28 de outubro de 2022

Quando os liberais se apaixonaram por Benito Mussolini

Hoje faz 100 anos que Benito Mussolini se tornou o Primeiro Ministro da Itália. Seu primeiro governo adotou um plano de austeridade e reprimiu o movimento trabalhista - o que lhe rendeu os elogios dos economistas liberais, tanto na Itália como no exterior.

Clara E. Mattei


A primeira sessão do conselho de ministros de Benito Mussolini. Mussolini está na ponta da mesa de conferência; o Ministro da Fazenda Alberto de Stefani está dois assentos à direita dele. (Ullstein Bild via Getty Images)

Tradução / Quando falamos de conceitos como “totalitarismo” e “corporativismo”, muitas vezes se assume que o fascismo está muito longe da sociedade liberal que a precedeu, e que ainda hoje vivemos. Mas, se prestarmos mais atenção às políticas econômicas do fascismo italiano, especialmente durante a década de 1920, podemos ver como algumas combinações típicas tanto do século passado quanto do nosso foram experimentadas já nos primeiros anos do domínio de Benito Mussolini. Um caso em questão é a associação entre a austeridade e a tecnocracia. Por “tecnocracia”, me refiro ao fenômeno pelo qual certas políticas que são comuns hoje (tais como cortes nos gastos sociais, impostos regressivos, deflação monetária, privatizações e reduções salariais) são decididas por especialistas econômicos que aconselham os governos ou mesmo assumem diretamente as próprias rédeas, como em vários casos recentes na Itália.

Como explico em A Ordem do Capital: Como os economistas inventaram a austeridade e abriram o caminho para o fascismo, Mussolini foi um dos maiores campeões da austeridade em sua forma moderna. Isto se deu em grande parte porque ele se cercou dos economistas de referência da época, assim como dos campeões do paradigma emergente da “economia pura” – ainda hoje a base da economia neoclássica dominante.

Pouco mais de um mês após a marcha fascista italiana em Roma, em outubro de 1922, os votos parlamentares do Partido Nacional Fascista, do Partido Liberal e do Partido Popular (ou o popolari, um partido católico e antecessor da Democracia Cristã) introduziram o chamado “período de plenos poderes”. Ao fazer isso, eles concederam autoridade sem precedentes ao Ministro da Economia de Mussolini, o economista Alberto de Stefani, e seus colegas e assessores técnicos, em particular Maffeo Pantaleoni e Umberto Ricci.

Mussolini ofereceu a esses economistas uma grande oportunidade: moldar a sociedade sobre o conceito ideal de seus modelos. Das páginas da revista The Economist, Luigi Einaudi – celebrado como campeão do antifascismo liberal e, em 1948, o primeiro presidente da república democrática do pós-guerra da Itália – acolheu com entusiasmo a virada autoritária. “Nunca um poder tão absoluto foi confiado por um Parlamento ao Executivo… A renúncia do Parlamento a todos os seus poderes por um período tão longo foi recebida com alegria pela opinião pública. Os italianos estavam cansados de discursos e de fracos dirigentes”, escreveu ele em 2 de dezembro de 1922. No dia 28 de outubro, na véspera da marcha de Roma, ele havia declarado: “A Itália precisa de um homem capaz de dizer não a todos os pedidos de novas verbas”.

As esperanças do Einaudi e de seus colegas foram cumpridas. O regime de Mussolini implantou reformas ousadas promovendo a austeridade fiscal, monetária e industrial. Estas mudanças funcionaram em uníssono para impor duras dificuldades e sacrifícios à classe trabalhadora e garantir a retomada da ordem capitalista. Esta ordem havia sido amplamente contestada no biennio rosso (anos vermelhos) por numerosas revoltas populares e experiências sofisticadas de organização econômica pós-capitalista.

Entre as reformas que conseguiram calar qualquer tentativa de mudança social, podemos mencionar a redução drástica dos gastos com a previdência social, as demissões de funcionários públicos (mais de 65 mil só em 1923), e o aumento dos impostos sobre o consumo (na época, regressivo porque era pago principalmente pelos pobres). Estes se somaram à eliminação do imposto sobre as heranças que foi acompanhado por um aumento das taxas de juros (de 3 para 7% a partir de 1925), como uma onda de privatizações que intelectuais como o economista Germà Bel denominaram “a primeira privatização em grande escala em uma economia capitalista”.

Além disso, o Estado fascista implementou leis trabalhistas coercivas, que reduziram drasticamente os salários e proibiram os sindicatos. A derrota final das aspirações dos trabalhadores veio com a Carta do Trabalho de 1927, que fechou qualquer caminho para a luta de classes. A Carta encerra qualquer via de luta de classes. A Carta citava o espírito do corporativismo, cujo objetivo, nas palavras de Mussolini, era proteger a propriedade privada e “reunir dentro do Estado soberano o dualismo das forças do capital e do trabalho”, que eram vistas como “não mais necessariamente opostas, mas como elementos que deveriam e poderiam aspirar a um objetivo comum, o maior interesse da produção”.

O Ministro da Economia De Stefani elogiou a Carta como uma “revolução institucional”, enquanto o economista liberal Einaudi justificou sua definição “corporativista” de salários como a única maneira de imitar os ótimos resultados do mercado competitivo no modelo neoclássico. A hipocrisia aqui é dura: os economistas, tão inflexíveis na proteção do mercado livre contra o Estado, tiveram poucos problemas com a intervenção repressiva do Estado no mercado de trabalho. Na Itália, houve uma queda ininterrupta nos salários reais que durou todo o período entre guerras, uma tendência única entre os países industrializados.

Entusiasmo internacional

Enquanto isso, a crescente taxa de exploração garantiu um aumento nas taxas de lucro. Em 1924, o jornal London Times comentou sobre o sucesso da austeridade fascista: “o desenvolvimento dos últimos dois anos tem visto a absorção de uma maior proporção dos lucros pelo capital, e isto, ao estimular o empreendimento empresarial, certamente tem sido vantajoso para o país como um todo”. Esta é a narrativa típica capaz de promover e ganhar aceitação nas doutrinas de austeridade atuais: o consentimento das pessoas comuns aos sacrifícios é construído sobre uma retórica do bem comum.

Em suma, em um momento em que a maioria dos cidadãos italianos exigia grandes mudanças sociais, a austeridade exigia o fascismo – um governo forte, de cima para baixo, que pudesse impor sua vontade nacionalista coercitivamente e com impunidade política – para seu sucesso imediato. E o fascismo, em troca, exigia austeridade para solidificar seu governo. Foi o atrativo da austeridade que levou as instituições liberais internacionais e nacionais a apoiar o governo de Mussolini mesmo depois da Leggi Fascistissime [literalmente: “a maioria das Leis Fascistas”] de 1925-6 que instalou Mussolini como o ditador oficial da nação.

O jornal The Economist, por exemplo, em 4 de novembro de 1922, simpatizou com o objetivo de Mussolini de impor uma “redução drástica das despesas públicas” em nome da “necessidade gritante de obter financiamento sadio na Europa”, e comemorou em março de 1924: “O Signor Mussolini restabeleceu a ordem e eliminou os principais fatores de perturbação”. Em particular, quando os salários atingiram seus limites, as greves se multiplicaram. Estes foram os fatores de “perturbação”, e de acordo com eles “nenhum governo foi forte o suficiente para tentar uma solução”. Em junho de 1924, o jornal Times, que considerava o fascismo um governo “contrário ao desperdício”, elogiou como uma solução para as ambições dos “camponeses bolcheviques” em “Novara, Montara e Alessandria” e “a estupidez brutal dessas pessoas”, seduzidas por “experiências da chamada gestão coletiva”.

A embaixada britânica e a imprensa liberal internacional continuaram a se alegrar com os triunfos de Mussolini. O Duce havia conseguido reunir a ordem política e econômica – a própria essência da austeridade. Como mostram os arquivos históricos, no final de 1923, o embaixador britânico na Itália garantiu aos observadores em seu país que “o capital estrangeiro havia superado a timidez do passado, e estava novamente vindo para a Itália com confiança”. O diplomata enfatizou muitas vezes o contraste entre a incapacidade da democracia parlamentar italiana após a Primeira Guerra Mundial – considerada instável e corrupta – e a gestão econômica “eficiente” do Ministro De Stefani:

Há dezoito meses atrás, qualquer observador instruído da vida nacional estava obrigado a concluir que a Itália era um país em decadência… Agora é geralmente admitido que a situação mudou, mesmo para aqueles que não gostam do fascismo e condenam seus métodos. Um progresso notável em direção à estabilização das finanças do Estado… as greves [diminuíram] em 90% e os dias de trabalho perdidos [diminuíram] em mais de 97% e um aumento da poupança nacional de 4.000 [milhões de liras] em relação ao ano anterior; de fato, eles excedem pela primeira vez o nível pré-guerra em quase 2.000 milhões de liras.

Os celebrados sucessos da austeridade na Itália – avaliados em termos de paz industrial, altos lucros e mais negócios para a Grã-Bretanha – também tiveram uma face repressiva, que foi muito além da institucionalização de um Executivo forte e da evasão do Parlamento. A própria embaixada relatou inúmeras ações brutais: o constante ataque aos opositores políticos; a queima de sedes e câmaras de trabalho socialistas; a demissão de inúmeros prefeitos socialistas; a prisão de comunistas; e muitos assassinatos políticos amplamente conhecidos, dos quais o mais importante foi o assassinato do parlamentar socialista Giacomo Matteotti.

Mas a mensagem era clara: qualquer preocupação com os abusos políticos do fascismo desapareceu diante dos sucessos de sua austeridade. Até mesmo o campeão do liberalismo e governador do Banco da Inglaterra Montagu Norman, após expressar desconfiança de um Estado como o fascista sob o qual “qualquer coisa no caminho da divergência” tinha sido “eliminada” e no qual “a oposição em qualquer forma [desapareceu]”, acrescentou: “este momento é adequado e pode proporcionar, uma administração mais bem adaptada para a Itália”. Da mesma forma, Winston Churchill, na época chefe do Tesouro Britânico, afirmou: “Diferentes nações têm maneiras diferentes de fazer a mesma coisa… Se eu fosse italiano, estou certo de que estaria com você do começo até o fim em sua luta vitoriosa contra o leninismo”.

Tanto Norman como Winston Churchill afirmaram tanto em privado quanto publicamente que soluções liberais inconcebíveis em seu próprio país poderiam ser aplicadas a um povo “diferente” e menos democrático como na Itália, com “padrões duplos” que os leitores contemporâneos poderiam muito bem reconhecer.

De fato, mesmo quando os observadores liberais levantaram dúvidas, estas não eram uma preocupação com a democracia, mas sim com o que aconteceria sem Mussolini. Em junho de 1928, Einaudi escreveu no The Economist que temia um vácuo de representação política, mas ainda mais um colapso da ordem capitalista. Ele falava dos “questionamentos sérios” na mente dos ingleses:

Quando, novamente, no curso inevitável da natureza, a mão forte do grande Duce for retirada do leme do barco, a Itália terá outro homem de seu calibre? Qualquer era pode produzir dois Mussolinis? Se não, o que acontecerá? Sob um controle mais fraco e menos sábio, não teremos um futuro caótico? E com que consequências, não apenas para a Itália, mas para a Europa?

O mundo político internacional ficou tão apaixonado pela austeridade de Mussolini que recompensou o regime com os recursos financeiros necessários para solidificar ainda mais a liderança política e econômica do país, em particular, liquidando a dívida de guerra e estabilizando a lira, como nos mostra o clássico de Gian Giacomo Migone Os Estados Unidos e a Itália fascista.

O apoio ideológico e material que o establishment liberal italiano deu ao regime de Mussolini sem dúvida não foi uma exceção. Na verdade, a mistura de autoritarismo, especialização técnica em economia com austeridade inaugurada pelo fascismo “liberal” (economicamente liberal) teve muitas reproduções: a partir do uso dos “Chicago Boys” pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile até o apoio dos “Berkeley Boys” à ditadura de Suharto na Indonésia (1967-1998), como também a experiência dramática – recentemente de volta aos holofotes – da dissolução da URSS.

Como observa Giulia Albanese, ainda falta uma “história global” da Marcha em Roma. Mas seu legado em termos da difusão de uma prática autoritária de austeridade certamente vale a pena redescobrir – também à luz do antifascismo daqueles liberais que na década de 1920 tinham preferido a ordem econômica ao invés da democracia e as necessidades de redistribuição de riqueza.

Colaboradora

Clara E. Mattei é professora assistente no departamento de economia da New School for Social Research e autora do livro "The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism".

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