31 de outubro de 2022

Entrevista: "Ato em defesa da democracia foi uma fala de setores fora da esquerda contra autoritarismo", diz Carlos Fico

Segundo o professor de História do Brasil da UFRJ, resultado é "choque de realidade", e a restauração da normalidade democrática deve ser a prioridade de Lula

André Duchiade


Bolsonaristas lamentam a derrota nas urnas, reunidos em frente ao condomínio de luxo onde vive o presidente Alexandre Cassiano/Agência O Globo

Muitas vezes, se diz que o país sai dividido de uma eleição. Este caso se aplica mais a esta eleição do que a outras?

Este muitas vezes é um lugar-comum, mas neste caso se aplica inteiramente. Foi a eleição mais acirrada da História do Brasil desde 1945. Houve uma diferença de sete pontos percentuais em 89 entre Collor e Lula, três pontos entre Dilma e Aécio, e, em 1955, cinco pontos entre Juscelino e Juárez Távora, mais por causa do bom desempenho do terceiro colocado [Ademar de Barros]. As eleições de 2022 têm um ineditismo por esse acirramento total, com a divisão sendo quase meio a meio.

Uma grande coalizão democrática se uniu atrás de Lula contra Bolsonaro. Fazer a gestão dessa coalizão será o principal desafio do governo?

É impressionante que, para derrotar Bolsonaro, tenha sido importante um esforço de união sem precedentes. Essa é a mais ampla frente de que tenho notícia. Isso tem dois aspectos. O primeiro é que foi preciso um esforço gigantesco, o que mostra a força eleitoral de Bolsonaro e do bolsonarismo. O segundo é que há realmente um grande desafio de governabilidade. A pergunta que fica é se o presidente eleito governará com essa frente. A meu ver, é a única solução possível para minimizar os prejuízos do governo Bolsonaro para a democracia brasileira.

Carlos Fico, historiador e professor titular da UFRJ — Foto: Fernando Souza 13-03-2020

Quais podem ser os pontos de convergência da coalizão?

O grande ponto de convergência é a restauração plena da democracia e da governabilidade em bases democráticas. Não houve uma polarização, mas, sim, uma divisão de antípodas, entre autoritarismo e democracia. O governo Bolsonaro se caracterizou não só pelo autoritarismo, mas pelo desmanche de várias estruturas de governabilidade democráticas: pelo desmanche dos órgãos colegiados, pela presença de muitos militares em cargos de governo, e pelo desprezo por certas agendas que caracterizam um país democrático. A necessidade de um governo que expresse essa frente ampla em defesa da democracia me parece fundamental diante dos prejuízos gerados pelo governo Bolsonaro. A questão principal que deveria preocupar a composição do governo, os seus primeiros atos e a composição do Ministério é a restauração da governabilidade democrática.

O que a votação tão forte de Bolsonaro nos diz?

A eleição de Lula em condições tão difíceis, sendo necessário esse esforço de união de uma frente ampla e por uma margem tão reduzida, é uma espécie de choque de realidade para as pessoas que entendiam que a sociedade brasileira se caracterizava majoritariamente por um perfil progressista. Afinal, quase metade do eleitorado optou por um candidato autoritário, antivacina, armamentista, misógino, homofóbico, que não defende os direitos humanos e fez declarações racistas. Então, isso não se deve a uma manipulação, não se deve a fake news. Isso se deve a uma adesão eleitoral, que eu chamo de adesão por afeto. É muito preocupante. Considero o resultado um grande choque de realidade para quem não percebia esse caráter, vamos dizer, muito de direita e com um viés muito preconceituoso de uma parcela tão significativa do eleitorado brasileiro.

Como Lula pode lidar com esses setores radicalizados?

Há o radicalismo, mas também situações que são criminosas. O outro ineditismo destas eleições foi a ocorrência das transgressões eleitorais mais diversas, o que mostra como Bolsonaro conseguiu intimidar a Justiça Eleitoral, que não reagiu em diversos casos. As transgressões eleitorais incluem a emenda que instituímos um estado de emergência que nem existe no estatuto legal brasileiro, a PEC Kamikaze, pois não se pode instituir benefícios no período eleitoral, o uso do Sete de Setembro como comício, as diversas ameaças, o uso de prédios públicos, e, hoje [ontem] mesmo, a ação da Polícia Rodoviária Federal. Então, é preciso distinguir o que são posições de uma direita extremamente conservadora e o que são estratégias criminosas do bolsonarismo. Foram muitos casos.

Lula disse que não será candidato em 2026. Por onde pode se dar a renovação da esquerda?

Não só esquerda e o PT, mas também os bolsonaristas terão muitas dificuldades para lançar candidatos em 2026. Porque pela primeira vez na História do Brasil tivemos uma competição entre dois candidatos extremamente carismáticos cujos eleitorados aderiu a eles com uma fidelidade afetiva, como se fossem times de futebol. Isso nunca tinha acontecido. Agora temos um eleitorado que se caracteriza pela adesão por afeto, e por isso será muito difícil substituir e encontrar uma renovação tanto para Lula quanto para Bolsonaro. Pela direita, talvez Tarcísio de Freitas ou [o governador de Minas, Romeu] Zema, caso Bolsonaro não volte a se candidatar. No caso do PT, o nome que ocorre a muitos é o de Haddad, mas com a derrota em São Paulo fica difícil. A renovação do sistema político é muito difícil, porque houve competição entre candidatos extremamente carismáticos com adesão do eleitorado por afeto

Bolsonaro é o líder natural desta direita? Ele é indispensável a ela?

Do ponto de vista eleitoral, Bolsonaro é incontestavelmente a grande liderança dessa direita e vai permanecer assim. No entanto, não creio que tenha muita capacidade de articulação para se constituir como uma liderança política capaz de estabelecer diretrizes e organizar o setor. Há que se considerar também o seguinte: até recentemente, a direita no Brasil não tinha partidos bem organizados. Os eleitores de direita votavam no PSDB e em outras siglas. Agora eles contam com partidos organizados, do PL ao União Brasil. Isso também é um componente novo. Até muito recentemente, ninguém se declarava propriamente um conservador de direita no páis, e, nos últimos anos, muitos passaram orgulhosamente a assim se assumirem. Então agora há uma estrutura partidária de direita, uma coisa relativamente nova no Brasil, há uma liderança eleitoral incontestável e muito popular, e há a mudança de um perfil político e cultural. Vamos ter que verificar agora se vai haver, por exemplo, um esforço de união dessas agremiações de direita.

A centro-direita é uma das grandes derrotadas das eleições. O senhor vê alguma saída para a crise do setor?

O chamado centro democrático e também a direita democrática saem enfraquecidos. Os setores conservadores mais democráticos, a direita não radicalizada e os liberais não conseguiram viabilizar a chamada terceira via, e tiveram de se associar a Lula em defesa da democracia. Esses setores vão ter de se repensar e de lutar inclusive pela hegemonia nesses partidos de direita. É incerto se esses partidos vão tender a uma posição mais extremada ou se vão se situar no contexto da democracia.

Qual deve ser a posição do Supremo a partir de agora?

Bolsonaro deu aquela declaração de que não proporia um aumento do número de ministros do Supremo, mas não disse que seus parlamentares não poderiam fazer isso. Com a vitória do Lula, felizmente essa proposta cai por terra. Mas outras possibilidades de provocação ou de agressão ao Supremo Tribunal Federal não podem ser descartadas. É possível que haja outras agressões no Congresso, como a questão das decisões monocráticas ou mesmo a proposta de impeachment de ministros do Supremo. Vale lembrar que um pedido de impeachment de ministro do STF depende de dois terços do Senado, mas se a denúncia é recebida pela Mesa, e então é considerada pertinente pela maioria simples, e implica na suspensão do exercício das funções de juiz.

O que prever da relação de Lula com os militares?

Segundo o TCU, são mais de 6 mil militares em cargos comissionados. Se ele quiser esse número, que é uma coisa exageradíssima, ele vai enfrentar resistências. Haverá resistências também se quiser modificar o regime Previdenciário dessa categoria, que foi muito beneficiada pela Reforma da Previdência do governo Bolsonaro. Inclusive alguns militares já deram sinais de que não esperam que isso se altere. Essas são as duas grandes dificuldades, o número excessivo de militares em cargos para os quais não têm vocação e a questão da Previdência, Do ponto de vista do relacionamento mais institucional do PT, sobretudo de Lula, com os militares, não creio qu venham a ocorrer problemas, porque Lula já passou por dois governos. Não só ele, mas várias pessoas do seu entorno têm boas relações com os militares.

Qual papel devemos esperar do Centrão?

Tradicionalmente, o Centrão é negociável. Há uma quantidade grande, em torno de 160, de deputados que não são exatamente independentes, mas que não fizeram uma declaração clara de apoio a nenhum dos candidatos nessa eleição presidencial; Lula pode contar com 138 da base do PT e da esquerda, e há em torno de 240 bolsonaristas. Ele vai ter de negociar com esses outros 160. Essa situação se repete no Senado, onde há mais ou menos 40 deputados alinhados com Bolsonaro, mas nem todos são inteiramente afinados, há cerca de 13 com perfil mais neutro. Lula vai ter de fazer essa negociação, que será uma negociação dura e problemática. Prevejo que possa construir maiorias ad hoc, caso a caso.

Nestas eleições, as acusações não pegaram nos candidatos, com posições muito marcadas. O que isto diz sobre a política brasileira?

Este é um fenômeno da História política quando ocorre competição entre dois candidatos que tem adesão por afeto, como chamamos em psicologia política. O eleitorado desses candidatos é extremamente fiel e imune a escândalos e erros de campanha, de modo que a porcentagem das pesquisas se mantinha sempre mais ou menos estável, mesmo quando aconteciam eventos que, em uma campanha eleitoral normal, teriam uma afetação tremenda. A campanha de Bolsonaro enfrentou escândalos chocantes e mesmo assim as pesquisas não foram afetadas. Getúlio Vargas pode ter sido pode ser considerado um candidato com adesão por afeto, e Jânio Quadros também. Mas dois candidatos com esse perfil carismático concorrendo na mesma eleição é algo inédito.

Como o senhor avalia o papel dos evangélicos nestas eleições?

Setores vinculados ao fundamentalismo cristão vão buscar avançar pauta de costumes em funçaõ da bancada expressiva que vão ter no Congresso. Essa pauta de costumes não prosperou muito no primeiro mandato, mas temas como aborto e ideologia de gênero certamente vão prosseguir. certamente isso vai prosseguir, muito ruim que a política esteja permeada por essa questão da religiosidade, o que é muito negativo, não deveria ser assim

Lula fez campanha prometendo aumentar gastos, e o Orçamento de 2023 já está estourado devido às medidas de Bolsonaro. O quão séria é esta questão?

Será um grande desafio, junto com a questão da recomposição da governabilidade da gestão pública democrática. Porque houve esse aumento de gastos em 2022, e foram feitas promessas nesse sentido. Isso torna muito preocupante o futuro das contas públicas e o eventual impacto inflacionário decorrente. Haverá uma relação tensa entre a necessidade óbvia de um ajuste fiscal, do qual Lula não poderá correr, e a demanda dos eleitores cobrando as promessas de campanha. Isso certamente vai ser um enorme problema par sobretudo no primeiro ano do governo Lula.

Alguns diziam que a Nova República acabou. Como o senhor vê estes comentários agora?

Chamo isto de retórica da iminência. É muito comum nesses eventos dramáticos entenderem que estamos à beira do abismo, diante de um país paralisado, da eleição mais importante da História, essas coisas. Penso que devemos ter cuidado com esse tipo de retórica. Minha impressão é que estamos com uma sociedade muito cansada do histrionismo, da violência. Um pouco de tranquilidade não faz mal para ninguém. É claro que a eleição tem muitos ineditismos, mas é de todo recomendável que busquemos mais tranquilidade e rotina.

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