Jorge Chaloub
Folha de S.Paulo
Professor de ciência política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)
O segundo turno da eleição mais disputada do pós-1988 decidiu mais do que o novo presidente do Brasil. Em um pleito marcado pela sombra de práticas golpistas, como o uso eleitoral da Polícia Rodoviária Federal e o claro desrespeito a decisões judiciais, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) oferece um horizonte para a sobrevivência da ordem democrática de 1988.
Se o primeiro turno institucionalizou a ultradireita, fortaleceu o lugar dos aliados de Jair Bolsonaro (PL) neste campo e reduziu a força política da direita hegemônica nas últimas décadas, o segundo turno se destaca sobretudo por dois eventos: a impressionante demonstração de força política de Lula e mais uma didática demonstração de que o ataque às instituições democráticas não era apenas uma "cortina de fumaça" farsesca, mas elemento central da ação política do bolsonarismo.
Professor de ciência política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)
O segundo turno da eleição mais disputada do pós-1988 decidiu mais do que o novo presidente do Brasil. Em um pleito marcado pela sombra de práticas golpistas, como o uso eleitoral da Polícia Rodoviária Federal e o claro desrespeito a decisões judiciais, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) oferece um horizonte para a sobrevivência da ordem democrática de 1988.
Se o primeiro turno institucionalizou a ultradireita, fortaleceu o lugar dos aliados de Jair Bolsonaro (PL) neste campo e reduziu a força política da direita hegemônica nas últimas décadas, o segundo turno se destaca sobretudo por dois eventos: a impressionante demonstração de força política de Lula e mais uma didática demonstração de que o ataque às instituições democráticas não era apenas uma "cortina de fumaça" farsesca, mas elemento central da ação política do bolsonarismo.
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no discurso da vitória, em São Paulo - Carla Carniel/Reuters |
A força política de Lula tem como evidência o ineditismo do seu feito. Trata-se, afinal, do primeiro a derrotar nas urnas um candidato à reeleição no Brasil. Mesmo ante todas as tragédias que marcaram o governo Bolsonaro e em face da sua ampla rejeição, governamental e pessoal, é difícil imaginar que outro líder político pudesse alcançar uma vitória em cenário tão difícil. O domingo de votação deixou bem evidentes algumas das razões dessa suposição. Os cerca de 2 milhões de votos de vantagem, neste sentido, representam um grande feito.
Bolsonaro não respeitou os limites democráticos e republicanos do uso da máquina pública em eleições. Fiel aos momentos em que afirmou "Eu sou a Constituição", ou se referiu às Forças Armadas como sua propriedade, ele utilizou os recursos, os funcionários e as prerrogativas do Estado brasileiro para fins eleitorais de modo nunca visto na Nova República. O candidato derrotado foi, todavia, ainda mais longe.
Com ataques ao sistema eleitoral, ao Judiciário e recorrente criminalização dos adversários, ele sempre transitou em uma fronteira ambígua entre a disputa eleitoral e o golpe de Estado. Por seus discursos e gestos, é razoável imaginar que a saída golpista não foi colocada em prática por razões de oportunidade e apoio político. Toda a atenção para a defesa da democracia é, contudo, necessária até o final do seu mandato, pois suas manifestações públicas tornam difícil imaginar uma transição institucional adequada e sugerem outras possíveis investidas autoritárias.
A terceira vitória de Lula e a quinta do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais da Nova República ocorrem, contudo, em condições muito diversas das anteriores.
A coligação vitoriosa, com o apoio oficial de 10 partidos no primeiro turno e 16 no segundo, assumiu a feição de uma efetiva frente ampla, composta por algumas das mais relevantes lideranças políticas dos últimos 30 anos. Compõem a chapa vitoriosa com Lula, ou o apoiam publicamente, por exemplo, seu adversário na última eleição presidencial disputada pelo líder petista, Geraldo Alckmin; o ex-presidente que o derrotou em dois pleitos, Fernando Henrique Cardoso; a candidata no primeiro turno do partido responsável pelo fim do último governo petista, Simone Tebet.
Como o próprio Lula já sinalizou, a chapa indica que, quando comparado ao seu papel entre 2003 e 2015, o PT terá uma atribuição mais modesta no próximo governo. Se, por um lado, o partido chega a impressionantes 5 vitórias em 9 eleições na Nova República, por outro ele terá que lidar com um cenário muito mais duro para algumas das suas pautas históricas. Derrotada nas urnas, a ultradireita foi vitoriosa em tornar corriqueiras muitas das suas pautas no debate público e ao fortalecer consensos conservadores, ou mesmo reacionários. A vitória de Tarcísio de Freitas (Republicanos) na eleição para o governo paulista abre, por sua vez, um importante espaço institucional para a organização política e ação pública de muitos dos quadros bolsonaristas, que certamente farão uma oposição duríssima ao governo eleito.
Os motivos de uma coalizão tão ampla decorrem, em parte, de um inevitável cálculo eleitoral, reafirmado pela apertada vitória, já que era difícil crer em triunfo contra um candidato à reeleição sem a construção de uma ampla gama de apoios. Por outro lado, a frente ampla se tornou necessária e urgente justamente pelas sérias ameaças à ordem democrática brasileira, brevemente descritas acima. Neste sentido, a vitória deste domingo (30) é apenas um primeiro passo para a reconstrução de muitas das instituições democráticas brasileiras, abaladas ou destruídas ao longo dos últimos anos.
Bolsonaro não respeitou os limites democráticos e republicanos do uso da máquina pública em eleições. Fiel aos momentos em que afirmou "Eu sou a Constituição", ou se referiu às Forças Armadas como sua propriedade, ele utilizou os recursos, os funcionários e as prerrogativas do Estado brasileiro para fins eleitorais de modo nunca visto na Nova República. O candidato derrotado foi, todavia, ainda mais longe.
Com ataques ao sistema eleitoral, ao Judiciário e recorrente criminalização dos adversários, ele sempre transitou em uma fronteira ambígua entre a disputa eleitoral e o golpe de Estado. Por seus discursos e gestos, é razoável imaginar que a saída golpista não foi colocada em prática por razões de oportunidade e apoio político. Toda a atenção para a defesa da democracia é, contudo, necessária até o final do seu mandato, pois suas manifestações públicas tornam difícil imaginar uma transição institucional adequada e sugerem outras possíveis investidas autoritárias.
A terceira vitória de Lula e a quinta do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais da Nova República ocorrem, contudo, em condições muito diversas das anteriores.
A coligação vitoriosa, com o apoio oficial de 10 partidos no primeiro turno e 16 no segundo, assumiu a feição de uma efetiva frente ampla, composta por algumas das mais relevantes lideranças políticas dos últimos 30 anos. Compõem a chapa vitoriosa com Lula, ou o apoiam publicamente, por exemplo, seu adversário na última eleição presidencial disputada pelo líder petista, Geraldo Alckmin; o ex-presidente que o derrotou em dois pleitos, Fernando Henrique Cardoso; a candidata no primeiro turno do partido responsável pelo fim do último governo petista, Simone Tebet.
Como o próprio Lula já sinalizou, a chapa indica que, quando comparado ao seu papel entre 2003 e 2015, o PT terá uma atribuição mais modesta no próximo governo. Se, por um lado, o partido chega a impressionantes 5 vitórias em 9 eleições na Nova República, por outro ele terá que lidar com um cenário muito mais duro para algumas das suas pautas históricas. Derrotada nas urnas, a ultradireita foi vitoriosa em tornar corriqueiras muitas das suas pautas no debate público e ao fortalecer consensos conservadores, ou mesmo reacionários. A vitória de Tarcísio de Freitas (Republicanos) na eleição para o governo paulista abre, por sua vez, um importante espaço institucional para a organização política e ação pública de muitos dos quadros bolsonaristas, que certamente farão uma oposição duríssima ao governo eleito.
Os motivos de uma coalizão tão ampla decorrem, em parte, de um inevitável cálculo eleitoral, reafirmado pela apertada vitória, já que era difícil crer em triunfo contra um candidato à reeleição sem a construção de uma ampla gama de apoios. Por outro lado, a frente ampla se tornou necessária e urgente justamente pelas sérias ameaças à ordem democrática brasileira, brevemente descritas acima. Neste sentido, a vitória deste domingo (30) é apenas um primeiro passo para a reconstrução de muitas das instituições democráticas brasileiras, abaladas ou destruídas ao longo dos últimos anos.
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