Carta é clara quanto aos princípios regentes da política externa brasileira
Ricardo Lewandowski
A partir do Congresso de Viena (1814-15), presidido pelo habilidoso estadista austríaco Klemens von Metternich, no qual foram redesenhadas as fronteiras da Europa após a derrota de Napoleão Bonaparte, bem como lançadas as bases do direito internacional moderno, firmou-se o entendimento de que as relações diplomáticas entre as nações devem constituir uma política de Estado, não de governo, dado o seu impacto intergeracional.
Nesse contexto, surgiu uma nova disciplina acadêmica voltada ao estudo do potencial estratégico dos distintos países, tendo em conta os respectivos atributos físicos e demográficos. Um de seus primeiros cultores foi o geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), que formulou a teoria do Lebensraum, segundo a qual a cada povo corresponderia um "espaço vital", indispensável para a satisfação de suas necessidades básicas, mais tarde empregada para justificar a expansão territorial da Alemanha nazista.
Mas foi o cientista político sueco Rudolf Kjellén (1864-1922), seguidor das ideias de Ratzel, quem batizou essa disciplina de geopolítica, com a qual pretendeu estabelecer uma relação entre o poder estatal e suas condicionantes geográficas.
Tal abordagem foi retomada durante a Guerra Fria, deflagrada depois do término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), inspirando o planejamento estratégico das duas potências então dominantes, os Estados Unidos e a União Soviética, que acabou resultando na divisão do mundo em dois blocos antagônicos, permanentemente preparados para um enfrentamento bélico, convencional ou nuclear.
O Brasil, não obstante integrasse o bloco antissoviético, procurou cultivar um pensamento geopolítico próprio, cujos principais expoentes foram os militares Mário Travassos, Golbery do Couto e Silva e Carlos de Meira Mattos. A sua sistematização, contudo, somente ocorreu com a criação da Escola Superior de Guerra (1949), responsável pela elaboração de uma doutrina de segurança nacional, supostamente autóctone, mas fortemente atrelada aos interesses estadunidenses, que serviu de respaldo ideológico às ações governamentais durante o regime militar (1964-1985).
O fim da União Soviética, marcado pela queda do Muro de Berlim (1989), e o surgimento de novos atores no plano internacional, inclusive não estatais, deram origem a um mundo multipolar, suscitando outras preocupações estratégicas —além daquelas de cunho estritamente castrense, com destaque para a preservação dos recursos naturais, o combate às emergências sanitárias, a defesa contra catástrofes climáticas, a prevenção de crises econômicas e a proteção do ambiente cibernético.
Os elaboradores da nossa atual Constituição, quiçá antevendo o surgimento desses e de outros desafios igualmente complexos, decidiram perenizar, logo no início de seu texto, os princípios regentes da política externa brasileira, a saber: independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao racismo e ao terrorismo e concessão de asilo político. Explicitaram, ainda, que ela deverá "buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina".
Como se vê, os constituintes não deixaram nenhuma margem para que os chefes de governo, eleitos a cada quatro anos, entretenham idiossincrasias pessoais ou defendam pautas extravagantes na condução das relações exteriores do país, sob pena de incorrerem em flagrante inconstitucionalidade.
Sobre o autor
Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário