Matthew Richmond
Jacobin
No entanto, essa análise só nos leva até aqui. As pesquisas pré-eleitorais deste ano parecem ter subestimado significativamente o voto de Bolsonaro. Enquanto isso, todas essas faixas de renda capturam populações muito grandes, cada uma contendo significativa diversidade socioeconômica e política. O próprio fato de cada uma dessas bandas estar, até certo ponto, dividida entre os dois candidatos sugere que outros fatores devem ser levados em conta se quisermos identificar as fontes do apelo interclassista resiliente de Bolsonaro.
Jacobin
Apoiadores de Jair Bolsonaro demostram apoio durante feira agrícola no Parque Estadual Assis Brasil em Esteio, Brasil, em 2 de setembro de 2022. (Silvio Avila / AFP via Getty Images) |
Em 2018, Jair Bolsonaro chocou o mundo ao sair da relativa obscuridade para se tornar presidente do Brasil. Nestas páginas, descrevi um paradoxo gerado por seu sucesso inesperado. O principal apoio de Bolsonaro estava claramente nas classes média e alta predominantemente brancas do Brasil. Mas isso não é suficiente para vencer uma eleição majoritária em um país onde 70% ganham menos de dois salários mínimos (cerca de US$ 450 por mês) e mais da metade se identifica como negra ou parda. Se quiséssemos entender a vitória de Bolsonaro, argumentei, também precisávamos entender seu apelo a muitos brasileiros de baixa renda, negros e pardos.
Isso parecia particularmente paradoxal após treze anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2016), de centro-esquerda, durante os quais supervisionou níveis impressionantes de redução da pobreza. Enquanto os eleitores de baixa renda tendiam a apoiar o PT durante esse período, as classes médias se opunham ferozmente a ele. A vitória de Bolsonaro parecia desafiar essa lógica estabelecida. Coloquei, então, as seguintes questões: “Como Bolsonaro conseguiu reunir dentro de uma mesma coligação eleitoral as elites que desejam bloquear a mobilidade social das classes populares e uma parcela significativa daquelas que buscam bloquear? E quanto tempo isso pode durar?”
Após quatro anos de governo Bolsonaro, e no calor de mais uma eleição presidencial, é um momento propício para revisitar essas questões. Certamente, agora temos uma resposta clara para a segunda: o apelo de massa de Bolsonaro é muito mais durável do que muitos supunham. Na votação do último domingo, apesar de ter supervisionado a pior resposta à pandemia do mundo, um enorme aumento nas taxas de desmatamento e lançado ataques constantes contra instituições democráticas, Bolsonaro ficou apenas um pouco aquém de sua votação anterior no primeiro turno (43% em comparação com 46% em 2018). Ele agora enfrentará um tenso segundo turno contra o candidato do PT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que obteve 48% dos votos no primeiro turno.
Mesmo que Bolsonaro perca, é claro que o bolsonarismo – sua agenda ideológica, estilo de apresentação e as forças políticas agrupadas em torno dele – continuará a moldar o Brasil nos próximos anos. Seu partido recém-adotado, o Partido Liberal (PL), tornou-se o maior nas duas casas do Congresso, substituindo definitivamente os partidos tradicionais de centro-direita e apresentando uma barreira formidável às ambições reformistas de um futuro governo Lula.
Mas se o bolsonarismo claramente se tornou uma força política resiliente, o que dizer da primeira pergunta? O bolsonarismo ainda se baseia em uma coalizão eleitoral socialmente heterogênea e, em caso afirmativo, como essa coalizão se mantém unida desde 2018? Uma comparação das pesquisas de véspera de eleição do Datafolha, principal empresa de pesquisas do Brasil, para 2018 e 2022 oferece algumas pistas de como a composição social do voto de Bolsonaro evoluiu.
Em 2018, Bolsonaro liderou por enormes margens nas duas principais faixas de renda: os que ganham mais de dez salários mínimos e os que ganham entre cinco e dez. No entanto, ele também teve uma liderança muito significativa na terceira faixa (de dois a cinco salários mínimos) e ficou apenas um pouco atrás na faixa mais baixa (abaixo de duas vezes o mínimo). Na pesquisa de 2022, seu voto caiu por margens semelhantes – cerca de 6 a 8 pontos percentuais – em cada uma das três faixas mais baixas e cerca de duas vezes mais para a faixa mais rica.
Por outro lado, a votação do PT aumentou significativamente – cerca de 15 a 17 pontos percentuais – nas três faixas mais baixas, e enormes 25 pontos entre os mais ricos. Tomados em conjunto, esses números sugerem um balanço uniforme de Bolsonaro entre os três grupos mais baixos (embora de linhas de base muito diferentes) e um muito maior entre os mais bem pagos.
Isso parecia particularmente paradoxal após treze anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2016), de centro-esquerda, durante os quais supervisionou níveis impressionantes de redução da pobreza. Enquanto os eleitores de baixa renda tendiam a apoiar o PT durante esse período, as classes médias se opunham ferozmente a ele. A vitória de Bolsonaro parecia desafiar essa lógica estabelecida. Coloquei, então, as seguintes questões: “Como Bolsonaro conseguiu reunir dentro de uma mesma coligação eleitoral as elites que desejam bloquear a mobilidade social das classes populares e uma parcela significativa daquelas que buscam bloquear? E quanto tempo isso pode durar?”
Após quatro anos de governo Bolsonaro, e no calor de mais uma eleição presidencial, é um momento propício para revisitar essas questões. Certamente, agora temos uma resposta clara para a segunda: o apelo de massa de Bolsonaro é muito mais durável do que muitos supunham. Na votação do último domingo, apesar de ter supervisionado a pior resposta à pandemia do mundo, um enorme aumento nas taxas de desmatamento e lançado ataques constantes contra instituições democráticas, Bolsonaro ficou apenas um pouco aquém de sua votação anterior no primeiro turno (43% em comparação com 46% em 2018). Ele agora enfrentará um tenso segundo turno contra o candidato do PT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que obteve 48% dos votos no primeiro turno.
Mesmo que Bolsonaro perca, é claro que o bolsonarismo – sua agenda ideológica, estilo de apresentação e as forças políticas agrupadas em torno dele – continuará a moldar o Brasil nos próximos anos. Seu partido recém-adotado, o Partido Liberal (PL), tornou-se o maior nas duas casas do Congresso, substituindo definitivamente os partidos tradicionais de centro-direita e apresentando uma barreira formidável às ambições reformistas de um futuro governo Lula.
Mas se o bolsonarismo claramente se tornou uma força política resiliente, o que dizer da primeira pergunta? O bolsonarismo ainda se baseia em uma coalizão eleitoral socialmente heterogênea e, em caso afirmativo, como essa coalizão se mantém unida desde 2018? Uma comparação das pesquisas de véspera de eleição do Datafolha, principal empresa de pesquisas do Brasil, para 2018 e 2022 oferece algumas pistas de como a composição social do voto de Bolsonaro evoluiu.
Em 2018, Bolsonaro liderou por enormes margens nas duas principais faixas de renda: os que ganham mais de dez salários mínimos e os que ganham entre cinco e dez. No entanto, ele também teve uma liderança muito significativa na terceira faixa (de dois a cinco salários mínimos) e ficou apenas um pouco atrás na faixa mais baixa (abaixo de duas vezes o mínimo). Na pesquisa de 2022, seu voto caiu por margens semelhantes – cerca de 6 a 8 pontos percentuais – em cada uma das três faixas mais baixas e cerca de duas vezes mais para a faixa mais rica.
Por outro lado, a votação do PT aumentou significativamente – cerca de 15 a 17 pontos percentuais – nas três faixas mais baixas, e enormes 25 pontos entre os mais ricos. Tomados em conjunto, esses números sugerem um balanço uniforme de Bolsonaro entre os três grupos mais baixos (embora de linhas de base muito diferentes) e um muito maior entre os mais bem pagos.
Por outro lado, graças ao enorme tamanho de sua vantagem em 2018, Bolsonaro ainda tem uma vantagem estreita dentro das três faixas superiores e ainda mantém o apoio de mais de 20% dos eleitores mais pobres. De maneira ampla, então, podemos dizer que Bolsonaro continua a exercer um apelo interclasse significativo hoje.
No entanto, essa análise só nos leva até aqui. As pesquisas pré-eleitorais deste ano parecem ter subestimado significativamente o voto de Bolsonaro. Enquanto isso, todas essas faixas de renda capturam populações muito grandes, cada uma contendo significativa diversidade socioeconômica e política. O próprio fato de cada uma dessas bandas estar, até certo ponto, dividida entre os dois candidatos sugere que outros fatores devem ser levados em conta se quisermos identificar as fontes do apelo interclassista resiliente de Bolsonaro.
Nesse sentido, os próprios resultados da primeira rodada oferecem uma visão mais ampla. Embora eles não possam capturar variáveis demográficas em nível individual, eles revelam essa mudança geográfica do voto de Bolsonaro. Essa geografia revela uma fratura chave que agora atravessa o eleitorado brasileiro: entre aqueles que ainda apoiam e aqueles que agora se opõem ao projeto incompleto de construção de um Estado funcional, democrático e pelo menos moderadamente redistributivo no Brasil.
Desigualdade regional e o Estado
Olhando para as cinco macrorregiões do Brasil – Nordeste, Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul – o primeiro turno refletiu amplamente a continuação dos resultados das eleições presidenciais recentes, embora com algumas mudanças importantes. O desempenho mais forte de Lula ocorreu no Nordeste, a região mais pobre do Brasil e a segunda mais populosa. Os estados do Nordeste deram ao PT maiorias saudáveis em todas as eleições presidenciais desde os anos 2000, e continuaram a fazê-lo em 2014 e 2018, mesmo quando o apoio ao partido diminuiu acentuadamente em todas as outras regiões. De níveis já elevados em 2018, o apoio ao PT em toda a região voltou a crescer este ano.
Veja o estado do Piauí, por exemplo, onde 63% dos votos no primeiro turno em 2018 foram para o PT, e isso aumentou para 74% este ano. Mesmo o estado do Nordeste que deu ao PT a menor votação, Alagoas, ainda registrou uma porcentagem maior do que qualquer estado fora da região e preferiu Lula a Bolsonaro por uma margem de mais de vinte pontos (57% a 36%).
Embora possa parecer intuitivo para a região mais pobre do Brasil votar no principal partido de centro-esquerda do país, nem sempre foi assim. Na década de 1990, o Nordeste, como o resto do país, favorecia esmagadoramente os candidatos de centro-direita. A mais recente fidelidade ao PT representa a consolidação de uma forte identificação regional não apenas com Lula (ele próprio nordestino), mas com o partido como um todo. Reflete a emergência histórica de uma cultura política que reconhece as conquistas do PT e que busca defender e renovar esse legado.
É claro que a importância da identificação partidária na política nordestina não deve ser exagerada, e a dinâmica clientelista local persiste, principalmente nas eleições legislativas. No entanto, a contínua hegemonia do PT fora do poder desmente a afirmação fácil, amplamente repetida, mas sem fundamento, de que os votos dos pobres podem ser comprados com pequenas transferências em dinheiro pagas pelos governos em exercício – uma estratégia que Bolsonaro tentou, mas com pouco sucesso até agora. Os eleitores nordestinos passaram a esperar um compromisso mais sincero e sustentado com a construção de um Estado social redistributivo.
No entanto, essa relação entre desigualdade regional e preferências de voto não se sustenta em todos os lugares. Os estados amazônicos remotos e escassamente povoados do Acre, Rondônia e Roraima - três dos mais pobres fora do Nordeste - também são os estados mais pró-Bolsonaro do país, dando-lhe respectivamente 63%, 64% e 70% na votação da última semana. Os estados da região Centro-Oeste, que ocupam uma posição socioeconômica intermediária entre as regiões Nordeste e Norte mais pobres e as regiões Sudeste e Sul mais ricas, também deram a Bolsonaro vitórias muito grandes.
Esses estados estão todos na fronteira agrícola do Brasil, fortemente dependentes da pecuária, produção de soja e várias atividades extrativistas. Embora a capacidade do estado fora de algumas cidades maiores seja geralmente precária, as economias locais realmente se beneficiaram de sua maior erosão sob o governo de Bolsonaro. Em particular, seu desmantelamento de agências de proteção ambiental e indígena removeu grandes restrições à apropriação de terras e recursos.
Isso pode beneficiar principalmente os grandes proprietários de terras, mas também traz benefícios indiretos para as populações de baixa renda dessas áreas. Com poucas outras oportunidades econômicas disponíveis, muitos encontram emprego remunerado ou podem operar como empreendedores de pequena escala em setores com baixas barreiras à entrada.
Enquanto isso, a organização petista não conseguiu penetrar nessas áreas, deixando a maioria dos recursos estatais que podem realmente chegar aos pobres em grande parte nas mãos de partidos clientelistas. Como resultado, na fronteira agrícola, o estado é amplamente percebido como uma ameaça aos meios de subsistência, enquanto quaisquer benefícios que os pobres recebem do estado tendem a não ser associados a forças progressistas. Onde os pobres do Nordeste foram absorvidos por um projeto social-democrata de fortalecimento do Estado democrático como entidade redistributiva e reguladora, os pobres da agrofronteira foram engajados em um projeto que busca desmantelar essas mesmas instituições.
As classes médias institucionalistas e revanchistas
As classes médias também atravessam a divisão política do Brasil, e essa divisão também se correlaciona fortemente com a geografia. O Sudeste e o Sul são as regiões mais ricas do Brasil, mas também contêm diversos subterritórios, incluindo zonas rurais agrícolas, pequenas e médias cidades com condições sociais variadas e grandes metrópoles que englobam bairros ricos, subúrbios de classe média e periferias urbanas pobres e favelas.
Em 2018, os eleitores de quase todos esses territórios diversos votaram fortemente em Bolsonaro, ocultando diferenças importantes entre eles. No entanto, em 2022, essas diferenças ressurgiram. Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro – dois dos mais ricos e populosos do país – confirmam isso. Em particular, surgiu uma clara divergência entre suas respectivas classes médias urbanas e provinciais.
Para citar dois exemplos bastante representativos, entre 2018 e 2022, a votação de Bolsonaro nos municípios de Petrópolis (Rio de Janeiro) e São José dos Campos (São Paulo) caiu de 62% para 55% e 60% para 55%, respectivamente. No entanto, em ambos os casos, ele manteve uma grande vantagem de 21 pontos sobre Lula. Ou seja, embora possa ter havido um ajuste para baixo em relação aos picos de 2018, o bolsonarismo se enraizou nesses lugares.
Compare isso com os territórios profissionais da classe média da região metropolitana de São Paulo e do Rio de Janeiro. No bairro de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, a votação do PT aumentou em 36 pontos, de 11% em 2018 para 47% hoje, enquanto a de Bolsonaro caiu de 42% para 33%. No Botafogo, no Rio, a votação do PT cresceu 41 pontos ainda mais – de 13% para 54% – enquanto a de Bolsonaro caiu de 44% para 33%. Esses padrões se repetiram na Zona Sul e interior do Rio e interior da Zona Norte e Sudoeste de São Paulo. Nessas áreas, ao que parece, o bolsonarismo está realmente em retirada.
Novamente, essa divergência pode estar ligada às diferentes relações dessas populações com o processo de construção do Estado democrático. Em ambos os casos, há pouco interesse em um governo radical ou um estado fortemente redistributivo, que a maioria associaria ao populismo e à corrupção. A crise econômica e os escândalos de corrupção de meados da década de 2010 levaram as classes médias urbanas e provinciais a uma guinada anti-institucional – apoiando um golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e votando em massa em Bolsonaro em 2018 para “tirar o PT ”.
No entanto, a realidade do bolsonarismo mostrou que parte da classe média continua acreditando no projeto de longo prazo de consolidação democrática, incluindo gastos sociais moderados e a proteção dos direitos das minorias. Muitos deles são órfãos do enfraquecido Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), de centro-direita, e, graças ao posicionamento moderado de Lula, foram absorvidos pelo PT. Mais importante, porém, horrorizados com o negacionismo pandêmico de Bolsonaro, o desmantelamento das instituições estatais e as ameaças contra a democracia, eles se tornaram enfaticamente “anti-bolsonaristas”.
O que surpreendeu muitos, inclusive as empresas de pesquisa, é quantos eleitores não acompanharam a classe média institucionalista em recuar do bolsonarismo. Os mais proeminentes entre eles são os eleitores que chamo de classe média revanchista.
Esses eleitores são mais comumente encontrados no interior de cidades pequenas das regiões Sudeste e Sul, mas também em outras regiões e em algumas regiões metropolitanas. Eles apoiam, se não o autoritarismo absoluto, pelo menos uma reforma radical do Estado, rejeitando o acordo social que emergiu do processo de redemocratização do Brasil e sua constituição progressista de 1988.
Para este eleitorado, o investimento em serviços públicos – a maioria dos quais eles não usam – é um desperdício de dinheiro dos contribuintes. Grupos raciais e minorias sexuais historicamente excluídos são vistos como sendo mimados com recursos e privilégios estatais. O controle de armas e os limites de idade para responsabilidade criminal são vistos como impedindo a polícia e os cidadãos comuns de se defenderem legitimamente de criminosos onipresentes. Em outras palavras, a classe média revanchista busca retomar um Estado que acredita ter sido capturado por seus inimigos, a fim de neutralizar sua capacidade de continuar trabalhando contra seus interesses.
Visto sob esse prisma, o que para outros parece a incapacidade de Bolsonaro de governar, pode parecer para muitos desses eleitores um passo deliberado na direção certa.
Decepção x indiferença nas periferias urbanas
Se a cisão entre as classes médias institucionalistas e revanchistas é mais claramente visível nas comparações entre metrópole e sertão, a divergência entre os eleitores urbanos de baixa renda fica mais clara se compararmos as duas maiores cidades do município: São Paulo e Rio de Janeiro.
Durante os anos 2000, as periferias urbanas pobres de ambas as cidades foram redutos eleitorais do PT nas eleições presidenciais, assim como a região Nordeste. No entanto, eles abandonaram gradualmente o partido durante a década de 2010 e a maioria votou fortemente em Bolsonaro em 2018. Isso parecia uma tendência secular, talvez atribuível a uma série de processos sociais comuns a esses territórios – por exemplo, precarização do trabalho, declínio dos sindicatos e movimentos de base, e um grande crescimento de igrejas evangélicas.
No entanto, uma divergência histórica nas eleições da semana passada sugere que devemos procurar explicações em outros lugares. Mais uma vez, um fator crucial é a forma diferente como o estado democrático tem sido vivenciado em cada uma dessas cidades.
Em uma reversão das tendências eleitorais recentes, as periferias de São Paulo voltaram fortemente para o PT. Tomemos, por exemplo, a periferia leste de Itaquera, onde a votação do PT aumentou de 20% em 2018 para 49% em 2022, ou a periferia sul de Campo Limpo, onde cresceu de 25% para 54%. Nas duas zonas, a votação de Bolsonaro também caiu acentuadamente, deixando Lula com maiorias muito grandes no primeiro turno. Esse padrão se repete na maior parte da periferia municipal de São Paulo e em muitas de suas cidades satélites da classe trabalhadora.
O quadro nas periferias do Rio de Janeiro dificilmente poderia ser mais diferente. Nos distantes bairros da Zona Oeste de Santa Cruz, Campo Grande e Bangu, Bolsonaro manteve margens de vinte ou mais pontos sobre Lula e venceu de forma convincente em todas as partes da Baixada Fluminense. O bolsonarismo parece estar enraizado nas periferias metropolitanas predominantemente de baixa renda do Rio, assim como no interior das pequenas cidades.
Existem diferenças importantes entre as periferias das duas cidades que ajudam a explicar essa divergência. Em primeiro lugar, o PT historicamente alcançou uma presença institucional muito maior nas periferias de São Paulo. Mais amplamente, porém, as condições institucionais na cidade, ao longo do tempo, fomentaram maiores expectativas do estado.
Eduardo Marques identificou o que chama de uma dinâmica de “progressismo incremental” em São Paulo, observando que muitas políticas públicas progressistas foram sendo institucionalizadas gradativamente, mesmo sob administrações municipais de centro-direita. Isso é, em parte, produto da competição eleitoral sob condições de consenso mínimo, o que significa que políticas eficazes geralmente sobrevivem a mudanças de governo.
Não menos importante, porém, a sociedade civil organizada conseguiu exercer uma influência significativa sobre os processos de formulação de políticas. Tais processos dificilmente são suaves e a esfera pública permanece altamente precária em grande parte da periferia. Mas essa dinâmica fornece evidências de que a contestação por meio do estado democrático pode valer a pena. Fomenta a crença na possibilidade de um estado efetivo e redistributivo, mesmo que a realidade fique muito aquém. De fato, mesmo a decepção com a atual ineficácia e injustiça do Estado pode trair a crença de que poderia ser diferente.
As condições nas periferias do Rio são bem diferentes. O PT nunca estabeleceu raízes profundas como força política e sempre foi forçado a formar alianças com partidos clientelistas que mantinham forte influência sobre a cultura política local. Isso significou que a era petista foi vivida menos como uma ruptura nas periferias do Rio do que em outros lugares.
Também não houve nada como a mesma institucionalização de políticas progressistas. Em comunidades de baixa renda, o Estado é tipicamente articulado por meio de redes de poder político-econômico local, muitas vezes entrelaçadas com milícias violentas. Apesar da importante presença de movimentos sociais no Rio de Janeiro, tais condições restringem fortemente sua capacidade de operar livremente nas periferias. O efeito líquido é reforçar entre os moradores dessas áreas uma certa indiferença ao Estado, pelo menos como um possível veículo de serviços cada vez mais institucionalizados e aprimorados.
Ao invés de ser uma decepção, o Estado se torna uma irrelevância, e muitas das necessidades básicas da vida cotidiana são buscadas por outros meios. Não é difícil ver como o discurso bolsonarista, enfatizando as falhas do Estado democrático e a necessidade de buscar segurança e oportunidades fora dele, pode ressoar em tal contexto.
Um choque de coalizões heterogêneas
Voltando à nossa pergunta original, o primeiro turno da crucial eleição de 2022 no Brasil revela que uma coalizão eleitoral social e geograficamente heterogênea se manteve consistentemente em torno de Bolsonaro. Isso inclui diversos grupos sociais ao longo da agrofronteira brasileira, que vivenciam o Estado em grande parte por meio de regulamentações ambientais que percebem como uma ameaça à sua subsistência. Inclui algumas das classes médias das regiões mais ricas do Brasil, principalmente no interior das pequenas cidades, que abandonaram o projeto brasileiro de consolidação democrática em favor de uma retomada revanchista – e remodelação – do Estado. E inclui moradores das periferias urbanas do Rio (e talvez de outras) para quem o estado passou a ser visto em grande parte como uma irrelevância.
Em outras palavras, são grupos que, em circunstâncias muito diferentes e por razões diferentes, convergiram para um consenso de que a “antigovernança” de Bolsonaro certamente não é um acordo e pode até ser um passo positivo.
Contra eles estão os eleitores pobres, principalmente do Nordeste, que desejam ver a retomada do projeto petista de inclusão social; uma classe média institucionalista que, após flertar com o bolsonarismo, redescobriu seus rumos democráticos; e uma classe trabalhadora urbana cética, particularmente nas periferias urbanas de São Paulo, que mantém uma esperança residual na eventual consolidação de um estado funcional e redistributivo.
São esses dois blocos heterogêneos, internamente tensos, mas agora amplamente consolidados, que se chocarão em 30 de outubro, na próxima rodada de votação. Dado o tamanho semelhante, pode ser um número relativamente pequeno de eleitores titubeantes e indecisos que determinam o resultado, o que terá enormes implicações para a democracia brasileira nos próximos anos. Mas mesmo que Lula vença, o bolsonarismo resistirá na oposição, oferecendo uma alternativa destrutiva para aqueles que perderam, ou talvez nunca tiveram, a fé no estado democrático do Brasil.
Colaborador
Matthew Richmond é um Leverhulme Trust Early Career Fellow no Centro da América Latina e Caribe da London School of Economics.
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