13 de novembro de 2022

"Latifundismo" de extrema-direita quer desapropriar populações inteiras

De Israel ao Brasil, as violentas forças de extrema direita adotaram a linguagem dos “proprietários” defendendo suas propriedades ameaçadas. A guerra deles contra os despossuídos baseia-se em uma afirmação simples: nós somos donos deste país, vocês só moram aqui.

Daniel Kressel

Jacobin

Uma seção do muro israelense na Cisjordânia entre a cidade de Salfit e o assentamento de Ariel. (Wikimedia Commons)

Tradução / Em quarenta e oito horas, o mundo viu a derrota eleitoral de um líder de direita e o retorno triunfante de outro. Embora Jair Bolsonaro não tenha reconhecido que havia perdido o segundo turno presidencial brasileiro de 30 de outubro, ele agora parece ter sido forçado a desistir de sua reivindicação ao poder. Enquanto isso, em Israel, Benjamin Netanyahu venceu as eleições gerais de 1º de novembro, caminhando para uma coalizão de extrema direita de um tipo que o país nunca viu antes.

Cabe um breve esclarecimento: a maioria dos israelenses não votou em Netanyahu (seu bloco recebeu 48,4%). No entanto, ele terá maioria no parlamento (64 das 120 cadeiras) graças a uma lei aprovada por seu partido em 2014 que aumentou o limite para os partidos entrarem no Knesset para quatro cadeiras (3,25% do voto popular), criando obstáculos para o minoria palestina, tradicionalmente dividida em vários pequenos partidos. De fato, com dois partidos de esquerda não conseguindo atingir esse limite (Meretz e Balad), e com um partido supostamente anti-Netanyahu montando um esforço transparente para desperdiçar votos de esquerda (Habayit Hayehudi de Ayelet Shaked), mais de 7% dos eleitores anti-Netanyahu não serão representados no próximo parlamento. É assim que o gerrymandering* parece em Israel.

Ainda assim, o grande vencedor das eleições israelenses não é tanto Netanyahu quanto seu novo aliado, Itamar Ben-Gvir. Um provocador de extrema direita na campanha que levou ao assassinato de Itzhak Rabin em 1995, ele atua à margem da política de extrema direita israelense há décadas. Netanyahu, que enfrenta vários casos de corrupção, permitiu a Ben-Gvir mobilizar jovens israelenses e vencer as eleições na esperança de que uma coalizão de direita possa mudar as leis que levaram Netanyahu a julgamento, ou aprovar leis que anulem o poder de Suprema Corte de Israel. Ao fazer isso, Netanyahu legitimou o partido de Ben-Gvir (Otzma Yehudit, ou “Poder Judaico”) e sua ideologia. De fato, os discursos de Ben-Gvir se tornaram um espetáculo comum nos noticiários da TV israelense – uma forma de entretenimento. Com quatorze cadeiras no parlamento, Ben-Gvir e seus seguidores agora esperam conquistar o Ministério da Segurança Interna. Ainda não se sabe se Netanyahu está em posição de barganhar com seu novo aliado fanático.

Do Brasil à Israel, os dois líderes de direita e o fanatismo religioso que impulsiona seus movimentos políticos, nunca foram tão parecidos. Enquanto os populistas de direita na Europa e nos Estados Unidos rotularam retoricamente seus adversários políticos como a anti-nação, as versões israelense e brasileira estão desapropriando sistemática e ativamente populações indígenas que acreditam não ter o direito de estar lá. Em outras palavras, a retórica de Ben-Gvir e as saudações nazistas dos apoiadores de Bolsonaro são simplesmente as manifestações descaradas de movimentos que fizeram da limpeza étnica o centro de seu projeto político.

"Estado Judeu" ou "Terra dos Judeus"?
 
Para entender quem é Ben-Gvir e o que ele quer, devemos ressaltar que suas ideias histéricas dificilmente são originais. Desde novembro de 1947, quando a Palestina foi obrigada a se dividir em duas, Israel – e o movimento sionista como seu núcleo ideológico – não conseguiu resolver o nó górdio entre ser um estado “democrático” e um Estado “judeu”. A nuance nesta fórmula complica ainda mais as coisas. De 1947 em diante, Israel tem sido de fato um “Estado judeu”: sua língua formal é o hebraico, opera de acordo com o calendário judaico, suas leis são inspiradas na legalidade rabínica e seu sistema educacional ensina até as crianças israelenses mais seculares as verdades da bíblia judaica.

É verdade que Israel não inventou o estado-nação como um conceito. Mas no caso israelense há algo diferente: o uso da política de imigração e colonização de terras palestinas para confeccionar uma maioria demográfica. Os judeus têm o direito de “retornar” e obter cidadania imediata em Israel. Para os gentios, por outro lado, a naturalização em Israel é impossível a menos que seja casado com um israelense — um judeu israelense, para ser mais preciso. Um palestino israelense não pode esperar que sua esposa palestina não israelense se torne cidadã. As leis estaduais de Israel – e a infame “Lei das Nações” de 2018 em particular – deixaram esse ponto claro. Ainda assim, dentro de suas fronteiras soberanas, Israel é considerado pelo Ocidente como a “única democracia no Oriente Médio” e um país que defende os direitos individuais, cumprindo assim os mais elevados valores liberais.

Ben-Gvir ameaça desfazer essa fachada. Para ele, e para o movimento de colonos messiânicos que o apoia, Israel não é simplesmente um Estado judeu (Medina Yehudit), mas a “Terra dos Judeus” (Medinat Ha’yehudim). Como tal, tudo dentro de seus perímetros é propriedade judaica por definição. Da mesma forma, eles acreditam que o aparato estatal deve servir aos interesses daqueles que as autoridades rabínicas consideram ter sangue judeu em suas veias. Não é de surpreender que Ben-Gvir e seus seguidores tenham sido atores-chave em Lehava – uma organização projetada para impedir a mistura racial (Hitbolelut) entre judeus e árabes, mas que na verdade é conhecida por espancar indiscriminadamente homens palestinos inofensivos nas ruas de Jerusalém. Em sua mente, Israel deveria se tornar um gueto judeu do tamanho de um Estado, cujo único propósito é criar judeus em números pré-Holocausto e, por sua vez, apressar a vinda do messias judeu.

O slogan da campanha eleitoral de Ben-Gvir "Quem são os proprietários aqui?" (Mi Po Ba'aley Ha'bait) é inequívoco. Essa pergunta retórica grosseira envia uma mensagem simples: os proprietários voltaram para expulsar os invasores de suas propriedades. A identidade deste último também está longe de ser um mistério. Para Ben-Gvir, os seis milhões de palestinos que vivem entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo são candidatos à deportação imediata, seguidos por seus apoiadores na sociedade israelense (judeus israelenses de esquerda), refugiados africanos e, sem dúvida, até membros da comunidade LGBTQ.

Essas ideias vêm se formando nas margens da extrema direita israelense há décadas. Além deles, Ben-Gvir está agora reintroduzindo outras insinuações que soam fascistas. Informado pela ideologia do teórico racista israelense Rabi Meir Kahane, ele não apenas rejeita a ética universal do liberalismo e da democracia, mas exalta a violência política como um valor em si. De fato, ele foi condenado por inúmeros atos de violência contra palestinos. Surpreendentemente, Ben-Gvir não está interessado no status quo político na Cisjordânia, mais conhecido como os “territórios ocupados” israelenses. Em vez disso, ele busca ativamente um confronto violento definitivo que livrará Israel de seus inimigos externos e internos de uma vez por todas e, ao longo do caminho, reconstruirá a nação de acordo com valores espirituais judaicos estritos – como ele os entende, pelo menos. Sua ideologia é, portanto, tão messiânica quanto insidiosamente fascista.

Israel na América Latina

Judeus americanos pró-israelenses, sejam conservadores ou liberais, tendem a ignorar a radicalização de direita de Israel nas últimas décadas. Mas os cristãos evangélicos ao redor do mundo notaram. Como parte de sua cosmologia intrigante, eles não apenas compartilham as fantasias de limpeza étnica de Ben-Gvir, mas também promovem ativamente a batalha contra o mundo muçulmano como um confronto de extrema importância escatológica.

Isso nos leva a Jair Messias Bolsonaro. Netanyahu é um aliado declarado do agora ex-presidente brasileiro, assim como de Donald Trump e outros líderes de extrema direita como o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán. Ainda assim, a afiliação de Bolsonaro a Israel vai além de ser uma alma gêmea de Netanyahu. Bolsonaro e sua esposa se identificam com Israel de uma forma quase bizarra. Michelle Bolsonaro, uma pronunciada evangélica, apareceu no dia das eleições no Brasil vestindo uma camiseta com a bandeira israelense e continuou a escrever nas redes sociais: “Que as bênçãos de Deus estejam sobre o Brasil e Israel.

A direita brasileira está interessada no destino de Israel e dos judeus em todo o mundo? Não mesmo. Na maioria das vezes, essas pessoas e a ditadura militar a que serviram, e da qual são nostálgicas, tendem a expressar sentimentos antissemitas, como fizeram todas as ditaduras militares na América Latina. Vídeos que surgiram nos últimos dias mostrando centenas de apoiadores de Bolsonaro realizando a saudação nazista apenas mostram que essas pessoas estão dispostas a evocar, conscientemente, símbolos que sabem muito bem que significam horror absoluto para judeus e israelenses.

Dito de outra forma, Bolsonaro e seus seguidores não se identificam com Israel. Em vez disso, eles acreditam que são Israel. Israel na América Latina. Assim como Israel, eles, os (brancos) brasileiros evangélicos do sul, acreditam ser o povo escolhido de Deus e, portanto, os verdadeiros “proprietários” de seu próprio país. Como tal, eles também acreditam estar em uma luta contra um intruso estrangeiro, ou seja, os “comunistas” do norte (escuros) do PT, da esquerda, e as minorias indígenas do Brasil. O fato de Bolsonaro representar os poderosos latifundiários e o agronegócio do Brasil torna esse sentimento de “proprietário” ainda mais evidente. Essa semelhança entre a ocupação israelense na Cisjordânia e a apropriação de terras indígenas na Amazônia é impressionante: os latifundiários não sentem necessidade de pedir desculpas pelas violações desenfreadas de direitos humanos que cometem, nem mesmo assassinato. Afinal, Deus está do lado deles. Esta é a casa deles, e contra um intruso a pessoa age em legítima defesa.

Certamente há diferenças significativas entre os dois países. O Brasil é uma superpotência hemisférica com mais de duzentos milhões de habitantes, pouco propenso a sucumbir às pressões internacionais. Israel talvez acredite ser uma superpotência, mas, na verdade, depende dos Estados Unidos e da União Européia – política, militar e financeiramente. Felizmente para o Brasil, as eleições de outubro de 2022 demonstraram as limitações do latifúndio de direita no Brasil.

O caso de Israel é diferente apenas pelo fato de Netanyahu ser um político muito mais habilidoso do que Bolsonaro jamais poderia ser. Particularmente notável é a capacidade de Netanyahu de falar em múltiplas, senão contraditórias, vozes para diferentes públicos. Não obstante, o campo de direita israelense é mais fraco do que se poderia supor, e seu latifúndio está em grande parte distante da realidade. Seus líderes talvez ajam a partir de um senso bíblico de direito, mas também possuem um senso equivocado de impunidade e respeitabilidade internacional. Como tal, são mais sensíveis à pressão internacional do que a direita brasileira.

Não repreensões, mas ações

O que nos leva à pergunta: o que pode ser feito? Embora possa ser inapropriado para eles se intrometer ativamente nos assuntos internos de Israel, é mais do que razoável que os Estados Unidos e a União Européia – cujos impostos de cidadãos mantêm a Autoridade Palestina, sustentando assim a ocupação de Israel e a desapropriação de terras – tomem uma posição firme contra a onda de extrema-direita de Israel, em vez de continuar com a linha de que Israel é uma democracia vibrante.

Qualquer violação potencial de direitos pessoais ou desestabilização do sistema legal israelense, pelo futuro governo de Netanyahu, deve ser enfrentada não apenas com repreensões, mas com ações. Com a Alemanha no comando, o tratamento dado pela União Europeia a Israel ainda é marcado por um complexo histórico de culpa. Embora essa realidade possa não mudar, o que pode mudar é a tendência dos europeus de apoiar educadamente qualquer governo israelense, independentemente de quem sejam seus ministros.

Há pouca dúvida de que Ben-Gvir e os membros de seu partido em breve ocuparão importantes cargos ministeriais. Os Estados Unidos e a União Europeia devem deixar bem claro que, a menos que esses políticos de extrema-direita rejeitem publicamente suas declarações racistas, e se comprometam a proteger as liberdades civis em Israel e na Cisjordânia, eles serão desconsiderados, desfinanciados, e excluídos dos fóruns internacionais. Qualquer coisa menor do que isso significaria que os Estados Unidos e a União Européia serão cúmplices de sua retórica e atos.

Para ficar claro, isso não é um chamado para “boicotar Israel”. Em vez disso, é um chamado para estabelecer um preço internacional para o latifúndio iliberal de extrema direita que vem corroendo os sistemas políticos nas sociedades democráticas em todo o mundo. Se esse roteiro funcionar em Israel, pode servir de exemplo para outros lugares, antes do retorno de Bolsonaro, por exemplo. Se alguém acredita que o bolsonarismo simplesmente desaparecerá da política brasileira, deve estudar rapidamente as lições do retorno de Netanyahu. Bolsonaro talvez tenha perdido as eleições de 2022 e parece improvável (ou incapaz) de encenar um golpe de estado em um futuro próximo. Mas ele e seu movimento não vão a lugar nenhum. Os proprietários raramente o fazem.

Colaborador

Daniel Kressel é bolsista Lady Davis no Departamento de Estudos Espanhóis, Portugueses e Latino-Americanos da Universidade Hebraica de Jerusalém. Seu próximo livro, “Hispanic Technocracy: Turning Fascism into Catholic Authoritarianism in Spain, Argentina, and Chile”, explora as fases iniciais da virada neoliberal da América Latina.

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