Antonio Lavareda
Doutor em ciência política e professor colaborador da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), é presidente de honra da Abrapel (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais)
[RESUMO] Cientista político rebate críticas às pesquisas em artigo de Ronaldo Lemos, diz que institutos estão atualizados com técnicas modernas, reafirma que levantamentos não são prognósticos e destaca fatores impossíveis de estimar de forma precisa, como a abstenção dos mais pobres, que influem no resultado das urnas.
*
Os intelectuais públicos generalistas têm o direito e o dever de se pronunciar sobre os temas candentes que empolgam a sociedade, independentemente da maior ou menor familiaridade que tenham com o objeto em questão. Jornalistas também, por obrigação.
Todavia, quando nos deparamos com supostos especialistas, ostentando currículos que aparentemente legitimariam suas assertivas, é importante analisar com lupa a argumentação. Quanto tempo é necessário para alguém se tornar conhecedor qualificado de algo? O pesquisador Malcolm Gladwell respondeu a essa questão.
Segundo ele, não é obrigatório ter um diploma na área, mas 10 mil horas de dedicação a um tema são imprescindíveis para se conseguir isso. Na minha experiência pessoal, formado em quatro áreas das ciências humanas, levei alguns anos estudando neurociência antes de publicar artigos e livros conectando-a com a política e a comunicação, um exercício do que Edward Wilson chamou de "consiliência".
Todavia, quando nos deparamos com supostos especialistas, ostentando currículos que aparentemente legitimariam suas assertivas, é importante analisar com lupa a argumentação. Quanto tempo é necessário para alguém se tornar conhecedor qualificado de algo? O pesquisador Malcolm Gladwell respondeu a essa questão.
Segundo ele, não é obrigatório ter um diploma na área, mas 10 mil horas de dedicação a um tema são imprescindíveis para se conseguir isso. Na minha experiência pessoal, formado em quatro áreas das ciências humanas, levei alguns anos estudando neurociência antes de publicar artigos e livros conectando-a com a política e a comunicação, um exercício do que Edward Wilson chamou de "consiliência".
Urnas eletrônicas armazenadas na 1ª Zona Eleitoral de São Paulo - Rubens Cavallari/Folhapress |
Por isso, a mim, que frequentemente recuso dar entrevistas sobre assuntos que não domino, mesmo da ciência política, por respeito ao público e por honestidade, causa espécie ver personagens investirem contra a reputação de profissionais e empresas sem a menor autoridade intelectual para fazê-lo.
Ronaldo Lemos, um jovem talentoso advogado, de boa bibliografia na área de tecnologia da informação, com o entusiasmo e a pressa desse admirável mundo novo que fascina a todos e particularmente parece inebriá-lo, atirou-se sem hesitação a uma leitura fulminante das pesquisas eleitorais brasileiras.
Nas páginas da Ilustríssima (9.out), surfou com raro senso de oportunidade a onda da perplexidade e das críticas aos institutos após a eleição de 2 de outubro. Baseado no que supostamente praticam as empresas desse mercado nos EUA, desferiu em estilo pós-moderno uma sequência impressionante de golpes a laser.
Não economizou juízos acerbos sobre a suposta obsolescência do setor. Denunciou a "inépcia" absoluta, que levou "a erros clamorosos", apontando o "esgotamento" do modelo, alimentado pela "nostalgia" que faz essa atividade moribunda.
Não se furtou também a apontar caminhos para uma eventual ressurreição: abraçar a sociologia computacional e a abordagem qualitativa. Tampouco perdeu tempo, aproveitando para "empossar" um apadrinhado, um novo farol, a AtlasIntel, única a "acertar em cheio" o resultado da eleição.
Ocorre que o atleta gnosiológico se jogou na piscina errada. Pior, ela estava vazia.
Desde o primeiro turno das eleições deste ano, pesquisas e institutos têm estado sob ataque das mais diversas fontes, que, infelizmente, não se resumem apenas a críticos em busca de holofote. Vão perigosamente além.
Em uma conjuntura de tensões exacerbadas, pesquisas foram contestadas antes e depois da votação. No âmbito do Executivo, uma investigação foi requerida à Polícia Federal pelo Ministério da Justiça. No Congresso, foi deflagrada uma cruzada obscurantista, com vasto arsenal: CPI, audiência pública e projeto de lei criminalizando a atividade.
Qual a principal "evidência" do "erro" dos institutos? A alegada discrepância entre os números apresentados nas pesquisas e o resultado das urnas.
Então, comecemos pelo que ocorreu no primeiro turno da eleição presidencial. No quadro 1, que elaboramos a partir dos dados oficiais do TSE e dos levantamentos tal como divulgados pelos meios de comunicação, permite a fácil compreensão das estimativas dos institutos sobre o desempenho dos candidatos no momento da realização das pesquisas, em média 48 horas antes do pleito, e os resultados obtidos pelos presidenciáveis.
Tal comparação exige ser realizada sobre os totais das pesquisas e do eleitorado, uma vez que amostras dos institutos devem ser representativas do total dos eleitores. As intenções de voto e outras opiniões colhidas pretendem ser estimativas da ocorrência das mesmas no universo em questão, ou seja, nos 156,5 milhões de brasileiros inscritos para votar.
No quadro referido, estão os percentuais obtidos por cinco institutos, na ordem em que os divulgaram ao longo do sábado (1º.out), com as intenções de voto sobre o total do universo e, uma vez excluídos os votos brancos, nulos e indecisos, os chamados votos válidos.
Observe-se que não se fazem pesquisas para captar votos válidos, embora esses números passem a ser divulgados pela mídia à medida que se aproxima a eleição, com o intuito de tornar mais fácil a comparação com os dados divulgados pelo TSE. Às vezes, eles se aproximam do resultado oficial, às vezes não, por diferentes fatores.
Dois institutos com percentuais sobre o total absolutamente diferentes em magnitude, um deles estando bastante equivocado, podem ter válidos semelhantes ou mesmo iguais.
O que fica encoberto nos votos válidos? Para sua extração, são utilizados os dados das questões estimuladas, que apresentam os percentuais dos candidatos, mais o percentual de votos em branco e nulos e mais um ou dois por cento de "não sabe", os supostos indecisos.
A partir daí, são excluídas essas duas últimas categorias, recalculados os números e tem-se o que parece uma projeção, baseada na pesquisa, do resultado final. Parece, mas não é.
De onde sairá a abstenção que não foi computada nem declarada? Inevitavelmente, sairá dos contingentes de intenções de voto dos concorrentes. Ela prejudicará igualmente os candidatos? Lógico que não. No Brasil, como na maioria dos países, a abstenção se concentra mais na base da pirâmide social.
Para se ter uma ideia, dos quase 7 milhões de eleitores analfabetos, cerca de 52% não votaram no primeiro turno. Quase metade dos eleitores de Lula tem até fundamental completo. Por isso, eu lembrava no Twitter, na véspera da eleição, que a abstenção precisaria diminuir para aumentar a chance de vitória petista no primeiro turno. Entretanto, ela ainda foi um pouco maior (21%) que em 2018.
De outro lado, nas colunas de totais do quadro, percebe-se sem maior esforço que, em direção contrária às perplexas especulações da noite da eleição e dos momentos seguintes, todas as pesquisas publicadas se aproximaram na margem de erro, ou até coincidiram numericamente, com os 33%, arredondados, da votação de Bolsonaro.
Elas estimaram a mais, porém na margem de erro, todos os concorrentes da terceira via e os nanicos abaixo de 1%. Todavia, todas captaram intenções de voto em Lula entre 7 e 11 pontos acima do voto efetivo (37% arredondados) que ele registrou nas urnas. A explicação para essa distância está na base da última coluna à direita do quadro 1, nos 21% arredondados da abstenção.
Vez por outra aparece algum curioso que pretende dissociar abstenção e pobreza. Os argumentos variam desde a desatualização dos cadastros da Justiça Eleitoral, em razão de problemas na informação dos óbitos pelos cartórios cíveis, até a falta de transferência de títulos para novos municípios de moradia dos eleitores.
As duas coisas naturalmente devem ocorrer, mas nada nem sequer capaz de chegar perto do montante de 32,7 milhões de ausentes. No caso da falta de transferência, o fenômeno também é fruto da pobreza.
Os dados do TSE, apresentados no quadro 3, relativos à abstenção por faixa de escolaridade no primeiro turno, são eloquentes. A correlação entre o não comparecimento e a baixa escolaridade chega a -0.87. Quanto menos escolaridade, mais abstenção.
A diferença entre o topo e as camadas de escolaridade inferior impressiona. Na base (analfabetos), é mais de quatro vezes superior ao topo da pirâmide (curso universitário completo). É impossível negar a realidade. Em um país democrático que adota o voto obrigatório, não se pode naturalizar a ocorrência, eleição após eleição, de uma lamentável "abstenção compulsória" de tamanha proporção.
O que foi dito acima sobre proximidade entre os números revelados às vésperas da eleição e os das urnas não significa desconhecer o principal postulado dessa atividade, indicado no título da minha fala em seminário dirigido a jornalistas em maio deste ano: "Por que pesquisas não podem ser lidas como prognósticos".
No texto, aponto alguns dos fatores que desautorizam o uso para tal fim dos resultados de tais levantamentos. Destaco o papel do voto estratégico, típico de sistemas pluripartidários como o nosso, o voto errático e, sobretudo, a abstenção, a qual nenhum instituto tem condições de estimar razoavelmente, pelo fato de o voto ser obrigatório e os prováveis absenteístas não revelarem essa disposição.
Aliás, mesmo com o voto sendo facultativo nos Estados Unidos, identificar os "likely voters" é uma tarefa difícil para os institutos de lá, cada qual usando uma fórmula diferente e poucas vezes acertando, como observa o jornalista de dados Elliot Morris.
O fenômeno ocorrido neste ano é singular? Não. Aconteceu muitas vezes. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, quando ganhou no primeiro turno em 1994, tinha 48% sobre o eleitorado total na véspera do pleito, mas nas urnas obteve apenas 36,2%. A abstenção foi de 17,8%, e o branco e nulo, com voto ainda em papel, chegaram a 15,5%.
Lula, quando por 1,4 ponto não se sagrou vitorioso no primeiro turno de 2006, marcava 46% sobre o total na véspera, mas nas urnas a abstenção lhe tomou nove pontos, e ele só alcançou 37,1% do total de eleitores naquele momento.
E quanto à escolha de governadores em alguns estados, já que na maioria deles não houve alterações significativas em relação às pesquisas? Neles, as mudanças de última hora foram exatamente isso, movimentos finais que ocorreram após as últimas pesquisas divulgadas. Precisamente como a teoria do voto estratégico supõe: eleitores que utilizam a informação dos últimos levantamentos para alterar seu comportamento.
Em estados como São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Bahia, foi nítido o alinhamento com a disputa nacional, que assumiu polarização recorde, repetindo a morfologia de 2006.
Isso posto, dirijamo-nos à metodologia. Será que está mesmo moribunda como foi apontado? Salvo a pesquisa do Ipespe, telefônica, as demais foram todas presenciais. Dado que os resultados foram muito próximos, é inócuo discutir qualquer diferencial de acuidade entre elas.
E quanto à pesquisa Atlas, única online, que, segundo Ronaldo Lemos, seria o novo padrão-ouro de medição? Mais uma vez, o crítico olhou para o que não viu e não acertou exatamente porque não viu.
O quadro 2 compara os resultados anunciados pela Atlas na véspera da votação com os resultados das urnas. Esqueçamos os votos válidos, pois, como já comentado, as pesquisas captam intenções de voto identificadas em amostras colhidas sobre o total de eleitores, não sobre votos válidos. Assim, eventual proximidade com os números de Lula válidos é apenas coincidência. A comparação necessária é com os números totais.
Lançado o foco na direção correta, o que se constata é que os dados do Atlas, contrariamente ao que a análise ingênua e apressada de Lemos identificou, foram os que mais se distanciaram tanto do número de Lula quanto do de Bolsonaro.
Treze pontos em relação ao primeiro, oito pontos em relação ao segundo. Estamos falando de 20 milhões de votos a mais no primeiro colocado, e 12,5 milhões no segundo. Foi o único instituto a ficar fora da margem de erro no que concerne ao incumbente.
Não que a metodologia online do Atlas esteja errada. Não se trata disso. Ela ainda é apenas inadequada para estudos eleitorais no Brasil, onde um quarto da população não é usuária frequente da internet, onde temos 7 milhões de eleitores analfabetos e 25% da população padece de analfabetismo funcional.
Eu montei em 1999, em companhia de conhecidos cientistas da computação, o primeiro instituto de pesquisa online do Brasil: Diga-me.com. De lá para cá, vários dos institutos criticados em bloco no artigo ora replicado desenvolvem rotineiramente estudos online em segmentos específicos, em geral de classes A, B e C, mas não na base da sociedade.
Isso vai mudar, decerto, mas levará alguns anos. As pesquisas de opinião pública no Brasil, ao contrário de presas à "nostalgia", avançaram no tempo e frequentemente utilizam métodos híbridos, como nos Estados Unidos.
Aliás, por falar no berço das pesquisas e das redes sociais, nenhuma das quatro organizações dos EUA classificadas com grau A+ pela qualidade do seu desempenho no site FiveThirtyEight, de Nate Silver, utiliza metodologia online, embora por lá sejam comuns pesquisas eleitorais com essa metodologia. As quatro operam entrevistas telefônicas com entrevistadores humanos.
Tampouco o uso das ciências sociais computacionais, recomendado por Lemos, é novidade no setor. As redes sociais são vasculhadas pelos institutos. Índices são estabelecidos com base nas suas interações. Levantamentos de tráfego de pessoas e automóveis são realizados por sinais de telefonia celular com uso intensivo de GPS.
Além disso, boa parte dos projetos de pesquisa de mercado dos mesmos institutos que desenvolvem levantamentos eleitorais usa estratégias "double track", associando a investigação do comportamento nas redes à busca das opiniões dos consumidores.
Da mesma forma, a guinada qualitativa sugerida no artigo já ocorreu há muito tempo. Todos os principais institutos contam com departamentos qualitativos, o que parece desconhecido por Lemos, com profissionais de sociologia, psicologia e antropologia conduzindo estudos presenciais e online cujos resultados alimentam hipóteses testadas quantitativamente.
Vai-se além. Eu mesmo tive oportunidade de introduzir anos atrás no país a metodologia quali-quanti, unindo as duas dimensões, por meio de baterias de 200 a 400 entrevistas, com roteiros semiabertos, para pré-teste de comerciais.
Lemos adverte que "só sobreviverão as instituições que sejam mais parecidas com a língua que com os dentes". Esqueceu-se, contudo, que a sabedoria elementar recomenda evitar, pelo uso ansioso do verbo irrefletido, que os dentes mordam a língua.
Por fim, o que explica esse mergulho desajeitado em um universo com o qual demonstra tão pouca familiaridade, passando a nítida impressão de que foi vítima de um aprendizado auricular enviesado?
Dois terços de seu artigo estão voltados ao diagnóstico da liderança da extrema direita no universo digital brasileiro, ancorada em narrativas articuladas na cultura e nas subculturas das plataformas. Essa é a verdadeira preocupação do autor. Legítima e procedente, diga-se de passagem.
Não há como discordar da constatação de que o centro e a esquerda não têm se mostrado em condições de confrontar a vanguarda ideológica e comunicacional dos seus antípodas.
Quanto às pesquisas, há muito que fazer, menos desmerecê-las. São fundamentais para o processo democrático. Governos e outras instituições não podem prescindir delas, das informações e avaliações da repercussão que suas ações e omissões despertam na população. E a sociedade, como se orientaria sem mirar-se periodicamente nesse espelho?
Por tudo isso, entidades como a Abep (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa), Abrapel (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais) e ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política) cogitam se debruçar após as eleições sobre os resultados, os métodos e as técnicas utilizadas na campanha, incorporando nessa reflexão as opiniões e cobranças dos críticos. Tal como a entidade dos pesquisadores norte-americanos (AAPOR) faz a cada ciclo de eleições.
Certamente, há muito a ser melhorado, aperfeiçoado, atualizado, o que exige uma boa dose de autocrítica. Essa é a essência da atividade científica. Não parar jamais. Questionar-se sempre. Não se satisfazer nunca com o conhecimento alcançado.
Ronaldo Lemos, um jovem talentoso advogado, de boa bibliografia na área de tecnologia da informação, com o entusiasmo e a pressa desse admirável mundo novo que fascina a todos e particularmente parece inebriá-lo, atirou-se sem hesitação a uma leitura fulminante das pesquisas eleitorais brasileiras.
Nas páginas da Ilustríssima (9.out), surfou com raro senso de oportunidade a onda da perplexidade e das críticas aos institutos após a eleição de 2 de outubro. Baseado no que supostamente praticam as empresas desse mercado nos EUA, desferiu em estilo pós-moderno uma sequência impressionante de golpes a laser.
Não economizou juízos acerbos sobre a suposta obsolescência do setor. Denunciou a "inépcia" absoluta, que levou "a erros clamorosos", apontando o "esgotamento" do modelo, alimentado pela "nostalgia" que faz essa atividade moribunda.
Não se furtou também a apontar caminhos para uma eventual ressurreição: abraçar a sociologia computacional e a abordagem qualitativa. Tampouco perdeu tempo, aproveitando para "empossar" um apadrinhado, um novo farol, a AtlasIntel, única a "acertar em cheio" o resultado da eleição.
Ocorre que o atleta gnosiológico se jogou na piscina errada. Pior, ela estava vazia.
Desde o primeiro turno das eleições deste ano, pesquisas e institutos têm estado sob ataque das mais diversas fontes, que, infelizmente, não se resumem apenas a críticos em busca de holofote. Vão perigosamente além.
Em uma conjuntura de tensões exacerbadas, pesquisas foram contestadas antes e depois da votação. No âmbito do Executivo, uma investigação foi requerida à Polícia Federal pelo Ministério da Justiça. No Congresso, foi deflagrada uma cruzada obscurantista, com vasto arsenal: CPI, audiência pública e projeto de lei criminalizando a atividade.
Qual a principal "evidência" do "erro" dos institutos? A alegada discrepância entre os números apresentados nas pesquisas e o resultado das urnas.
Então, comecemos pelo que ocorreu no primeiro turno da eleição presidencial. No quadro 1, que elaboramos a partir dos dados oficiais do TSE e dos levantamentos tal como divulgados pelos meios de comunicação, permite a fácil compreensão das estimativas dos institutos sobre o desempenho dos candidatos no momento da realização das pesquisas, em média 48 horas antes do pleito, e os resultados obtidos pelos presidenciáveis.
Tal comparação exige ser realizada sobre os totais das pesquisas e do eleitorado, uma vez que amostras dos institutos devem ser representativas do total dos eleitores. As intenções de voto e outras opiniões colhidas pretendem ser estimativas da ocorrência das mesmas no universo em questão, ou seja, nos 156,5 milhões de brasileiros inscritos para votar.
No quadro referido, estão os percentuais obtidos por cinco institutos, na ordem em que os divulgaram ao longo do sábado (1º.out), com as intenções de voto sobre o total do universo e, uma vez excluídos os votos brancos, nulos e indecisos, os chamados votos válidos.
Observe-se que não se fazem pesquisas para captar votos válidos, embora esses números passem a ser divulgados pela mídia à medida que se aproxima a eleição, com o intuito de tornar mais fácil a comparação com os dados divulgados pelo TSE. Às vezes, eles se aproximam do resultado oficial, às vezes não, por diferentes fatores.
Dois institutos com percentuais sobre o total absolutamente diferentes em magnitude, um deles estando bastante equivocado, podem ter válidos semelhantes ou mesmo iguais.
O que fica encoberto nos votos válidos? Para sua extração, são utilizados os dados das questões estimuladas, que apresentam os percentuais dos candidatos, mais o percentual de votos em branco e nulos e mais um ou dois por cento de "não sabe", os supostos indecisos.
A partir daí, são excluídas essas duas últimas categorias, recalculados os números e tem-se o que parece uma projeção, baseada na pesquisa, do resultado final. Parece, mas não é.
De onde sairá a abstenção que não foi computada nem declarada? Inevitavelmente, sairá dos contingentes de intenções de voto dos concorrentes. Ela prejudicará igualmente os candidatos? Lógico que não. No Brasil, como na maioria dos países, a abstenção se concentra mais na base da pirâmide social.
Para se ter uma ideia, dos quase 7 milhões de eleitores analfabetos, cerca de 52% não votaram no primeiro turno. Quase metade dos eleitores de Lula tem até fundamental completo. Por isso, eu lembrava no Twitter, na véspera da eleição, que a abstenção precisaria diminuir para aumentar a chance de vitória petista no primeiro turno. Entretanto, ela ainda foi um pouco maior (21%) que em 2018.
De outro lado, nas colunas de totais do quadro, percebe-se sem maior esforço que, em direção contrária às perplexas especulações da noite da eleição e dos momentos seguintes, todas as pesquisas publicadas se aproximaram na margem de erro, ou até coincidiram numericamente, com os 33%, arredondados, da votação de Bolsonaro.
Elas estimaram a mais, porém na margem de erro, todos os concorrentes da terceira via e os nanicos abaixo de 1%. Todavia, todas captaram intenções de voto em Lula entre 7 e 11 pontos acima do voto efetivo (37% arredondados) que ele registrou nas urnas. A explicação para essa distância está na base da última coluna à direita do quadro 1, nos 21% arredondados da abstenção.
Vez por outra aparece algum curioso que pretende dissociar abstenção e pobreza. Os argumentos variam desde a desatualização dos cadastros da Justiça Eleitoral, em razão de problemas na informação dos óbitos pelos cartórios cíveis, até a falta de transferência de títulos para novos municípios de moradia dos eleitores.
As duas coisas naturalmente devem ocorrer, mas nada nem sequer capaz de chegar perto do montante de 32,7 milhões de ausentes. No caso da falta de transferência, o fenômeno também é fruto da pobreza.
Os dados do TSE, apresentados no quadro 3, relativos à abstenção por faixa de escolaridade no primeiro turno, são eloquentes. A correlação entre o não comparecimento e a baixa escolaridade chega a -0.87. Quanto menos escolaridade, mais abstenção.
A diferença entre o topo e as camadas de escolaridade inferior impressiona. Na base (analfabetos), é mais de quatro vezes superior ao topo da pirâmide (curso universitário completo). É impossível negar a realidade. Em um país democrático que adota o voto obrigatório, não se pode naturalizar a ocorrência, eleição após eleição, de uma lamentável "abstenção compulsória" de tamanha proporção.
O que foi dito acima sobre proximidade entre os números revelados às vésperas da eleição e os das urnas não significa desconhecer o principal postulado dessa atividade, indicado no título da minha fala em seminário dirigido a jornalistas em maio deste ano: "Por que pesquisas não podem ser lidas como prognósticos".
No texto, aponto alguns dos fatores que desautorizam o uso para tal fim dos resultados de tais levantamentos. Destaco o papel do voto estratégico, típico de sistemas pluripartidários como o nosso, o voto errático e, sobretudo, a abstenção, a qual nenhum instituto tem condições de estimar razoavelmente, pelo fato de o voto ser obrigatório e os prováveis absenteístas não revelarem essa disposição.
Aliás, mesmo com o voto sendo facultativo nos Estados Unidos, identificar os "likely voters" é uma tarefa difícil para os institutos de lá, cada qual usando uma fórmula diferente e poucas vezes acertando, como observa o jornalista de dados Elliot Morris.
O fenômeno ocorrido neste ano é singular? Não. Aconteceu muitas vezes. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, quando ganhou no primeiro turno em 1994, tinha 48% sobre o eleitorado total na véspera do pleito, mas nas urnas obteve apenas 36,2%. A abstenção foi de 17,8%, e o branco e nulo, com voto ainda em papel, chegaram a 15,5%.
Lula, quando por 1,4 ponto não se sagrou vitorioso no primeiro turno de 2006, marcava 46% sobre o total na véspera, mas nas urnas a abstenção lhe tomou nove pontos, e ele só alcançou 37,1% do total de eleitores naquele momento.
E quanto à escolha de governadores em alguns estados, já que na maioria deles não houve alterações significativas em relação às pesquisas? Neles, as mudanças de última hora foram exatamente isso, movimentos finais que ocorreram após as últimas pesquisas divulgadas. Precisamente como a teoria do voto estratégico supõe: eleitores que utilizam a informação dos últimos levantamentos para alterar seu comportamento.
Em estados como São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Bahia, foi nítido o alinhamento com a disputa nacional, que assumiu polarização recorde, repetindo a morfologia de 2006.
Isso posto, dirijamo-nos à metodologia. Será que está mesmo moribunda como foi apontado? Salvo a pesquisa do Ipespe, telefônica, as demais foram todas presenciais. Dado que os resultados foram muito próximos, é inócuo discutir qualquer diferencial de acuidade entre elas.
E quanto à pesquisa Atlas, única online, que, segundo Ronaldo Lemos, seria o novo padrão-ouro de medição? Mais uma vez, o crítico olhou para o que não viu e não acertou exatamente porque não viu.
O quadro 2 compara os resultados anunciados pela Atlas na véspera da votação com os resultados das urnas. Esqueçamos os votos válidos, pois, como já comentado, as pesquisas captam intenções de voto identificadas em amostras colhidas sobre o total de eleitores, não sobre votos válidos. Assim, eventual proximidade com os números de Lula válidos é apenas coincidência. A comparação necessária é com os números totais.
Lançado o foco na direção correta, o que se constata é que os dados do Atlas, contrariamente ao que a análise ingênua e apressada de Lemos identificou, foram os que mais se distanciaram tanto do número de Lula quanto do de Bolsonaro.
Treze pontos em relação ao primeiro, oito pontos em relação ao segundo. Estamos falando de 20 milhões de votos a mais no primeiro colocado, e 12,5 milhões no segundo. Foi o único instituto a ficar fora da margem de erro no que concerne ao incumbente.
Não que a metodologia online do Atlas esteja errada. Não se trata disso. Ela ainda é apenas inadequada para estudos eleitorais no Brasil, onde um quarto da população não é usuária frequente da internet, onde temos 7 milhões de eleitores analfabetos e 25% da população padece de analfabetismo funcional.
Eu montei em 1999, em companhia de conhecidos cientistas da computação, o primeiro instituto de pesquisa online do Brasil: Diga-me.com. De lá para cá, vários dos institutos criticados em bloco no artigo ora replicado desenvolvem rotineiramente estudos online em segmentos específicos, em geral de classes A, B e C, mas não na base da sociedade.
Isso vai mudar, decerto, mas levará alguns anos. As pesquisas de opinião pública no Brasil, ao contrário de presas à "nostalgia", avançaram no tempo e frequentemente utilizam métodos híbridos, como nos Estados Unidos.
Aliás, por falar no berço das pesquisas e das redes sociais, nenhuma das quatro organizações dos EUA classificadas com grau A+ pela qualidade do seu desempenho no site FiveThirtyEight, de Nate Silver, utiliza metodologia online, embora por lá sejam comuns pesquisas eleitorais com essa metodologia. As quatro operam entrevistas telefônicas com entrevistadores humanos.
Tampouco o uso das ciências sociais computacionais, recomendado por Lemos, é novidade no setor. As redes sociais são vasculhadas pelos institutos. Índices são estabelecidos com base nas suas interações. Levantamentos de tráfego de pessoas e automóveis são realizados por sinais de telefonia celular com uso intensivo de GPS.
Além disso, boa parte dos projetos de pesquisa de mercado dos mesmos institutos que desenvolvem levantamentos eleitorais usa estratégias "double track", associando a investigação do comportamento nas redes à busca das opiniões dos consumidores.
Da mesma forma, a guinada qualitativa sugerida no artigo já ocorreu há muito tempo. Todos os principais institutos contam com departamentos qualitativos, o que parece desconhecido por Lemos, com profissionais de sociologia, psicologia e antropologia conduzindo estudos presenciais e online cujos resultados alimentam hipóteses testadas quantitativamente.
Vai-se além. Eu mesmo tive oportunidade de introduzir anos atrás no país a metodologia quali-quanti, unindo as duas dimensões, por meio de baterias de 200 a 400 entrevistas, com roteiros semiabertos, para pré-teste de comerciais.
Lemos adverte que "só sobreviverão as instituições que sejam mais parecidas com a língua que com os dentes". Esqueceu-se, contudo, que a sabedoria elementar recomenda evitar, pelo uso ansioso do verbo irrefletido, que os dentes mordam a língua.
Por fim, o que explica esse mergulho desajeitado em um universo com o qual demonstra tão pouca familiaridade, passando a nítida impressão de que foi vítima de um aprendizado auricular enviesado?
Dois terços de seu artigo estão voltados ao diagnóstico da liderança da extrema direita no universo digital brasileiro, ancorada em narrativas articuladas na cultura e nas subculturas das plataformas. Essa é a verdadeira preocupação do autor. Legítima e procedente, diga-se de passagem.
Não há como discordar da constatação de que o centro e a esquerda não têm se mostrado em condições de confrontar a vanguarda ideológica e comunicacional dos seus antípodas.
Quanto às pesquisas, há muito que fazer, menos desmerecê-las. São fundamentais para o processo democrático. Governos e outras instituições não podem prescindir delas, das informações e avaliações da repercussão que suas ações e omissões despertam na população. E a sociedade, como se orientaria sem mirar-se periodicamente nesse espelho?
Por tudo isso, entidades como a Abep (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa), Abrapel (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais) e ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política) cogitam se debruçar após as eleições sobre os resultados, os métodos e as técnicas utilizadas na campanha, incorporando nessa reflexão as opiniões e cobranças dos críticos. Tal como a entidade dos pesquisadores norte-americanos (AAPOR) faz a cada ciclo de eleições.
Certamente, há muito a ser melhorado, aperfeiçoado, atualizado, o que exige uma boa dose de autocrítica. Essa é a essência da atividade científica. Não parar jamais. Questionar-se sempre. Não se satisfazer nunca com o conhecimento alcançado.
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