Editorial
Choldraboldra
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| Hanna Barczyk |
A China entrou definitivamente no mapa do poder mundial, mas não o fez pela trilha tradicional do imperialismo militar clássico. Seu caminho tem sido outro: uma geopolítica do desenvolvimento, alicerçada na soberania produtiva digital-industrial e na construção de interdependências econômicas capazes de deslocar o eixo de gravidade do sistema internacional. Se o mundo caminha para o multipolarismo, a China está decidida a ser o maior dos polos — mas em um modelo que pretende tornar a guerra sistêmica improvável, não inevitável.
Esse percurso se expressa em duas frentes sincronizadas. Internamente, o país investe pesado no controle das bases tecnológicas e industriais do século XXI: infraestrutura digital, supercomputação, inteligência artificial, semicondutores, plataformas próprias, indústria automatizada e integração logística continental. Não são setores tratados como nichos de mercado, mas como colunas de segurança nacional e dissuasão produtiva. A potência que não domina suas redes, seus dados e sua indústria avançada torna-se vulnerável. A China entendeu isso cedo e construiu — com planejamento estatal, capital orientado e escala continental — um poder de fogo econômico-tecnológico que funciona como pilar de soberania e também como instrumento geopolítico indireto de dissuasão.
Externamente, a aposta é igualmente clara: integrar o Sul Global em uma arquitetura de parcerias que alterem o cálculo estratégico da guerra. A iniciativa chinesa não é criar uma aliança militar à moda da OTAN, mas formar um cinturão de interdependência produtiva no qual Ásia, África, América Latina e Oriente Médio encontrem crédito, infraestrutura, tecnologia, mercado consumidor e capacidade industrial para escapar da condição histórica de periferias subordinadas. Se a Pax Americana se construiu pela combinação de bases militares, dólar e FMI, a Pax Chinesa em gestação tenta se construir pelo 5G, pelos portos, pelas ferrovias, pelos bancos de desenvolvimento, pelos pagamentos digitais, pelas parcerias energéticas e pelas capacidades industriais complementares.
Isso não significa ausência de confronto. A rivalidade com os EUA e a OTAN é estrutural porque envolve o choque de hegemonias em disputa e a transição de primazia do Atlântico para a Eurásia-Pacífico. Washington enxerga ascensão chinesa como ameaça ao seu comando global; Pequim enxerga o cerco euro-atlântico como tentativa de impedir sua autonomia tecnológica, limitar sua projeção econômica e manter intacta a ordem unipolar do pós-Guerra Fria. Essa fricção não é episódica: é sistêmica, inscrita na própria reorganização do poder mundial.
A questão decisiva, porém, não é se haverá competição intensa — essa já existe —, mas se essa competição culminará em guerra direta sistêmica. O modelo chinês trabalha justamente para que a correlação de forças siga uma lógica de custo proibitivo à guerra. E ela depende de três variáveis inseparáveis: dissuasão militar, interdependência econômica e base produtiva soberana.
Militarmente, a China investe em capacidades defensivas e dissuasórias porque sabe que a paz em um mundo multipolar não nasce do pacifismo moral, mas da impossibilidade material de vitória rápida no confronto entre grandes potências nucleares e hipertecnológicas. A dissuasão evita aventuras. Ao mesmo tempo, a China aprofunda interdependências comerciais, financeiras e produtivas com dezenas de países do Sul Global para criar um cenário em que o conflito armado total se tornaria economicamente suicida para todos os lados. A guerra sistêmica destruiria as próprias cadeias que garantem prosperidade e legitimidade global ao país.
O cálculo chinês é paradoxal e sofisticado: para evitar a guerra, ela precisa tornar-se central no desenvolvimento do Sul; para tornar-se central no desenvolvimento do Sul, ela precisa demonstrar força militar dissuasória suficiente para que nenhum cerco militar externo reverta a equação; para sustentar essa equação, precisa dominar suas bases produtivas digitais e industriais sem permitir que elites privadas internas assumam o volante político da estratégia nacional.
O desafio é monumental e histórico. A China não está tentando abolir a competição com o Ocidente; está tentando evitar que a competição histórica se converta em destino militar inevitável. Quer disputar mercados, patentes, cadeias, padrões tecnológicos e influência geopolítica. Não quer — ou pelo menos tenta continuamente barrar — que essa disputa vire uma conflagração armada sem retorno.
O que definirá o longo prazo não é a narrativa moral de nenhum lado, mas a correlação de fatos materiais: a dissuasão militar impedindo guerras de preferência, a interdependência econômica impedindo que a guerra seja racional, e a integração do Sul Global em um polo de desenvolvimento alternativo impedindo que o mundo volte a se organizar em um eixo único capaz de impor pela força seus termos.
Se a aposta chinesa dará certo em toda sua ambição histórica, não há garantias. Mas há um fato evidente: ela entendeu que o novo centro do poder não é apenas quem tem o maior exército, mas quem tem a maior capacidade de desenvolver sem ser capturado e competir sem destruir o planeta ou implodir o sistema em guerra direta. Essa é a geopolítica que a China se decidiu a inventar: vencer o futuro, não a guerra. Competir o século, não incendiá-lo. Construir interdependência, não submissão. E provar ao mundo que desenvolvimento pode ser o nome da dissuasão mais eficaz de todas.
O resto, como sempre na história das nações, não será decidido por discursos — mas por quem é capaz de transformar soberania produtiva em paz estratégica e multipolarismo em cooperação competitiva, não em ruína armada coletiva. Nesse ponto, a China joga pesado. Mas o que está em jogo, ela repete na prática: um mundo em que o desenvolvimento torne a guerra improvável. Mesmo que a competição torne tudo mais difícil.
Externamente, a aposta é igualmente clara: integrar o Sul Global em uma arquitetura de parcerias que alterem o cálculo estratégico da guerra. A iniciativa chinesa não é criar uma aliança militar à moda da OTAN, mas formar um cinturão de interdependência produtiva no qual Ásia, África, América Latina e Oriente Médio encontrem crédito, infraestrutura, tecnologia, mercado consumidor e capacidade industrial para escapar da condição histórica de periferias subordinadas. Se a Pax Americana se construiu pela combinação de bases militares, dólar e FMI, a Pax Chinesa em gestação tenta se construir pelo 5G, pelos portos, pelas ferrovias, pelos bancos de desenvolvimento, pelos pagamentos digitais, pelas parcerias energéticas e pelas capacidades industriais complementares.
Isso não significa ausência de confronto. A rivalidade com os EUA e a OTAN é estrutural porque envolve o choque de hegemonias em disputa e a transição de primazia do Atlântico para a Eurásia-Pacífico. Washington enxerga ascensão chinesa como ameaça ao seu comando global; Pequim enxerga o cerco euro-atlântico como tentativa de impedir sua autonomia tecnológica, limitar sua projeção econômica e manter intacta a ordem unipolar do pós-Guerra Fria. Essa fricção não é episódica: é sistêmica, inscrita na própria reorganização do poder mundial.
A questão decisiva, porém, não é se haverá competição intensa — essa já existe —, mas se essa competição culminará em guerra direta sistêmica. O modelo chinês trabalha justamente para que a correlação de forças siga uma lógica de custo proibitivo à guerra. E ela depende de três variáveis inseparáveis: dissuasão militar, interdependência econômica e base produtiva soberana.
Militarmente, a China investe em capacidades defensivas e dissuasórias porque sabe que a paz em um mundo multipolar não nasce do pacifismo moral, mas da impossibilidade material de vitória rápida no confronto entre grandes potências nucleares e hipertecnológicas. A dissuasão evita aventuras. Ao mesmo tempo, a China aprofunda interdependências comerciais, financeiras e produtivas com dezenas de países do Sul Global para criar um cenário em que o conflito armado total se tornaria economicamente suicida para todos os lados. A guerra sistêmica destruiria as próprias cadeias que garantem prosperidade e legitimidade global ao país.
O cálculo chinês é paradoxal e sofisticado: para evitar a guerra, ela precisa tornar-se central no desenvolvimento do Sul; para tornar-se central no desenvolvimento do Sul, ela precisa demonstrar força militar dissuasória suficiente para que nenhum cerco militar externo reverta a equação; para sustentar essa equação, precisa dominar suas bases produtivas digitais e industriais sem permitir que elites privadas internas assumam o volante político da estratégia nacional.
O desafio é monumental e histórico. A China não está tentando abolir a competição com o Ocidente; está tentando evitar que a competição histórica se converta em destino militar inevitável. Quer disputar mercados, patentes, cadeias, padrões tecnológicos e influência geopolítica. Não quer — ou pelo menos tenta continuamente barrar — que essa disputa vire uma conflagração armada sem retorno.
O que definirá o longo prazo não é a narrativa moral de nenhum lado, mas a correlação de fatos materiais: a dissuasão militar impedindo guerras de preferência, a interdependência econômica impedindo que a guerra seja racional, e a integração do Sul Global em um polo de desenvolvimento alternativo impedindo que o mundo volte a se organizar em um eixo único capaz de impor pela força seus termos.
Se a aposta chinesa dará certo em toda sua ambição histórica, não há garantias. Mas há um fato evidente: ela entendeu que o novo centro do poder não é apenas quem tem o maior exército, mas quem tem a maior capacidade de desenvolver sem ser capturado e competir sem destruir o planeta ou implodir o sistema em guerra direta. Essa é a geopolítica que a China se decidiu a inventar: vencer o futuro, não a guerra. Competir o século, não incendiá-lo. Construir interdependência, não submissão. E provar ao mundo que desenvolvimento pode ser o nome da dissuasão mais eficaz de todas.
O resto, como sempre na história das nações, não será decidido por discursos — mas por quem é capaz de transformar soberania produtiva em paz estratégica e multipolarismo em cooperação competitiva, não em ruína armada coletiva. Nesse ponto, a China joga pesado. Mas o que está em jogo, ela repete na prática: um mundo em que o desenvolvimento torne a guerra improvável. Mesmo que a competição torne tudo mais difícil.

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