28 de dezembro de 2025

América Latina como tabuleiro: a rivalidade EUA-China e o retorno da geopolítica dura

Entre a contenção e a multipolaridade, a América Latina ressurge como espaço estratégico da disputa entre Washington e Pequim, revelando os limites da hegemonia histórica dos Estados Unidos no hemisfério.

Editorial

Choldraboldra

Jon Benedict

A América Latina voltou a ocupar um lugar central no tabuleiro da política internacional. Não por iniciativa própria, mas porque se tornou um dos espaços privilegiados da rivalidade estratégica entre Estados Unidos e China. O avanço chinês na região — por meio de comércio, investimentos, financiamento e diplomacia — tem sido interpretado em Washington não apenas como um fenômeno econômico, mas como um desafio direto à hegemonia histórica norte-americana no hemisfério ocidental. O resultado é a reativação de uma lógica geopolítica clássica, marcada por contenção, pressão e disputa por influência.

Desde o início do século XXI, a presença chinesa na América Latina cresceu de forma contínua e estrutural. A China tornou-se um dos principais parceiros comerciais de vários países da região, especialmente exportadores de commodities agrícolas, minerais e energéticas. Além disso, bancos estatais chineses passaram a oferecer crédito em larga escala, frequentemente em condições mais flexíveis do que aquelas impostas por instituições financeiras ocidentais. Esse movimento não se limitou à economia: envolveu acordos diplomáticos, cooperação tecnológica, projetos de infraestrutura e participação em fóruns multilaterais.

Para os Estados Unidos, essa expansão representa uma ruptura com uma ordem regional construída ao longo de mais de um século. Desde a Doutrina Monroe, formulada no século XIX, a América Latina foi concebida como uma área de influência prioritária, onde a presença de potências extra-regionais deveria ser limitada ou desencorajada. Ainda que o discurso contemporâneo evite referências explícitas a essa doutrina, sua lógica permanece viva na prática da política externa norte-americana. A China, ao se consolidar como ator relevante na região, passou a ser vista como uma potência intrusa em um espaço historicamente controlado por Washington.

A rivalidade sino-americana na América Latina não se dá, porém, nos moldes clássicos da Guerra Fria. Não se trata de uma disputa ideológica direta, nem de uma confrontação militar aberta. A China projeta poder principalmente por meio da economia: comércio, investimentos, crédito e cooperação técnica. Sua estratégia tem sido pragmática, focada em garantir acesso a recursos naturais, diversificar rotas de abastecimento e ampliar mercados para suas empresas. Ao mesmo tempo, Pequim evita, ao menos oficialmente, interferir nos arranjos políticos internos dos países parceiros, o que contrasta com a longa tradição intervencionista dos Estados Unidos na região.

É justamente essa diferença de abordagem que preocupa Washington. Ao oferecer alternativas concretas ao financiamento ocidental e ao reduzir a dependência exclusiva do mercado norte-americano, a China amplia a margem de manobra dos países latino-americanos. Essa autonomia relativa é percebida pelos Estados Unidos como uma perda de influência estratégica. A reação tem sido uma combinação de retórica de segurança, pressões diplomáticas e tentativas de reengajamento econômico, muitas vezes acompanhadas de alertas sobre os “riscos” da presença chinesa.

Nesse contexto, países como a Venezuela assumem um papel simbólico e estratégico. A aproximação entre Caracas e Pequim — assim como com Moscou — é frequentemente interpretada em Washington como um exemplo extremo do que acontece quando governos latino-americanos escapam da órbita norte-americana. As sanções econômicas, o isolamento diplomático e o discurso de “ameaça à segurança regional” podem ser lidos não apenas como respostas a questões internas venezuelanas, mas também como sinais de uma estratégia mais ampla de contenção da influência chinesa no hemisfério.

O problema é que essa lógica de rivalidade tende a reduzir a América Latina a um espaço passivo de disputa entre grandes potências. Em vez de reconhecer a região como um conjunto de sociedades com interesses próprios, Washington frequentemente a trata como um terreno a ser defendido ou reconquistado. Essa postura ignora o fato de que a aproximação com a China não decorre apenas de alinhamentos ideológicos, mas de necessidades econômicas concretas: infraestrutura deficiente, escassez de financiamento, busca por mercados e desejo de diversificação de parceiros.

Ao insistir em uma visão de soma zero — na qual o avanço chinês equivale automaticamente a uma derrota norte-americana — os Estados Unidos correm o risco de aprofundar a desconfiança regional. Muitos países latino-americanos não veem a China como substituta dos EUA, mas como complemento. O problema surge quando Washington interpreta essa diversificação como traição estratégica, respondendo com pressões que lembram práticas do passado e reforçam ressentimentos históricos.

A rivalidade EUA–China na América Latina, portanto, revela mais sobre a crise da hegemonia norte-americana do que sobre uma suposta ameaça chinesa imediata. A presença de Pequim expõe as limitações de um modelo de relacionamento baseado na assimetria, na condicionalidade e, muitas vezes, na coerção. Em vez de tentar expulsar a China da região — tarefa improvável e potencialmente desestabilizadora — os Estados Unidos teriam mais a ganhar ao repensar sua própria relação com a América Latina, oferecendo cooperação econômica real, respeito à soberania e projetos de desenvolvimento de longo prazo.

Se a região continuar sendo tratada apenas como um tabuleiro da rivalidade global, o resultado será a intensificação das tensões e a redução das possibilidades de um desenvolvimento autônomo. A multipolaridade, goste-se ou não, já é um dado da realidade. A questão central não é se a China estará presente na América Latina, mas em que condições e com que grau de autonomia os países latino-americanos poderão navegar entre as grandes potências. Ignorar isso é insistir em uma geopolítica do passado para enfrentar um mundo que já mudou.

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