27 de outubro de 2022

Mike Davis foi o melhor escritor socialista do último meio século

Mike Davis se obrigou a olhar para o pior de nossa sociedade e mundo. O que ele encontrou não foi bonito. No entanto, ele nunca abandonou a busca por sementes de mudanças positivas - e pelo socialismo.

Owen Hatherley

Jacobin

Mike Davis (1946-2022) tinha um talento praticamente inigualável para a escrita socialista. (Verso Books)

Tradução / Por volta de 2017 ou 2018, finalmente peguei a cópia do livro O Monstro bate à nossa porta, de Mike Davis, que estava nas prateleiras há alguns anos e o li. Davis estava certo sobre tanta coisa – sobre a ascensão do Estado carcerário e a vigilância onipresente, sobre os desastres ecológicos ultrapassarem a periferia da Califórnia, sobre a ascensão de “paraísos do mal” impiedosamente protegidos e patrulhados, para citar um pequeno conjunto de coisas aleatórias – que eu me senti honestamente aliviado por ele estar errado que uma desastrosa pandemia de gripe aviária atingiria as cidades do mundo nos anos 2000 e 2010.

O livro era excelente, como sempre, em sua descrição de como o agronegócio e os patógenos naturais estavam se combinando para criar novos vírus que poderiam ser facilmente transmitidos aos humanos, mas... isso não aconteceu, não é verdade? Por fim, pensei, Mike Davis estava errado sobre algo, e coloquei o livro de volta na prateleira. E aqui estamos nós, no final de 2022, no final de três anos de uma pandemia desastrosa e evitável, o resultado de um novo vírus que surgiu de maneira muito semelhante à descrição em O Monstro bate à nossa porta e agora estamos sem Mike Davis.

Haverá muita gente de luto por Davis, e em meio a tudo isso, é importante lembrar, enquanto aparecem essas anedotas de quão bom escritor ele era. Não havia quase ninguém com seu talento nas últimas quatro décadas – 1980, 1990, 2000, 2010 – em que ele publicou inúmeras obras. Seu talento para, rapidamente, fazer um zoom panorâmico e minucioso, forçando-se a olhar o pior das “pequenas coisas” sem abandonar a busca das sementes da mudança positiva e socialista; o seu humor sombrio; por sua leitura vasta; o ímpeto explosivo, sem jargões, mas intenso e potente e sem rivais que se comparasse a ele.

Vale a pena parar para ler e relê-los. Quando você fizer isso, você verá que eles têm uma sutileza que esconde muito bem o caráter unidimensional de Davis como um profeta da catástrofe. Comece, por exemplo, com seu primeiro livro – que é um livro atípico, pois é um dos únicos livros dele que não é, de certa forma, uma obra de geografia – Prisioneiros do Sonho Americano, publicado em 1986. O livro participa do debate interminável sobre o porquê dos Estados Unidos, apesar da força de seu movimento trabalhista, nunca ter produzido um partido verdadeiramente socialista de massas de qualquer tipo. Sua resposta é essencialmente uma palavra – racismo – mas argumentou através dos vários momentos que poderia ter sido diferente, especialmente as enormes greves dos anos 1930 que culminaram na criação da federação sindical CIO como uma alternativa de luta contra a profundamente racista e conservadora AFL; mas a CIO foi derrotada em sua tentativa de organizar o Sul, e os dois foram fundidos nos anos 1950 da McCarthyite.

É comum em alguns meios afirmar que os fracassos históricos da esquerda norte-americana para combater o racismo e o imperialismo condenaram o movimento trabalhista dos EUA permanentemente, em uma versão maoísta do pecado original; mas esse não foi o argumento de Davis. Há alguns anos atrás, ele argumentou, respondendo a uma citação exagerada de Raymond Williams, de que “a esperança não é uma categoria científica. Nem é uma obrigação necessária na formulação de uma escrita polêmica”. Mas se “esperança” não é a palavra certa, seu trabalho, mesmo nos momentos mais difíceis, sempre procurou possibilidades e formas de intervir no presente, e ele a encontrou, até certo ponto, na “Coalizão Arco-íris” formada por ativistas de direitos trabalhistas e civis e ativistas de esquerda em torno da campanha presidencial de Jesse Jackson, antes de ser derrubada tanto pela máquina do Partido Democrata quanto pelas falhas evidentes de seu próprio líder.

Essa insistência em olhar com atenção para o que está acontecendo, não importa o quão desagradável, significa que alguns dos livros de Davis são excepcionalmente difíceis de ler. Muitos teóricos urbanistas acharam a propagação de moradias autoconstruídas nas periferias das cidades do Sul Global como “super interessantes”, exemplos fascinantes de uma arquitetura sem arquitetos, um exemplo inspirador da boa e velha auto-suficiência. O livro Planeta das Favelas não. Em vez disso, ele mostra um retrato terrível da pobreza, com a “esperança” em sua maioria canalizada para igrejas evangélicas ferozmente reacionárias.

A antologia arrepiante Paraísos do Mal, entretanto, tem como tema os paraísos construídos pelos ricos, dos Emirados Árabes Unidos a Xangai e de Joanesburgo a Budapeste; e esses “paraísos” só se multiplicaram desde que esse livro foi publicado. A outra obra de Davis de história (relativamente) linear, Late Victorian Holocausts, traça em detalhes horríveis como os eventos climáticos e a destruição dos sistemas de redução da fome pelas potências imperiais ocidentais criaram várias ondas de morte em massa que poderiam ser evitadas em todo o mundo colonizado, principalmente na Índia, entre 1870 e 1890 – uma catástrofe que foi uma das maiores do século XX, que é sistematicamente encoberta. Estes livros são alimentados não pelo desespero, mas pela fúria.

A Cidade de Quartzo é um clássico imponente, aquele que você deve ler. Para mim é o livro mais importante que todos os outros que me fez ter interesse em saber onde a geografia e a política se encontram, e um livro que eu releio anualmente. Sua descrição de Los Angeles como a monstruosa cidade do futuro, uma fábrica de fantasias protegida por uma força policial praticamente fascista, é acompanhada pela história de uma Los Angeles que se tornou uma cidade industrial e multicultural de experimentos socialistas, revoltas pelos direitos civis e justas irrupções. Uma delas, a revolta de Los Angeles de 1992, viria logo após a publicação do livro, a ponto em que ele teve uma visão tão precisa como uma espécie de vidente – ele teria apontado corretamente que acompanhar o desenvolvimento de uma cidade capitalista sem perder de vista a realidade não significa, de fato, profecia.

A parte central da Cidade de Quartzo e da Ecologia do Medo é a mais nova cidade americana emergindo no Urbanismo Mágico, um livro sobre a hispanização das áreas urbanas na América do Norte, e como isso criou um nível de politização e, citando uma frase de Paul Gilroy, uma “cultura de companheirismo”, em contraste com os novos mundos privatizados, paranóicos e brutalmente policiados descritos nos livros anteriormente citados. Davis tinha dúvidas justificadas sobre o socialismo eleitoral, mas sem dúvida estava satisfeito com o fato de que o recente ressurgimento do socialismo democrático nos Estados Unidos foi especialmente forte no sul da Califórnia e em Nevada.

Mas há dois textos antigos em que me encontrei pensando mais nos últimos anos, no meio de outro ciclo de esperança e derrota miserável, em uma situação em que simplesmente não podemos nos dar ao luxo, como espécie, de que a esquerda desapareça novamente, como aconteceu com na Europa e na América do Norte nos anos 1990 e 2000. Uma é do ensaio, incluído em Velhos Deuses, Novos Enigmas, “Quem Construirá a Arca?” Dentro deste ensaio acerca da necessidade do ecossocialismo está uma frase sobre como poderia ser a arca, uma afirmação clara de um modernismo socialista que muitas vezes é esquecida na escrita de Davis.

As discussões do final do século XIX e início do século XX sobre a “cidade socialista” fornecem pontos de partida inestimáveis para pensar sobre a crise atual. Considere, por exemplo, os Construtivistas. El Lissitzky, Melnikov, Leonidov, Golosov, os irmãos Vesnin e outros brilhantes arquitetos socialistas – constrangidos como estavam pela miséria urbana soviética e por uma drástica escassez de investimento público – propuseram reduzir a vida de apartamentos com clubes de trabalhadores, teatros populares e complexos esportivos esplendidamente projetados. Deram prioridade urgente à emancipação das mulheres proletárias através da organização de cozinhas comunitárias, creches, banheiros públicos e cooperativas de todos os tipos. Embora imaginassem clubes de trabalhadores e centros sociais, ligados a vastas fábricas fordistas e eventuais moradias de alto nível, como os “condensadores sociais” de uma nova civilização proletária, eles também estavam elaborando uma estratégia prática para alavancar o padrão de vida dos trabalhadores urbanos pobres em circunstâncias de extrema pobreza.

No contexto da emergência ecológica global, este projeto construtivista poderia ser traduzido na proposta de que os aspectos igualitários da vida urbana consistentemente forneçam os melhores suportes sociológicos e físicos para a conservação de recursos e mitigação de carbono. De fato, há pouca esperança de mitigar as emissões de efeito estufa ou adaptar os habitats humanos ao Antropoceno, a menos que o movimento para controlar o aquecimento global convirja com a luta para elevar o padrão de vida e abolir a pobreza no mundo. E na vida real, além dos cenários simplistas do IPCC, isto significa participar da luta pelo controle democrático do espaço urbano, dos fluxos de capital, das barragens de recursos e dos meios de produção em larga escala.

A crise interna na política ambiental atual é precisamente a falta de projetos ousados que abordam os desafios da pobreza, energia, biodiversidade e mudança climática dentro de uma visão integrada do progresso humano.

Muito longo para um cartaz ou um tweet, mas se eu tenho uma crença, é esta. Em seu último livro, escrito com Jon Wiener, encontra-se este: Set the Night on Fire: L.A. In the Sixties. O livro é sobre como esta cidade brutalmente segregada e dividida em classes e raças produziu a proliferação de uma nova cultura de movimentos socialistas e de libertação, e como eles acabaram sendo reprimidos. No final do livro, Davis e Wiener observam o horror e a destruição do sul e leste de Los Angeles nos anos 1980 e 1990 que resultaram da derrota.

Desta perspectiva, pode-se concluir que todo o sonho, paixão e sacrifício daquela época foram em vão. Mas os anos 1960 em Los Angeles são melhor concebidos como uma plantação cujas sementes cresceram em tradições vivas de resistência. Os movimentos cresceram e caíram, com certeza, mas os compromissos de mudança social eram duradouros e hereditários. Milhares de pessoas continuaram a ter uma vida militante como organizadores sindicais, médicos e advogados progressistas, professores, defensores comunitários, servidores municipais e, talvez mais do que isso, como seus pais.

Poucos escritores semearam tanta luta e esperança quanto Mike Davis.

Colaborador

Owen Hatherley é o editor de cultura da Tribune. Seu último livro, "Red Metropolis: Socialism and the Government of London", saiu pela Repeater Books.

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