29 de dezembro de 2021

Para derrotar a direita, temos que entender seus argumentos

Desde a Revolução Francesa, a direita desenvolveu um conjunto comum de argumentos para resistir ao impulso de democratizar o poder econômico e político. A esquerda só vai ganhar se analisarmos sua retórica - e contra-atacá-la.

Matt McManus


Ronald Reagan se encontra com Margaret Thatcher durante uma reunião de cúpula econômica em Veneza, Itália, 1987. (Levan Ramishvili / Flickr)

https://jacobin.com.br/2022/08/para-combater-a-direita-precisamos-entender-os-seus-argumentos/

Em 1991, uma década após a revolução Reagan-Thatcher ter empurrado decisivamente a política para a direita, o economista e cientista social Albert O. Hirschman publicou um pequeno livro chamado The Rhetoric of Reaction. O livro explica uma tipologia de argumentos de direita — “as mais importantes posturas polêmicas e manobras plausíveis de serem usadas por quem quer desacreditar e derrubar políticas ‘progressistas’”.

Hirschman enfatizou que o pensamento conservador era mais do que uma série de tropos [metáfora ou figura de linguagem]. Os polemistas de direita às vezes atingem seu objetivo. Porém, na grande onda conservadoras, há certas estratégias argumentativas que sempre pipocam. E, ao reconhecer esses padrões retóricos, fica mais fácil refutar os argumentos da direita, não importando o aspecto que tomem.

Três ondas de progresso, três ondas de reação

Albert O. Hirschman nasceu em 1915 em Berlim, Alemanha. Depois de lutar contra os franquistas na Guerra Civil Espanhola, ele trabalhou com o Comitê de Resgate de Emergência para ajudar antifascistas proeminentes a fugir da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Ele acabou escapando para os Estados Unidos, onde trabalhou para o exército pelo resto da guerra e assumiu uma cadeira na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Ele continuou tendo uma variedade de nomeações acadêmicas até sua morte em 2012. Embora nunca tenha sido um radical, Hirschman foi fortemente crítico da crescente onda de conservadorismo na década de 1980 e produziu The Rhetoric of Reaction como uma resposta.

Ele começa o livro apresentando três “ondas reacionárias” na política ocidental. Em cada instância, os progressistas avançaram com projetos igualitários que buscavam redistribuir riqueza e poder - e a direita lutou para repelir essas tentativas com argumentos intelectuais e organização política própria.

A primeira onda reacionária, emergindo no início do século XIX, se opôs às demandas liberais por igualdade perante a lei que foram incorporadas de forma mais clara à Revolução Francesa. A segunda onda, que se estendeu do século XIX até o XX, opôs-se ao impulso esquerdista pelo sufrágio universal. Como disse o historiador Jacob Burckhardt na época, lamentando a expansão do sufrágio na Suíça:

A palavra liberdade soa rica e bonita, mas ninguém que não tenha visto e experimentado a escravidão sob as massas barulhentas, chamadas de “povo”, visto com seus próprios olhos e suportado a agitação civil deve pronunciá-la... Eu sei demais história para esperar qualquer coisa do despotismo das massas, além de uma futura tirania, que significará o fim da história.

A terceira onda de reação começou no final do século XIX, quando os partidos trabalhistas e socialistas ganharam poder e influência. Mas ela realmente entrou em ação em meados do século XX, quando os partidos da classe trabalhadora ganharam as eleições em toda a Europa e democratizaram a economia ao construir o estado de bem-estar, institucionalizar a voz dos sindicatos e, às vezes, socializar setores da economia.

Esta última onda reacionária - contra a democracia econômica - teve muito mais sucesso do que as duas anteriores. Enquanto os conservadores conseguiram restringir parcialmente quem consegue gozar das liberdades civis básicas e do direito ao voto, o movimento geral tem seguido uma direção progressista.

Não é assim para os direitos econômicos. Os conservadores - auxiliados por seus aliados centristas - mantiveram-se em grande medida na linha das novas disposições do Estado de bem-estar e frequentemente privatizaram as porções restantes. O terreno político mudou tanto para a direita que foi Bill Clinton quem proclamou que "a era do grande governo acabou" e o Novo Partido Trabalhista de Tony Blair foi identificado por Margaret Thatcher como a sua maior conquista. Acima de tudo, Thatchers e Reagans reprimiram e, quando possível, esmagaram a capacidade dos trabalhadores de remodelar a economia.

Uma das razões pelas quais os conservadores tiveram tanto sucesso no front da democracia econômica é porque foram capazes de influenciar um número suficiente de eleitores da classe média e até da classe trabalhadora. Isso atesta a necessidade da esquerda de entender os argumentos e a retórica da direita política - o principal tópico do livro de Hirschman.

A retórica da reação

De acordo com Hirschman, os conservadores usam três “teses” retóricas para defender seus argumentos: a tese da perversidade, a tese da futilidade e a tese do perigo. Ele analisa cada uma por vez, fornecendo exemplos históricos e desconstruindo o raciocínio frequentemente complicado dos conservadores. Lendo Hirschman, torna-se claro que - apesar de suas alegações de um realismo rígido - a argumentação conservadora freqüentemente envolve apelos auto-engrandecedores e desdém por aqueles que consideram indignos.

A tese de perversidade é provavelmente o maior culpado a este respeito, uma vez que os conservadores a tratam como uma visão profunda, apesar do seu histórico dúbio. A tese da perversidade sustenta que, quando a esquerda tenta produzir alguma mudança benéfica, “ocorre exatamente o contrário”; o tiro sai pela culatra, levado pela lei das consequências indesejadas. Em suas Considerações sobre a França, Joseph de Maistre chegou ao ponto de argumentar que Deus puniria os revolucionários franceses e traria a "exaltação do cristianismo e da monarquia".

Joseph de Maistre (1753–1821). (Wikimedia Commons)

Esse tipo de retórica egoísta - Deus não apenas justificará, mas concederá a vitória ao reacionário diante da perversão dos fins progressistas - é, sem dúvida, consoladora para a direita, mas não muito convincente para quem não toma os mesmos sais de banho. Explosões semelhantes acompanharam as aspirações por sufrágio universal, onde pessoas ostensivamente inteligentes julgavam a “maioria em qualquer país” como “tolos” que apenas produziriam a ruína. Aparentemente, só os reacionários possuíam a clarividência necessária para ver como os esforços da pessoa média só poderiam terminar em desastre.

Mas delírios de grandeza não são o mesmo que análise cuidadosa e previsões conservadoras de que o mundo iria desmoronar se as “classes inferiores” ganhassem posição igual e o acesso ao voto se tornasse completamente errado. Além disso, em uma de suas melhores objeções, Hirschman aponta que o argumento dos “efeitos não intencionais” é uma faca de dois gumes. Os programas de bem-estar destinados a reduzir a pobreza também podem reduzir as taxas de criminalidade - mas ninguém chamaria isso de efeito perverso, mesmo que "não intencional".

O segundo argumento que Hirschman analisa é mais sério. É a tese da futilidade, ou a afirmação de que “qualquer suposta mudança [progressista] é, foi, ou será em grande parte, fachada, cosmética e, portanto, ilusória, visto que as estruturas profundas da sociedade permanecem totalmente intocadas”. No final do século XIX e no início do século XX, críticos da expansão democrática como Alexis de Tocqueville e Vilfredo Pareto tentaram mostrar que os triunfos esquerdistas apenas trocaram uma ordem plutocrática por outra. Conservadores modernos como George F. irão criticar o estado de bem-estar social por erguer uma burocracia vasta e ineficiente que permite que os ricos exijam que o governo lhes conceda mais direitos.

Como Corey Robin observou, a tese da futilidade é a mais eficaz contra a esquerda porque carrega mais do que uma semelhança passageira com a análise estrutural que os radicais defendem. Se a ambição é reformular fundamentalmente as instituições e a dinâmica de poder da sociedade, e o melhor que os progressistas podem fazer são alterações superficiais, os conservadores estarão prontoss para declarar: “Eu avisei”. O resultado seria uma sensação de impotência e, bem, futilidade, por parte da esquerda.

E isso é intencional. Como observa Hirschman, a tese da futilidade não é apenas uma descrição do mundo, mas um esforço para produzir os próprios resultados que prevê. Ao proclamar a futilidade da política de esquerda, o crítico conservador espera dissuadir o progressista de sequer entrar no ringue. A melhor coisa que os esquerdistas podem fazer é se livrar das disposições derrotistas e fúteis - e reconhecer que, no longo prazo, a melancolia beneficia o outro lado.

Afinal, a esquerda muitas vezes alcançou exatamente as transformações que os conservadores insistem que são impossíveis. Os primeiros críticos do sufrágio universal advertiram que a democracia inevitavelmente cairia na demagogia ou conflito civil, desestabilizada pelas vulgaridades do que Burke chamou de "multidão suína". Na realidade, não apenas as democracias estabelecidas são as políticas mais estáveis e mais bem governadas do mundo, mas as métricas de liberdade e bem-estar são mais altas em lugares onde o papel das “classes inferiores” é mais institucionalizado: as social-democracias.

Da mesma forma, os críticos da saúde pública alertam que qualquer desvio dos mercados capitalistas de saúde trará resultados terríveis. Mas eles fazem isso em face de décadas de evidências esmagadoras de que a saúde pública produz melhores resultados, cobertura mais equitativa e custos mais baixos. Não é por acaso que o National Health Service (NHS) - a instituição mais socialista do Reino Unido - é a mais popular. Em cada um desses casos (e em outros semelhantes), os esquerdistas optaram por ignorar os opositores e céticos e seguir em frente - e eles estavam certos.

(Alguns comentaristas conservadores, notadamente Thomas Sowell, ligam as teses de perversidade e futilidade alegando que as políticas progressivas são ineficazes e prejudiciais para aqueles que pretendem beneficiar. Mas, como Hirschman aponta, essas afirmações básicas são quase contraditórias, uma vez que a tese da perversidade afirma que é possível para os progressistas mudarem dramaticamente o mundo - apenas para o pior - enquanto a tese da futilidade é muito mais cínica em sua crença de que nada muda fundamentalmente.)

O último tropo reacionário é a tese do perigo. Enquanto as teses de perversidade e futilidade são "notavelmente simples e rasas", a tese do risco tem uma abordagem mais elíptica para combater a política de esquerda, afirmando que uma "mudança proposta, embora talvez desejável em si mesma, envolve custos inaceitáveis ou consequências de um tipo ou outro.” Em outras palavras, nosso desejo de ter tudo prejudica o que já conquistamos.

Embora Hirschman esteja se concentrando na direita, a tese do "perigo" não compete apenas dos reacionários. Políticos contemporâneos de centro-esquerda, de Tony Blair a Hilary Clinton, expressam simpatia pelos objetivos igualitários, embora opinem que quaisquer esforços radicais para alcançá-los resultariam em mal-estar econômico.

Também tem raízes profundas na teoria política liberal: os argumentos de Tocqueville sobre as tensões entre liberdade e igualdade, e a separação de Isaiah Berlin de liberdade "negativa" e "positiva" imediatamente vêm à mente. O apelo da tese do perigo surge da suposição de que não podemos ter muito de uma coisa boa, ou muitas coisas boas, sem colocar em risco outra coisa. Isso leva a um derrotismo semelhante à tese da futilidade, mas mais melancólico do que cínico em seu anseio por otimismo que nunca pode ser realizado sem perigo.

A tese do perigo deriva seu poder retórico por meio da insistência de que uma reforma ou instituição valorizada está sob ameaça. Por exemplo, as Reflexões de Edmund Burke sobre a Revolução na França afirma que os revolucionários trocaram um monarca modesto por violência e caos.

Edmund Burke (1729-97). (Wikimedia Commons)

Mas isso é menos convincente do que os reacionários pensam, por dois motivos. Em primeiro lugar, como Hirschman aponta, se o artifício e a sabedoria humanos trouxeram alguma melhoria para a sociedade por meio de uma reforma ou instituições anteriores, não há razão para não podermos fazê-lo novamente. Em segundo lugar - e aqui Hirschman poderia ter defendido seu ponto com mais firmeza - o risco de colocar em perigo uma realização estimada apenas ressoa se estivermos satisfeitos com ela.

Muitos liberais clássicos contemporâneos lamentam como os progressistas dessacralizam os heroicos Pais Fundadores dos Estados Unidos e sua sagrada Constituição, e temem que, no zelo pela mudança, a esquerda minará uma ordem constitucional de longa duração. Mas a Constituição americana é um documento profundamente falho, antes de mais nada - repleto de características antidemocráticas que prolongaram a existência da escravidão - e continua a dar frutos podres até hoje. Se a consequência de questionar uma constituição aristocrática é colocarmos em risco as qualidades idólatras a ela associadas, acho que devemos no comprometer com isso.

A direita está errada

Como qualquer esquema ou tipologia, a "retórica da reação" de Hirschman é necessariamente simplificada. Os pensadores conservadores mais impressionantes e criativos desenvolveram rodeios e fusões mais complexas dessas teses.

Ainda assim, ao alcançar suas aljavas retóricas, os conservadores na maioria das vezes agarram as flechas da perversidade, do perigo e da futilidade para emprestar um verniz de profundidade e apelo estético aos arranjos sociais que muitas pessoas rejeitariam de outra forma. Muitos desses arranjos são agora tão indefensáveis que você vê conservadores correndo por aí afirmando que foram críticos desde o início, como com a recente tentativa de reformular o conservadorismo como uma defesa dos direitos liberais contra tiranos despertos e da democracia contra vendedores ambulantes fraudulentos.

Isso deve dar à esquerda a confiança de que, even if the arc of history doesn't inevitably bend our way, nossas ideias convencerão mais pessoas no longo prazo. E isso porque são as ideias certas.

Sobre o autor

Matt McManus é professor na Universidade de Calgary. Ele é autor de The Rise of Post-Modern Conservatism e Myth, the coauthor of Mayhem: A Leftist Critique of Jordan Peterson, e editor de Liberalism and Socialism: Mortal Enemies or Embittered Kin?.

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