24 de dezembro de 2021

Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você

Em sua forma mais radical, o ensinamento cristão é a condenação de um mundo explorado pelos ricos – e uma exortação para lutar pela libertação dos pobres e oprimidos.

Grace Blakeley


Ilustração de Scott Balmer

Os cristãos parecem não ter mais muito espaço na esquerda — e aqueles que ainda restam raramente falam abertamente sobre sua fé. No entanto, como Tony Benn frequentemente apontava, existe uma longa história do que ele chamava de socialismo cristão, uma corrente com a qual simpatizava profundamente, apesar de não se identificar como cristão.

E sempre que falo sobre como minha própria espiritualidade influencia minha política, muitos outros se manifestam dizendo que também foram inspirados a se envolver na militância socialista por razões semelhantes — mesmo que não destaquem esse aspecto de sua identidade política em círculos militantes. Essa tensão entre a visão generalizada na esquerda de que a Igreja muitas vezes representa uma força regressiva na sociedade britânica e a fé cristã profundamente arraigada de muitos militantes de esquerda é muito real — e suspeito que seja uma tensão que não se limita à minha própria Igreja Anglicana.

As raízes da compreensão de Tony Benn sobre o socialismo cristão residem na sua identificação da profunda divisão que sempre existiu entre as instituições religiosas, enquanto bastiões do status quo, e a promessa revolucionária da espiritualidade cristã — melhor exemplificada nos modos de vida comunistas praticados pelos primeiros cristãos. Os ensinamentos de Jesus encontraram forte resistência perante as autoridades religiosas da época precisamente porque a ideia de amor radical, que se encontra na base do cristianismo — e, de fato, da maioria das grandes religiões — é uma afronta à religião organizada, que muitas vezes se preocupa mais com questões de poder.

Conservadorismo cristão

A Igreja Anglicana é, sem dúvida, um bastião do status quo na sociedade britânica. A Igreja da Inglaterra é a décima terceira maior proprietária de terras do país; possui mais de 40 mil hectares de terra, avaliados em mais de 2 bilhões de libras. Justin Welby, o atual líder da Igreja da Inglaterra, é um ex-aluno de Eton e graduado pela Universidade de Cambridge, que passou o início de sua carreira trabalhando na indústria petrolífera. Sua chefe é, naturalmente, a Rainha. Isso não significa que a Igreja não faça nada de bom. Os fiéis costumam ser alguns dos primeiros voluntários em centros de distribuição de alimentos, centros para jovens e projetos para pessoas em situação de rua. E o próprio Welby já fez campanha sobre questões como a relação entre austeridade e o uso de bancos de alimentos, sonegação de impostos e imigração. Mas a postura voluntarista da Igreja prioriza a filantropia e campanhas pontuais em detrimento de reformas estruturais que poderiam, de fato, oferecer soluções para esses desafios.

E há muita verdade na ideia de que a Igreja Anglicana é o Partido Conservador em oração. Em 2017, 58% dos membros da Igreja da Inglaterra votaram nos Conservadores. Quando fui levada à igreja ainda jovem, frequentemente me perguntava como alguém que se dizia cristão poderia justificar votar no Partido Conservador. Recebi diversas explicações tímidas sobre a necessidade de manter política e fé separadas, ou sobre a diferença entre praticar o amor e a tolerância na própria vida e tentar construir uma sociedade baseada em princípios cristãos, que, em um mundo imperfeito, inevitavelmente descambaria para o totalitarismo.

Nos Estados Unidos, onde pode ser ainda mais difícil entender como eleitores republicanos, defensores do porte de armas e negacionistas das mudanças climáticas, podem se declarar cristãos, os evangélicos estiveram no centro do movimento para eleger Donald Trump. Uma das vertentes mais importantes desse movimento é a chamada “teologia da prosperidade”, que forneceu uma base ideológica para a direita religiosa nos Estados Unidos. Seus adeptos sustentam que a riqueza é uma bênção de Deus que pode ser acumulada com base em expressões de fé ou doações a uma determinada igreja, dando grande importância à Parábola dos Talentos encontrada nos evangelhos de Lucas e Mateus.

Mas, embora essa doutrina seja predominantemente estadunidense, o conservadorismo cristão está longe de ser um fenômeno exclusivo dos EUA. Ao conversar com cristãos praticantes em países ricos, percebe-se que eles frequentemente estão entre os primeiros a defender o status quo, ao mesmo tempo que expressam compaixão por suas vítimas. Nesse contexto, a fé cristã se torna, nas palavras de Tony Benn, uma “injunção generalizada dirigida aos ricos e poderosos para que expressem seu amor sendo bons e gentis; e aos pobres para que retribuam esse amor sendo pacientes e submissos”. Não é de se admirar que as pessoas vejam cada vez mais o cristianismo como uma mistura confusa de contradições e hipocrisia.

A prática e a pregação

Mas a hipocrisia da Igreja revela sua natureza dual. Por um lado, a Igreja é uma instituição que funciona como um centro de conexões glorificado para a elite britânica e, historicamente, como uma forma de exigir obediência da maioria da população sob supostos pretextos éticos. Por outro lado, a vida e os ensinamentos de Jesus nos encorajam a questionar constantemente a autoridade arbitrária, a priorizar o cuidado mútuo em detrimento da competição e a exaltar tanto a natureza quanto a vida humana como sagradas, em oposição a uma sociedade que as trata como descartáveis.

É claro que o interesse de classe puro e simples se sobrepõe à religião na maioria das vezes — da mesma forma que também prevalece sobre a ideologia. Liberais fervorosos frequentemente sacrificam seu suposto compromisso com a liberdade de expressão quando se trata de reprimir as atividades dos sindicatos; e cristãos ricos facilmente se esquecem das passagens bíblicas em que Jesus fala sobre a influência corruptora da riqueza na alma humana.

Mas o fato de a classe social poder se sobrepor à ideologia não significa que a ideologia seja irrelevante. A teoria liberal fornece um conjunto de padrões pelos quais podemos avaliar as conquistas do liberalismo na prática — uma comparação que revela as profundas deficiências do mundo em que vivemos. Um mundo com liberdade de expressão e mercados genuinamente livres seria muito diferente daquele em que vivemos, onde o protesto é criminalizado enquanto as grandes empresas e instituições financeiras saem impunes de suas transgressões.

Da mesma forma, observar que a Igreja Cristã muitas vezes age como um baluarte do status quo não deve nos impedir de notar a enorme lacuna que existe entre as práticas diárias da Igreja e a natureza radical dos ensinamentos cristãos. Quando conversei com o Dr. Cornel West no meu podcast A World to Win [Um Mundo a Ganhar], tivemos uma longa discussão sobre o papel do cristianismo no movimento socialista. Ele falou sobre como sempre se viu como “um cristão revolucionário, no sentido do legado de Martin Luther King e Fannie Lou Hamer”. Ele reconheceu as críticas à Igreja Cristã feitas por grupos como os Panteras Negras, bem como as críticas às próprias escrituras — particularmente “elementos da Bíblia Hebraica sobre genocídio e patriarcado”, que, segundo ele, devem ser mantidos à distância do restante dos ensinamentos de Jesus.

Mas, segundo o Dr. West, o fundamento do cristianismo é a ideia de que “a forma mais elevada de ser humano é espalhar a bondade amorosa”. Essa compreensão do cristianismo como um projeto de “libertação e emancipação” — do tipo buscado por Moisés — exige que façamos “uma crítica profunda não apenas ao Faraó, mas também ao sistema que o mantinha no poder”.

E esses elementos radicais também podem ser encontrados nas próprias escrituras. West cita a expulsão dos mercadores do templo por Jesus:

Quem são os verdadeiros magnatas do império estadunidense? Wall Street, Pentágono, Casa Branca, Congresso, Hollywood, todos no mesmo lugar. Harvard, Yale, Princeton, todos no mesmo lugar. Jesus os expulsa a todos. E é por isso que ele foi crucificado pelo império mais poderoso da época. Então, nesse sentido, há o que eu chamo de uma faísca profética naquela escritura hebraica; vinda de Jesus, de Maomé à sua maneira profética, que leva a um Malcolm X, por exemplo.

Essa visão do cristianismo teria encontrado eco em Tony Benn, que via a Bíblia como uma história de luta entre “os reis que detinham o poder e os profetas que pregavam a justiça”. “Essa interpretação radical da mensagem de fraternidade e sua clara agitação anti-establishment”, argumentava ele, “surgiu repetidas vezes ao longo de nossa história”, desde a Revolta Camponesa, passando pelos Diggers, até os metodistas que ajudaram a formar o Partido Trabalhista.

Cristianismo revolucionário

É claro que não estou argumentando que seja necessário ser cristão, ou mesmo ter qualquer fé, para ser socialista. Concordo com Tony Benn que os socialistas podem aprender muito com os ensinamentos de Jesus, o que nos permite expor uma elite que se reveste de religiosidade, enquanto sequer tenta viver como Jesus viveu. O próprio Jesus fez exatamente isso com os fariseus, que o viam como uma ameaça ao seu poder e prestígio: ele usou seu conhecimento incomparável das escrituras hebraicas para encurralá-los, expondo sua hipocrisia para todos verem.

Esse argumento é corroborado pela mensagem do próprio Dr. Martin Luther King Jr., cujo legado radical é frequentemente ignorado por uma elite que busca cooptar sua vida. Talvez o elemento mais relevante dos ensinamentos do Dr. King hoje seja sua observação de que:

O poder sem amor é imprudente e abusivo, e o amor sem poder é sentimental e anêmico. O poder, em sua melhor forma, é o amor implementando as exigências da justiça, e a justiça, em sua melhor forma, é o poder corrigindo tudo o que se opõe ao amor. Os socialistas frequentemente se dirigem ao mundo com uma mensagem de amor que ignora as realidades do poder; e se dirigem uns aos outros com uma orientação voltada para o poder que ignora nossa mensagem de amor.

A fé cristã oferece tanto um conjunto de ensinamentos que podem expor a hipocrisia dos poderosos, quanto um conjunto de práticas a serem observadas em nossas interações com o mundo e uns com os outros. Só por isso, já vale a pena dedicar alguma atenção à vida e à obra de Jesus.

Colaborador

Grace Blakeley escreve na Tribune Magazin e é apresentadora do podcast semanal A World to Win.

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