itália é uma vanguarda no processo de normalização da ultradireita? Qual o papel de Berlusconi? Em muitos países da Europa Ocidental podemos ver um processo análogo, de declínio da tradicional social-democracia e ascensão da ultradireita. Mas nesses casos tem sido um processo mais gradual, enquanto na Itália a Mãos Limpas de repente destruiu todo o sistema político.
O papel de Berlusconi foi muito importante. Em 1993, na primeira eleição direta para prefeito, no segundo turno em Roma, entre Gianfranco Fini (MSI) e o verde Francesco Rutelli, ele declarou apoio a Fini. Isso foi antes de ele entrar na política e um sinal de que iria construir uma nova direita. No seu primeiro governo, em 1994, o MSI teve pela primeira vez membros no ministério —antes disso teria sido impossível o partido integrar um governo; em 1960 a Democracia Cristã se apoiou no MSI no Parlamento, sem ministros, e isso provocou protestos, greves e grandes conflitos sociais.
No livro, o senhor refuta a visão de que a Itália sempre foi atrasada e disfuncional, ao dizer que a instabilidade é algo recente. O que aconteceu? Sou britânico, e frequentemente britânicos têm essa visão de que a Itália foi sempre caótica. Mas o país era muito bem-sucedido nas primeiras décadas do pós-Guerra. Nos anos 1980, era mais rico e tinha um PIB maior do que o do Reino Unido. Ainda que com muitos conflitos na sociedade, passou de essencialmente agrícola para uma potência industrial.
Um dos clichês sobre a política italiana é dizer que são quase 70 governos desde o fim dos anos 1940. Isso dá a impressão de um caos interminável, mas de 1947 a 1994 todos foram centrados com a DC como partido dominante. Houve muitas mudanças de primeiros-ministros e no gabinete, mas o sistema era estável.
Os anos 1990, com a Mãos Limpas, o fim da Guerra Fria e o avanço da União Europeia, fizeram explodir o equilíbrio. No começo da década, havia mais 4 milhões de pessoas filiadas a partidos e, em 1994, restava 1 milhão. Como a Itália tem ido mal na economia, com estagnação do PIB e salários em queda por mais de 20 anos, isso impulsiona o desejo de sempre chamar um outsider que vai chacoalhar o sistema político. Não só à direita, mas também com [os economistas] Mario Draghi [2021-2022] e Mario Monti [2011-2013].
Como diferencia os movimentos de direita de Belusconi, Meloni e Matteo Salvini? A forma com que essas três forças se diferem em suas identidades históricas não necessariamente tem a ver com suas diferenças de hoje. O Irmãos da Itália vem de uma tradição muito mais fascista do que a Liga ou o Força, Itália, mas isso não quer dizer que seja mais extremo ou antissistema.
Houve a troca de partidos de massa por operações de mídia e legendas que não tinham o mesmo alcance. Hoje há um sistema partidário incrivelmente volátil, em que, de uma eleição para outra, os resultados mudam completamente. O Irmãos da Itália teve 4% dos votos em 2018 e, em setembro último, 26%.
A Mãos Limpas foi também um gatilho para a criação de uma aliança na qual pós-fascistas do Movimento Social Italiano (MSI) foram incluídos pela primeira vez. Paradoxalmente, o sentimento antipolítica dos anos 1990, numa fase vista como fim das ideologias, foi, ao mesmo tempo, o que acabou por reabilitar um partido originário no fascismo. E, basicamente, o Irmãos da Itália é a continuidade dele. A ascensão de Meloni não é uma ruptura repentina da ultradireita, é a continuidade de um processo em curso.
A Itália é uma vanguarda no processo de normalização da ultradireita? Qual o papel de Berlusconi? Em muitos países da Europa Ocidental podemos ver um processo análogo, de declínio da tradicional social-democracia e ascensão da ultradireita. Mas nesses casos tem sido um processo mais gradual, enquanto na Itália a Mãos Limpas de repente destruiu todo o sistema político.
O papel de Berlusconi foi muito importante. Em 1993, na primeira eleição direta para prefeito, no segundo turno em Roma, entre Gianfranco Fini (MSI) e o verde Francesco Rutelli, ele declarou apoio a Fini. Isso foi antes de ele entrar na política e um sinal de que iria construir uma nova direita. No seu primeiro governo, em 1994, o MSI teve pela primeira vez membros no ministério —antes disso teria sido impossível o partido integrar um governo; em 1960 a Democracia Cristã se apoiou no MSI no Parlamento, sem ministros, e isso provocou protestos, greves e grandes conflitos sociais.
No livro, o senhor refuta a visão de que a Itália sempre foi atrasada e disfuncional, ao dizer que a instabilidade é algo recente. O que aconteceu? Sou britânico, e frequentemente britânicos têm essa visão de que a Itália foi sempre caótica. Mas o país era muito bem-sucedido nas primeiras décadas do pós-Guerra. Nos anos 1980, era mais rico e tinha um PIB maior do que o do Reino Unido. Ainda que com muitos conflitos na sociedade, passou de essencialmente agrícola para uma potência industrial.
Um dos clichês sobre a política italiana é dizer que são quase 70 governos desde o fim dos anos 1940. Isso dá a impressão de um caos interminável, mas de 1947 a 1994 todos foram centrados com a DC como partido dominante. Houve muitas mudanças de primeiros-ministros e no gabinete, mas o sistema era estável.
Os anos 1990, com a Mãos Limpas, o fim da Guerra Fria e o avanço da União Europeia, fizeram explodir o equilíbrio. No começo da década, havia mais 4 milhões de pessoas filiadas a partidos e, em 1994, restava 1 milhão. Como a Itália tem ido mal na economia, com estagnação do PIB e salários em queda por mais de 20 anos, isso impulsiona o desejo de sempre chamar um outsider que vai chacoalhar o sistema político. Não só à direita, mas também com [os economistas] Mario Draghi [2021-2022] e Mario Monti [2011-2013].
Como diferencia os movimentos de direita de Belusconi, Meloni e Matteo Salvini? A forma com que essas três forças se diferem em suas identidades históricas não necessariamente tem a ver com suas diferenças de hoje. O Irmãos da Itália vem de uma tradição muito mais fascista do que a Liga ou o Força, Itália, mas isso não quer dizer que seja mais extremo ou antissistema.
Na eleição vimos a Liga com a agenda mais agressiva e populista, menos comprometida com o apoio à Ucrânia. Ela nasceu mais liberal e foi se tornando mais identitária e nacionalista, mais aberta que o Irmãos da Itália a membros de grupos neofascistas, ligada a um conservadorismo religioso. Dez anos atrás eu não diria que a Liga é de extrema direita, mas hoje certamente é.
Enquanto isso, as contradições do Irmãos da Itália são resultado de um partido pós-fascista que está tentando se tornar conservador normal. Já o Força, Itália tenta se posicionar como garantidor pró-europeu da direita. Mas não sou totalmente convencido dessa imagem mais moderada —basta ver declarações de seus líderes, com teor claramente sexista e racista.
Entre o fim do quarto governo Berlusconi [2011] e a vitória de Meloni, o Partido Democrático integrou seis dos sete governos, nem sempre por escolha dos eleitores. Por que a centro-esquerda não convence os italianos nas urnas? Ela foi aceitando cada vez mais a ideia de que o caminho da Itália para o progresso é por meio de uma integração mais estreita na Europa e que esse processo poderia ser liderado por banqueiros, tecnocratas, figuras sem mandato. Em vez de apresentar programas sociais que mobilizem a classe trabalhadora, a esquerda tem tido uma abordagem tecnocrática da política.
O PD incorporou isso, e para muitos setores isso é sinal de que a Itália se torna mais moderna; mas, para a maioria, os resultados desse processo têm sido insuficientes. A Itália é o único país na zona do euro que tem menor PIB agora do que quando aderiu à moeda [1999].
Uma de suas conclusões no livro é que a turbulência política italiana é menos um sinal de atraso e mais uma visão do futuro para outros países. O que esperar? Estamos vendo uma virada à direita em certos temas, como a questão da imigração, com a UE aceitando a ideia de terceirizar o policiamento a regimes autoritários para reprimir esses fluxos.
Em relação à ultradireita, vimos casos como o da Suécia, na França o partido de Marine Le Pen teve uma votação histórica e grande representação no Parlamento, na Espanha provavelmente veremos o Vox entrar no governo pela primeira vez em 2023.
Em geral, as barreiras entre o que um dia foi a centro-direita e a ultradireita tendem a se dissolver. Vimos isso primeiro na Itália porque já em 1994 eles se aliaram [com pós-fascistas] para governar. Mas o processo mais fundamental que também se espalha é um declínio geral na participação política. Muitos cidadãos não acreditam mais que governos possam produzir prosperidade para eles.
RAIO-X | DAVID BRODER, 34
Em geral, as barreiras entre o que um dia foi a centro-direita e a ultradireita tendem a se dissolver. Vimos isso primeiro na Itália porque já em 1994 eles se aliaram [com pós-fascistas] para governar. Mas o processo mais fundamental que também se espalha é um declínio geral na participação política. Muitos cidadãos não acreditam mais que governos possam produzir prosperidade para eles.
RAIO-X | DAVID BRODER, 34
Historiador e escritor inglês, é editor da revista Jacobin, mora em Roma e é autor do recém-lançado "Primeiro Eles Tomaram Roma: Como a Extrema Direita Conquistou a Itália após a Operação Mãos Limpas" (Ed. Autonomia Literária. Trad.: Aline Klein. 200 págs, R$ 60).
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