Laura Mattos
Folha de S.Paulo
André Singer era editor de política da Folha e havia acabado de fechar a edição do histórico 15 de março de 1985. Eis que, por volta das 22h30, recebe uma informação que mudaria a primeira página do jornal e a história do Brasil.
O jornalista e cientista político André Singer - Eduardo Anizelli - 10.mai.2018/ Folhapress |
Com o que foi possível apurar às pressas, com o jornal já para ser impresso na gráfica, trocou-se a manchete "Acabou a ditadura militar", pela qual tanto se havia esperado, por outra completamente inesperada: "Operação de apêndice pode adiar a posse de Tancredo".
Quase quatro décadas depois, Singer se recorda do "pandemônio" em que se transformou a Redação. "Estávamos exaustos, aquelas coberturas eram imensas, e eu havia acabado de consolidar na edição uma quantidade enorme de informações enviadas por repórteres de vários lugares, Brasília, São Paulo, Rio..."
O que Tancredo tinha? Aquilo era um novo golpe? Não haveria posse? "Não sabíamos o que estava acontecendo nem o que iria acontecer. Tudo passava pela cabeça", conta ele, que se lembra da dificuldade prática de resolver a edição do jornal, pronta para a posse, e da perplexidade diante da "situação completamente maluca" do país. "Queríamos tanto que a democracia chegasse... Aquilo parecia surreal."
As agonias de Tancredo, do país e dos jornalistas naquela cobertura se prolongaram por quase 40 dias, até 21 de abril, quando morreu o político que simbolizava a volta da democracia.
Como se não fosse bastante o desafio de registrar uma das passagens mais marcantes da história do país, o pandemônio na Folha tinha um agravante: a Redação passava pelas mais profundas mudanças no modo de fazer e de pensar um jornal, que iram transformar a sua própria história e a do jornalismo brasileiro.
Aos 27 anos, Singer estava no olho do furacão das duas mudanças históricas, a do país e a do jornal. Ele havia acompanhado de perto a formulação do que seria chamado de Projeto Folha, que pregava objetividade, precisão, tom crítico, apartidarismo e pluralidade de ideias no jornalismo.
Fazia pouco menos de um ano que Otavio Frias Filho (1957-2018), um dos idealizadores desse processo de modernização do jornal, havia assumido a direção de Redação. Sua chegada, em maio de 1984, se deu na sequência das Diretas Já, quando a Folha havia se destacado por ter sido o primeiro veículo de comunicação a aderir ao movimento. A partir daí, ganhou leitores e peso institucional.
Depois do tom eufórico da cobertura das Diretas Já, causou estranhamento no leitorado a forma objetiva com que a Folha abordou a doença de Tancredo.
Carlos Eduardo Lins da Silva, que era secretário de Redação e foi um dos principais nomes na implementação do Projeto Folha, conta que o jornal nunca recebera tantos telefonemas e cartas de protestos.
"Embasada pelas diretrizes do projeto, a direção de Redação resolveu enfrentar o noticiário da doença de Tancredo da forma que fosse a mais exata, precisa e sintética, não emocional. A Folha isolou-se nessa posição", narra Lins da Silva no livro "Mil Dias", sobre o Projeto Folha.
"Quase todos os outros veículos de comunicação engajaram-se numa campanha irracional de tentar manter o presidente vivo à base de ocultação de informação e otimismo irrealista."
O auge dessa guinada se deu na manchete de 16 de abril, que se tornaria célebre: "Médicos esfriam Tancredo", sobre uma técnica a que o político foi submetido com a intenção de prolongar sua vida, de redução da temperatura de seu corpo.
Na Redação, a temperatura era altíssima, tanto em razão da pressão externa como da de jornalistas da própria equipe, contrários à nova linha editorial. Singer foi firme diante de ambas, para ele as mudanças faziam todo o sentido.
"O André Singer é uma das grandes personificações do Projeto Folha", analisa hoje Lins da Silva. "Sempre foi profissional, detalhista e metódico. Fazia perguntas e checava até ter certeza de que a informação estava correta, além de incorporar o espírito crítico e a objetividade."
Antes de chegar à Redação, Singer havia trabalhado por quase quatro anos no nono andar do prédio, na alameda Barão de Limeira. Ali fica o auditório da Folha, à época recém-inaugurado, e ele entrou no jornal para ocupar aquele espaço com debates.
Acabara de se formar em ciências sociais na USP, onde posteriormente iria se graduar em jornalismo. Como membro do centro acadêmico, havia organizado um ciclo de debates que foi um sucesso ao discutir, entre outros temas, o racismo, o feminismo e a questão LGBTQIA+, que ainda não tinha esse nome e era pouco discutida.
Por indicação de um professor seu, José Augusto Guilhon Albuquerque, editorialista da Folha, Singer foi ao jornal para ser entrevistado para a vaga. De cabelo comprido, vestido informalmente com uma camiseta, surpreendeu-se ao ser recebido pelo dono do jornal, o seu Frias, como era conhecido Octavio Frias de Oliveira (1912-2007). "Quando eu soube que ia falar com ele, fiquei todo constrangido, ele era um mito."
Singer calcula ter coordenado centenas de debates nos quase quatro anos em que teve essa função. Os eventos lotavam o auditório, e alguns tiveram de ser realizados na garagem do jornal para dar conta do público. Um deles, que teve mais de 2.000 pessoas na plateia, foi com Caetano Veloso, entrevistado por Mino Carta e José Miguel Wisnik, entre outros, em junho de 1981.
"Aquele período era de grande efervescência política, estávamos voltando de forma lenta à democracia e vivemos uma espécie de euforia por muito tempo, o sentimento de esperança era generalizado", lembra.
Os debates tratavam de temas centrais para o país: política, economia, cultura, saúde, educação etc. "A sociedade esteve reprimida durante anos e, naquele momento, era como se fosse possível fazer o país outra vez. O que estava em debate era: ‘Chegou a nossa vez. Como vamos fazer esse país?’", resume.
Foi nesse ambiente que Singer teve um contato próximo com Otavio, então secretário do conselho editorial, e viu nascer as reflexões do Projeto Folha. "Para mim, ficou muito marcada a formulação do Otavio de que não existe objetividade absoluta, sempre haverá algum viés. Mas existem aproximações à objetividade, e buscar a objetividade é o nosso compromisso."
Nunca é simples essa busca e, para Singer, o desafio era ainda maior. O jornalista foi um dos primeiros filiados do Partido dos Trabalhadores, que seu pai, o economista Paul Singer (1932-2018), ajudou a fundar, em 1980.
"Eu tenho uma posição política e partidária desde aquela época, e o Otavio certamente sabia", diz. "Mas sempre foi muito claro para mim que, na Folha, o meu compromisso era apartidário. Uma coisa era a minha militância política, e outra, a minha atuação profissional", afirma.
O bloco do jornal na mão parecia desligar o botão da militância. Foi assim quando cobriu o famoso comício das Diretas de 25 de janeiro de 1984. Apesar da comoção geral, a lembrança de Singer é a de ter ficado "até meio frio".
"Claro que eu era a favor das Diretas, mas queria fazer o meu trabalho e me colocava no papel de olhar o que acontecia, registrar e narrar. A emoção tinha que ficar para outro momento."
"Vivi tudo de modo diferente, não como participante. O jornalista entra em lugares onde outros não entram e, justamente por isso, não pode participar, ou perde a objetividade."
O acesso a fatos e a personagens é algo do jornalismo que cativou Singer, apesar de sempre ter tido claro que sua pretensão maior era a carreira acadêmica —nos anos 1990, iria se tornar professor do Departamento de Ciência Política da USP e logo seria um dos mais respeitados cientistas políticos do país.
No evento das Diretas, Singer se deparou, em um corredor da Secretaria de Cultura, com Chico Buarque. Outra lembrança desse aspecto da profissão é a de uma entrevista com Jânio Quadros. "A renúncia do Jânio e a crise da legalidade eram temas mitológicos, que estudávamos porque era o prefácio de 1964. Quando o Jânio me recebeu, era como se tivesse aberto a porta da história para mim", compara.
A "tranquilidade", em suas palavras, com que separava o trabalho jornalístico da militância política terminou quando foi convidado a assumir posições de chefia no jornal. Primeiro como editor-assistente e editor de política (1984-1986), depois como secretário de Redação (1987-1988), e, por fim, como editor do Painel (1989).
"Criou-se um certo conflito. Com posições de responsabilidade, veio aquela história: não basta ser honesto, tem de parecer honesto. Não basta ser apartidário, tem de parecer apartidário."
Decidiu então se afastar formalmente das atividades do PT, ainda que não tenha se desfiliado. Foi a solução, avalia, para deixar claro para o jornal e para o PT que o compromisso dele naquele momento era com os cargos da Folha e, portanto, o de buscar ser apartidário.
"O Projeto Folha tem como um dos eixos o apartidarismo. Esse item não é um enfeite, é para valer, é muito importante", afirma.
Em 1989, deixou a Folha para retomar a carreira acadêmica. Foi quando atuou na comunicação da campanha de Lula. Em 2002, assumiria o cargo de porta-voz da campanha do petista, para depois se tornar porta-voz da Presidência e secretário de imprensa do governo. Antes disso, de 2000 a 2002, em uma volta ao jornal, foi repórter especial.
Outra retomada ao jornal se deu quando assumiu uma coluna na página 2. Durante seis anos também importantes na história do país, de 2012 a 2019, escreveu sobre as manifestações de Junho, o impeachment de Dilma, a Lava Jato, a eleição de Bolsonaro e outros temas.
Abordou também o lulismo, termo que ele cunhou e que foi objeto de sua tese de livre-docência na USP, adaptada para o livro "Os Sentidos do Lulismo - Reforma Gradual e Pacto Conservador" (Companhia das Letras).
Em sua produção acadêmica, assim como no jornalismo, ganhou respeito por buscar objetividade nas análises sobre o PT, de forma que a proximidade com o partido o ajudasse a clarear o seu olhar, e não o contrário. O rigor do universo acadêmico, de certo modo, fez com que, para ele, as obsessões do Projeto Folha soassem naturais.
Mas essa é também uma questão de DNA. Em um artigo de despedida a Paul Singer, publicado no site do PT, comparou a paixão do pai pelo partido ao modo como ele torcia pelo Corinthians, "sem perder a objetividade".
Na entrevista para este texto, lembrou-se de quando assistia aos jogos do Corinthians com o pai e observava algo "de outro mundo": "Ele era muito corintiano. Mas toda jogada boa que o Palmeiras fazia, ou o Santos, ou o São Paulo, dizia ‘Que boa jogada!’. ‘Olha que gol marcaram!", conta André, que, corintiano como o pai, herdou dele a paixão pela objetividade.
RAIO-X
ANDRÉ SINGER, 63
Formado em ciências sociais e em jornalismo pela USP, entrou na Folha em 1980. Trabalhou na coordenação de debates e de artigos do jornal. No final de 1983, tornou-se repórter de política e participou da cobertura das Diretas Já. Foi editor-assistente de política e logo passou a editor, função que exerceu entre 1984 e 1986, tendo liderado a cobertura da doença e morte de Tancredo Neves e os primeiros anos da redemocratização do país. Foi secretário de Redação (1987-1988) e atuou para a implementação do Projeto Folha, que pregava precisão, objetividade, tom crítico, apartidarismo e pluralidade de ideias no jornalismo.
Deixou o jornal no final de 1989 e, em 1990, tornou-se professor do Departamento de Ciência Política da USP. Voltou à Folha como repórter especial entre 2000 e 2002, e deixou o jornal para se tornar porta-voz da campanha de Lula. Foi porta-voz da Presidência e secretário de imprensa do governo (2003-2007).
Retornou à Folha como colunista da página dois (2012-2019). Com mestrado, doutorado, livre-docência e titularidade em ciência política pela USP, é autor de diversos livros, entre eles "O Lulismo em Crise" (Companhia das Letras)
Quase quatro décadas depois, Singer se recorda do "pandemônio" em que se transformou a Redação. "Estávamos exaustos, aquelas coberturas eram imensas, e eu havia acabado de consolidar na edição uma quantidade enorme de informações enviadas por repórteres de vários lugares, Brasília, São Paulo, Rio..."
O que Tancredo tinha? Aquilo era um novo golpe? Não haveria posse? "Não sabíamos o que estava acontecendo nem o que iria acontecer. Tudo passava pela cabeça", conta ele, que se lembra da dificuldade prática de resolver a edição do jornal, pronta para a posse, e da perplexidade diante da "situação completamente maluca" do país. "Queríamos tanto que a democracia chegasse... Aquilo parecia surreal."
As agonias de Tancredo, do país e dos jornalistas naquela cobertura se prolongaram por quase 40 dias, até 21 de abril, quando morreu o político que simbolizava a volta da democracia.
Como se não fosse bastante o desafio de registrar uma das passagens mais marcantes da história do país, o pandemônio na Folha tinha um agravante: a Redação passava pelas mais profundas mudanças no modo de fazer e de pensar um jornal, que iram transformar a sua própria história e a do jornalismo brasileiro.
Aos 27 anos, Singer estava no olho do furacão das duas mudanças históricas, a do país e a do jornal. Ele havia acompanhado de perto a formulação do que seria chamado de Projeto Folha, que pregava objetividade, precisão, tom crítico, apartidarismo e pluralidade de ideias no jornalismo.
Fazia pouco menos de um ano que Otavio Frias Filho (1957-2018), um dos idealizadores desse processo de modernização do jornal, havia assumido a direção de Redação. Sua chegada, em maio de 1984, se deu na sequência das Diretas Já, quando a Folha havia se destacado por ter sido o primeiro veículo de comunicação a aderir ao movimento. A partir daí, ganhou leitores e peso institucional.
Depois do tom eufórico da cobertura das Diretas Já, causou estranhamento no leitorado a forma objetiva com que a Folha abordou a doença de Tancredo.
Carlos Eduardo Lins da Silva, que era secretário de Redação e foi um dos principais nomes na implementação do Projeto Folha, conta que o jornal nunca recebera tantos telefonemas e cartas de protestos.
"Embasada pelas diretrizes do projeto, a direção de Redação resolveu enfrentar o noticiário da doença de Tancredo da forma que fosse a mais exata, precisa e sintética, não emocional. A Folha isolou-se nessa posição", narra Lins da Silva no livro "Mil Dias", sobre o Projeto Folha.
"Quase todos os outros veículos de comunicação engajaram-se numa campanha irracional de tentar manter o presidente vivo à base de ocultação de informação e otimismo irrealista."
O auge dessa guinada se deu na manchete de 16 de abril, que se tornaria célebre: "Médicos esfriam Tancredo", sobre uma técnica a que o político foi submetido com a intenção de prolongar sua vida, de redução da temperatura de seu corpo.
Na Redação, a temperatura era altíssima, tanto em razão da pressão externa como da de jornalistas da própria equipe, contrários à nova linha editorial. Singer foi firme diante de ambas, para ele as mudanças faziam todo o sentido.
"O André Singer é uma das grandes personificações do Projeto Folha", analisa hoje Lins da Silva. "Sempre foi profissional, detalhista e metódico. Fazia perguntas e checava até ter certeza de que a informação estava correta, além de incorporar o espírito crítico e a objetividade."
Antes de chegar à Redação, Singer havia trabalhado por quase quatro anos no nono andar do prédio, na alameda Barão de Limeira. Ali fica o auditório da Folha, à época recém-inaugurado, e ele entrou no jornal para ocupar aquele espaço com debates.
Acabara de se formar em ciências sociais na USP, onde posteriormente iria se graduar em jornalismo. Como membro do centro acadêmico, havia organizado um ciclo de debates que foi um sucesso ao discutir, entre outros temas, o racismo, o feminismo e a questão LGBTQIA+, que ainda não tinha esse nome e era pouco discutida.
Por indicação de um professor seu, José Augusto Guilhon Albuquerque, editorialista da Folha, Singer foi ao jornal para ser entrevistado para a vaga. De cabelo comprido, vestido informalmente com uma camiseta, surpreendeu-se ao ser recebido pelo dono do jornal, o seu Frias, como era conhecido Octavio Frias de Oliveira (1912-2007). "Quando eu soube que ia falar com ele, fiquei todo constrangido, ele era um mito."
Singer calcula ter coordenado centenas de debates nos quase quatro anos em que teve essa função. Os eventos lotavam o auditório, e alguns tiveram de ser realizados na garagem do jornal para dar conta do público. Um deles, que teve mais de 2.000 pessoas na plateia, foi com Caetano Veloso, entrevistado por Mino Carta e José Miguel Wisnik, entre outros, em junho de 1981.
"Aquele período era de grande efervescência política, estávamos voltando de forma lenta à democracia e vivemos uma espécie de euforia por muito tempo, o sentimento de esperança era generalizado", lembra.
Os debates tratavam de temas centrais para o país: política, economia, cultura, saúde, educação etc. "A sociedade esteve reprimida durante anos e, naquele momento, era como se fosse possível fazer o país outra vez. O que estava em debate era: ‘Chegou a nossa vez. Como vamos fazer esse país?’", resume.
Foi nesse ambiente que Singer teve um contato próximo com Otavio, então secretário do conselho editorial, e viu nascer as reflexões do Projeto Folha. "Para mim, ficou muito marcada a formulação do Otavio de que não existe objetividade absoluta, sempre haverá algum viés. Mas existem aproximações à objetividade, e buscar a objetividade é o nosso compromisso."
Nunca é simples essa busca e, para Singer, o desafio era ainda maior. O jornalista foi um dos primeiros filiados do Partido dos Trabalhadores, que seu pai, o economista Paul Singer (1932-2018), ajudou a fundar, em 1980.
"Eu tenho uma posição política e partidária desde aquela época, e o Otavio certamente sabia", diz. "Mas sempre foi muito claro para mim que, na Folha, o meu compromisso era apartidário. Uma coisa era a minha militância política, e outra, a minha atuação profissional", afirma.
O bloco do jornal na mão parecia desligar o botão da militância. Foi assim quando cobriu o famoso comício das Diretas de 25 de janeiro de 1984. Apesar da comoção geral, a lembrança de Singer é a de ter ficado "até meio frio".
"Claro que eu era a favor das Diretas, mas queria fazer o meu trabalho e me colocava no papel de olhar o que acontecia, registrar e narrar. A emoção tinha que ficar para outro momento."
"Vivi tudo de modo diferente, não como participante. O jornalista entra em lugares onde outros não entram e, justamente por isso, não pode participar, ou perde a objetividade."
O acesso a fatos e a personagens é algo do jornalismo que cativou Singer, apesar de sempre ter tido claro que sua pretensão maior era a carreira acadêmica —nos anos 1990, iria se tornar professor do Departamento de Ciência Política da USP e logo seria um dos mais respeitados cientistas políticos do país.
No evento das Diretas, Singer se deparou, em um corredor da Secretaria de Cultura, com Chico Buarque. Outra lembrança desse aspecto da profissão é a de uma entrevista com Jânio Quadros. "A renúncia do Jânio e a crise da legalidade eram temas mitológicos, que estudávamos porque era o prefácio de 1964. Quando o Jânio me recebeu, era como se tivesse aberto a porta da história para mim", compara.
A "tranquilidade", em suas palavras, com que separava o trabalho jornalístico da militância política terminou quando foi convidado a assumir posições de chefia no jornal. Primeiro como editor-assistente e editor de política (1984-1986), depois como secretário de Redação (1987-1988), e, por fim, como editor do Painel (1989).
"Criou-se um certo conflito. Com posições de responsabilidade, veio aquela história: não basta ser honesto, tem de parecer honesto. Não basta ser apartidário, tem de parecer apartidário."
Decidiu então se afastar formalmente das atividades do PT, ainda que não tenha se desfiliado. Foi a solução, avalia, para deixar claro para o jornal e para o PT que o compromisso dele naquele momento era com os cargos da Folha e, portanto, o de buscar ser apartidário.
"O Projeto Folha tem como um dos eixos o apartidarismo. Esse item não é um enfeite, é para valer, é muito importante", afirma.
Em 1989, deixou a Folha para retomar a carreira acadêmica. Foi quando atuou na comunicação da campanha de Lula. Em 2002, assumiria o cargo de porta-voz da campanha do petista, para depois se tornar porta-voz da Presidência e secretário de imprensa do governo. Antes disso, de 2000 a 2002, em uma volta ao jornal, foi repórter especial.
Outra retomada ao jornal se deu quando assumiu uma coluna na página 2. Durante seis anos também importantes na história do país, de 2012 a 2019, escreveu sobre as manifestações de Junho, o impeachment de Dilma, a Lava Jato, a eleição de Bolsonaro e outros temas.
Abordou também o lulismo, termo que ele cunhou e que foi objeto de sua tese de livre-docência na USP, adaptada para o livro "Os Sentidos do Lulismo - Reforma Gradual e Pacto Conservador" (Companhia das Letras).
Em sua produção acadêmica, assim como no jornalismo, ganhou respeito por buscar objetividade nas análises sobre o PT, de forma que a proximidade com o partido o ajudasse a clarear o seu olhar, e não o contrário. O rigor do universo acadêmico, de certo modo, fez com que, para ele, as obsessões do Projeto Folha soassem naturais.
Mas essa é também uma questão de DNA. Em um artigo de despedida a Paul Singer, publicado no site do PT, comparou a paixão do pai pelo partido ao modo como ele torcia pelo Corinthians, "sem perder a objetividade".
Na entrevista para este texto, lembrou-se de quando assistia aos jogos do Corinthians com o pai e observava algo "de outro mundo": "Ele era muito corintiano. Mas toda jogada boa que o Palmeiras fazia, ou o Santos, ou o São Paulo, dizia ‘Que boa jogada!’. ‘Olha que gol marcaram!", conta André, que, corintiano como o pai, herdou dele a paixão pela objetividade.
RAIO-X
ANDRÉ SINGER, 63
Formado em ciências sociais e em jornalismo pela USP, entrou na Folha em 1980. Trabalhou na coordenação de debates e de artigos do jornal. No final de 1983, tornou-se repórter de política e participou da cobertura das Diretas Já. Foi editor-assistente de política e logo passou a editor, função que exerceu entre 1984 e 1986, tendo liderado a cobertura da doença e morte de Tancredo Neves e os primeiros anos da redemocratização do país. Foi secretário de Redação (1987-1988) e atuou para a implementação do Projeto Folha, que pregava precisão, objetividade, tom crítico, apartidarismo e pluralidade de ideias no jornalismo.
Deixou o jornal no final de 1989 e, em 1990, tornou-se professor do Departamento de Ciência Política da USP. Voltou à Folha como repórter especial entre 2000 e 2002, e deixou o jornal para se tornar porta-voz da campanha de Lula. Foi porta-voz da Presidência e secretário de imprensa do governo (2003-2007).
Retornou à Folha como colunista da página dois (2012-2019). Com mestrado, doutorado, livre-docência e titularidade em ciência política pela USP, é autor de diversos livros, entre eles "O Lulismo em Crise" (Companhia das Letras)
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