Stefanie Prezioso
Jacobin
Benito Mussolini analisa a milícia Camisas Negras em Roma em 1936. (Arquivo Bettmann via Getty Images) |
Resenha de M: O Filho do Século por Antonio Scurati (Fourth Estate, 2022)
Tradução / Um século desde a Marcha sobre Roma, o “retorno” do passado fascista da Itália nunca pareceu mais próximo. Este mês, o Senado elegeu como novo presidente Ignazio La Russa, cofundador do partido pós-fascista Fratelli d’Italia, poucas semanas depois da declaração que “somos todos herdeiros do Duce”.
Nesse contexto, lançar um romance sobre Benito Mussolini – como Antonio Scurati fez com sua trilogia M. – é uma grande responsabilidade. Mais do que qualquer escrita histórica, a obra de Scurati tornou-se um best-seller, traduzido para vários idiomas. A responsabilidade é ainda maior porque Scurati busca “trazer o fascismo para a terra, dando real conhecimento dele como só a literatura sabe, quando se aprofunda nos detalhes da vida material”. M. é, portanto, um “romance documentário”; ele deliberadamente joga com a fronteira borrada entre história e ficção, com o “entrelaçamento” dos dois gêneros em uma época que, Scurati nos diz, convida “a cooperação entre o rigor da erudição histórica e a arte de contar histórias ficcionais”.
A escrita histórica não imita a ficção, quando preenche as lacunas com narrativa inteligente, com imaginação, com simpatia? Apreender o passado “como ele realmente foi” não exige do historiador a capacidade de mergulhar em outros mundos, de torná-los seus e transmiti-los a outros? Os historiadores profissionais muitas vezes se mostram incapazes de falar para um público mais amplo e não familiar ao tentar usar a arte literária, o que é ainda mais necessário com biografia ou biografia coletiva. Deste ponto de vista, os três livros M. de Scurati são uma obra-prima.
Scurati constrói uma narrativa cortante e cativante com base em fontes em primeira mão. Ele não tem medo de confrontar o mito duradouro de Italiani brava gente (italianos, as pessoas boas) – um mito que diminui a responsabilidade dos italianos por crimes de guerra na Segunda Guerra Mundial. Particularmente notável é sua descrição da política genocida do fascismo na Líbia, à qual o segundo volume dedica muitas páginas e que ainda permanece uma parte esquecida da história italiana.
Scurati queria “dar voz ao pensamento daqueles que, por meio de suas ações, contribuíram para escrever essa história”. Para isso, ele afirma que era preciso operar sem “preconceitos ideológicos”. Esta é uma afirmação significativa em um país onde, há décadas, o revisionismo histórico encontrou sua força justamente na pretensão de produzir uma história “desideologizada” e “serena” “sem preconceitos”, distante das “grandes paixões políticas” do curto século XX. Scurati não é exceção: ele afirma que o “preconceito antifascista” bloqueia a capacidade de analisar o fascismo, produzindo uma “forma de cegueira”.
Isso implica que devemos ignorar as centenas de estudos produzidos no calor da luta antifascista — ainda hoje essenciais para a abordagem do fenômeno — como Rise of Italian Fascism [Ascensão do fascismo italiano], de Angelo Tasca, publicado às vésperas da Segunda Guerra Mundial, do qual Scurati, no entanto, desenha extensivamente. Isso é mais surpreendente quanto o autor de M., que se descreve como “democrático, libertário e progressista”, vê seu romance como sua “maior contribuição para a refundação do antifascismo”, um antifascismo que pode resistir a novos tempos.
Ignorância produzida culturalmente
Um livro é, como tudo, parte da época em que nasceu, do contexto sócio-histórico em que se desenvolveu e deixou sua marca. Que interesse teria uma obra de arte em ser despojada do mundo em que foi concebida? O historiador francês Marc Bloch, fuzilado pelos nazistas em 1944, não argumentou que é impossível compreender o passado sem olhar para o presente? O lançamento da obra de Scurati coincide com o centenário da chegada do fascismo ao poder – um passado que parece não querer passar, em um país onde a memória de Mussolini ainda paira como uma sombra ameaçadora, um “fantasma”.
O romance também sai em um momento em que o retorno do fascismo está na boca de todos. A publicação do primeiro volume coincidiu com a ascensão do líder da Lega Matteo Salvini ao alto cargo (na época era ministro do Interior), com políticas agressivas e vínculos abertos com grupos neofascistas, alarmando a opinião pública nacional e internacional. O terceiro e último volume — “M. Gli ultimi giorni dell’Europa” — saiu poucos dias antes da vitória eleitoral, em 25 de setembro, de Giorgia’Meloni e seu Fratelli d’Italia; um partido em cujas artérias ainda circula o fascismo e cujo logotipo exibe orgulhosamente a chama tricolor, representando o espírito ainda vivo do fascismo. A atmosfera nociva em que o livro apareceu foi evidenciada pelo intimidante artigo de 25 de setembro de Alessandro Sallusti, editor do jornal Libero, intitulado “o príncipe dos inimigos”, em referência ao autor.
Nesse contexto, falar sobre o “retorno do fascismo” na Itália pode parecer absurdo, como disse o historiador Emilio Gentile, já que o fascismo nunca parece ter desaparecido. Entre outras coisas, Scurati assume abertamente o papel de revelar o presente ao evocar certas “analogias surpreendentes e arrepiantes com os dias modernos”.
O passado iluminado pelo presente faz parte de qualquer processo literário-criativo de natureza histórica – atento, como escreveu G. W. F. Hegel, à “verdade histórica” e ao mesmo tempo “aos costumes e cultura intelectual de seu tempo”. Scurati insiste que “nenhuma pessoa, evento, fala ou frase narrada no livro é arbitrariamente inventada”, dando especial atenção às fontes, à maneira de um historiador. Isso só é reforçado pela impressão de realismo que advém da inclusão de extratos de documentos de arquivo ao final de cada capítulo. No entanto, sua exposição muitas vezes truncada não pode ir além de uma ilusão da materialidade do passado.
O romance de Scurati, diz ele, “complementa, talvez, o trabalho analítico da pesquisa histórica com a força sintética da narrativa” e não tenta substituí-la. Deste ponto de vista, M. desempenha o papel de síntese narrativa das análises produzidas pelos historiadores. No entanto – e será ainda mais o caso quando o filme for lançado – o que Scurati chama de ficcional (uma mistura de ficcional e factual) elabora uma nova forma de pensamento histórico que rompe com a história acadêmica, em grande parte desconhecida para a maioria das pessoas. Esse novo pensamento histórico é chamado para substituí-lo.
É difícil ignorar o ambiente cultural, social e político em que este trabalho surgiu. Este é um país onde ainda é possível ouvir que “Mussolini também fez coisas boas”; um país onde o desconhecimento do passado é comum, seja porque sua população não o conhece ou porque não quer saber. Uma ignorância no sentido mais forte, tingida de indiferença, vem sendo produzida culturalmente desde a Segunda Guerra Mundial através da grande imprensa e especialmente da televisão, veículo extraordinário de identidade e memória. A Itália é um país em que, ao longo dos últimos trinta anos de hegemonia cultural da direita plural, o antifascismo foi retratado como sinistro, devido ao seu caráter supostamente antidemocrático e à suposta crueldade da violência comunista.
Não se trata, de forma alguma, de apontar todos os erros do romance da inexpugnável torre de marfim dos historiadores “profissionais”, reservando a estes a produção do conhecimento histórico. Trata-se, antes, de questionar a interpretação de M. no presente, de interrogar a relação entre as formas de produção narrativa que seu autor privilegia e a autoconsciência da sociedade italiana. “O futuro do passado” está em jogo, não apenas seu presente.
Fascismo "por dentro"
No primeiro volume, intitulado M: filho do século, Antonio Scurati decide relatar a ascensão do fascismo a partir da perspectiva do próprio Mussolini. Essa escolha narrativa levantou muitas questões e críticas – algumas delas injustificadas – de “proximidade” de seu “personagem” ou de uma “reabilitação” latente de Mussolini. O objetivo de Scurati, ao adotar o ponto de vista do líder fascista, é contar essa história por dentro. Ao fazê-lo, Scurati recorre aos historiadores Renzo de Felice, George L. Mosse, Zeev Sternhell e Emilio Gentile, que defenderam a necessidade de uma análise do fascismo “de dentro”, levando a sério sua linguagem e mitos.
Scurati argumenta que o fato de ele pertencer a uma geração “nascida logo após o fim de tudo isso e pouco antes do início de todo o resto” lhe permite “reapropriar o material narrativo explosivo do século XX, com base em [seu próprio] seu não pertencimento a ele.” Nascido em 1969, seria, assim, uma encarnação do que chama de “literatura da inexperiência”, representada neste “romance pós-histórico”. O autor estaria assim finalmente liberto de qualquer dogmatismo ideológico em relação à geração que o precedeu, livre para encontrar a verdade ou pelo menos elaborar uma verdade: “A equidistância (certamente não a equivalência) do autor pós-histórico”, ele escreve, “no que diz respeito ao ponto de vista das vítimas e carrascos, portanto, sua livre escolha no foco narrativo, descende diretamente do transcendental da inexperiência”.
A abordagem de Scurati à literatura da inexperiência parece característica do que Eric Hobsbawm chamou de “a destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que ligam a experiência contemporânea à das gerações anteriores”, efetivamente libertando a geração mais jovem do imperativo categórico da lembrando os vencidos, ou seja, levando a bordo suas derrotas para transformá-los em uma força “revolucionária” no presente. A distinção reconhecidamente importante que o autor faz entre “equidistância” e “equivalência” não pode, porém, por si só resolver a questão de sua relação com seus personagens, o leitor a quem se dirige e o que seu texto “postula” para eles.
O leitor de M., exposto sem mediação ao conto de Mussolini no primeiro volume, é levado a experimentar a ascensão do fascismo de dentro do ventre da besta. A força inegável da escrita de Scurati está na descrição “debaixo” dos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial; um período particularmente intenso que deve ser analisado hora a hora, região a região, cidade a cidade, bairro a bairro, na tentativa de “enfrentar” o fascismo por meio de seus “desenvolvimentos”. A narrativa é, sem dúvida, eficaz. Usando a estética do “horror”, Scurati provoca arrependimento, não responsabilidade. Ele consegue cativar um grande número de leitores, mergulhando-os na vida cotidiana do fascismo. No entanto, a narrativa da ascensão do fascismo ao poder deixa pouco espaço para a perspectiva necessária para entender um fenômeno complexo e vívido na memória coletiva da Itália, da Europa e do mundo.
Seus desdobramentos cotidianos, vistos pelo prisma necessariamente míope de um “fascínio pela catástrofe”, vinculam a definição de fascismo ao plano contingente e efêmero das circunstâncias e aos efeitos recíprocos da violência e do medo. O que é fascismo? A resposta, segundo Scurati, está em seu caráter moral e psicológico, que não pode ser dissociado dos “humores” das favelas. Os fascistas estão constantemente apegados às suas origens sociais plebeias – Roberto Farinacci, “filho do ferroviário”, e Mussolini, “filho do ferreiro”, repetiam teimosamente, como se essas indicações fossem a melhor maneira de compreender o fenômeno. A natureza plebéia dos “fascistas” reforça a ideia de um fascismo “revolucionário”: “a revolução não será feita pelos comunistas, será feita pelos donos de dois quartos e uma cozinha em um bloco de apartamentos suburbano”. Um ponto de vista de dentro que nunca é questionado nos três volumes de Scurati.
De uma perspectiva croceana, o fascismo também é visto como uma doença moral degenerativa. O segundo volume, que abre com um Mussolini dobrado em dois pela dor de sangue e merda, é o exemplo mais típico. A imagem do vírus aparece muitas vezes, um vírus que “infecta milhares de funcionários dos correios prontos para incendiar os salões de trabalho”. O terror que esse povo armado de paus inspira, portanto, não está relacionado apenas à violência que produz, mas ao que representa em termos de patologia física e psíquica localizada nas profundezas da sociedade, em seu ventre, em seus instintos mais básicos.
Ao medo da “multidão” que “avança instintivamente” junta-se a imagem de um Benito Mussolini apresentado como um “super-homem gerado no ventre do povo e não de uma casta privilegiada”. Um Mussolini que “despreza e teme seus próprios esquadrões [uma atitude] que é amplamente correspondida”. Um Mussolini que retrata suas tropas como “mendigos enriquecidos, tropas de assalto transformadas em oficiais” e os italianos como “covardes e fracos”. Um Mussolini que hesita em voltar atrás “mas agora o círculo de ódio está se apertando por todos os lados. Talvez, se pudesse, ele voltaria. Mas é tarde demais.” Um Mussolini que “está protegido do espetáculo humilhante da miséria humana por um estranho tipo de hipermetropia: ele não vê seu par, seu vizinho, as pessoas pequenas, ou, se os vê, parecem borrados, indistintos, insignificantes”. homem como Giacomo Matteotti, o deputado socialista assassinado pelos camisas negras em 1924.
Um homem sozinho diante da loucura que pôs em movimento: “deveria falar de um chefe de Estado, idolatrado pelas multidões, que cai dia após dia no destino nada invejável da desconfiança mais radical de qualquer pessoa e no ainda mais condenação arrepiante de ter que cultivar uma confiança cada vez maior, absoluta e anormal em si mesmo”. Um homem cuja estatura encolheu tanto quanto a distância entre o dedo indicador e o polegar (daí o m minúsculo estilizado no título do volume três) ao se aproximar de Hitler e que está “com medo”. O mesmo medo que “vinte anos antes, quando habilmente orquestrado, o havia elevado ao poder” estava se voltando contra ele, levando-o à violência e a “lançar o povo italiano na carnificina de um novo conflito mundial”.
Tradução / Um século desde a Marcha sobre Roma, o “retorno” do passado fascista da Itália nunca pareceu mais próximo. Este mês, o Senado elegeu como novo presidente Ignazio La Russa, cofundador do partido pós-fascista Fratelli d’Italia, poucas semanas depois da declaração que “somos todos herdeiros do Duce”.
Nesse contexto, lançar um romance sobre Benito Mussolini – como Antonio Scurati fez com sua trilogia M. – é uma grande responsabilidade. Mais do que qualquer escrita histórica, a obra de Scurati tornou-se um best-seller, traduzido para vários idiomas. A responsabilidade é ainda maior porque Scurati busca “trazer o fascismo para a terra, dando real conhecimento dele como só a literatura sabe, quando se aprofunda nos detalhes da vida material”. M. é, portanto, um “romance documentário”; ele deliberadamente joga com a fronteira borrada entre história e ficção, com o “entrelaçamento” dos dois gêneros em uma época que, Scurati nos diz, convida “a cooperação entre o rigor da erudição histórica e a arte de contar histórias ficcionais”.
A escrita histórica não imita a ficção, quando preenche as lacunas com narrativa inteligente, com imaginação, com simpatia? Apreender o passado “como ele realmente foi” não exige do historiador a capacidade de mergulhar em outros mundos, de torná-los seus e transmiti-los a outros? Os historiadores profissionais muitas vezes se mostram incapazes de falar para um público mais amplo e não familiar ao tentar usar a arte literária, o que é ainda mais necessário com biografia ou biografia coletiva. Deste ponto de vista, os três livros M. de Scurati são uma obra-prima.
Scurati constrói uma narrativa cortante e cativante com base em fontes em primeira mão. Ele não tem medo de confrontar o mito duradouro de Italiani brava gente (italianos, as pessoas boas) – um mito que diminui a responsabilidade dos italianos por crimes de guerra na Segunda Guerra Mundial. Particularmente notável é sua descrição da política genocida do fascismo na Líbia, à qual o segundo volume dedica muitas páginas e que ainda permanece uma parte esquecida da história italiana.
Scurati queria “dar voz ao pensamento daqueles que, por meio de suas ações, contribuíram para escrever essa história”. Para isso, ele afirma que era preciso operar sem “preconceitos ideológicos”. Esta é uma afirmação significativa em um país onde, há décadas, o revisionismo histórico encontrou sua força justamente na pretensão de produzir uma história “desideologizada” e “serena” “sem preconceitos”, distante das “grandes paixões políticas” do curto século XX. Scurati não é exceção: ele afirma que o “preconceito antifascista” bloqueia a capacidade de analisar o fascismo, produzindo uma “forma de cegueira”.
Isso implica que devemos ignorar as centenas de estudos produzidos no calor da luta antifascista — ainda hoje essenciais para a abordagem do fenômeno — como Rise of Italian Fascism [Ascensão do fascismo italiano], de Angelo Tasca, publicado às vésperas da Segunda Guerra Mundial, do qual Scurati, no entanto, desenha extensivamente. Isso é mais surpreendente quanto o autor de M., que se descreve como “democrático, libertário e progressista”, vê seu romance como sua “maior contribuição para a refundação do antifascismo”, um antifascismo que pode resistir a novos tempos.
Ignorância produzida culturalmente
Um livro é, como tudo, parte da época em que nasceu, do contexto sócio-histórico em que se desenvolveu e deixou sua marca. Que interesse teria uma obra de arte em ser despojada do mundo em que foi concebida? O historiador francês Marc Bloch, fuzilado pelos nazistas em 1944, não argumentou que é impossível compreender o passado sem olhar para o presente? O lançamento da obra de Scurati coincide com o centenário da chegada do fascismo ao poder – um passado que parece não querer passar, em um país onde a memória de Mussolini ainda paira como uma sombra ameaçadora, um “fantasma”.
O romance também sai em um momento em que o retorno do fascismo está na boca de todos. A publicação do primeiro volume coincidiu com a ascensão do líder da Lega Matteo Salvini ao alto cargo (na época era ministro do Interior), com políticas agressivas e vínculos abertos com grupos neofascistas, alarmando a opinião pública nacional e internacional. O terceiro e último volume — “M. Gli ultimi giorni dell’Europa” — saiu poucos dias antes da vitória eleitoral, em 25 de setembro, de Giorgia’Meloni e seu Fratelli d’Italia; um partido em cujas artérias ainda circula o fascismo e cujo logotipo exibe orgulhosamente a chama tricolor, representando o espírito ainda vivo do fascismo. A atmosfera nociva em que o livro apareceu foi evidenciada pelo intimidante artigo de 25 de setembro de Alessandro Sallusti, editor do jornal Libero, intitulado “o príncipe dos inimigos”, em referência ao autor.
Nesse contexto, falar sobre o “retorno do fascismo” na Itália pode parecer absurdo, como disse o historiador Emilio Gentile, já que o fascismo nunca parece ter desaparecido. Entre outras coisas, Scurati assume abertamente o papel de revelar o presente ao evocar certas “analogias surpreendentes e arrepiantes com os dias modernos”.
O passado iluminado pelo presente faz parte de qualquer processo literário-criativo de natureza histórica – atento, como escreveu G. W. F. Hegel, à “verdade histórica” e ao mesmo tempo “aos costumes e cultura intelectual de seu tempo”. Scurati insiste que “nenhuma pessoa, evento, fala ou frase narrada no livro é arbitrariamente inventada”, dando especial atenção às fontes, à maneira de um historiador. Isso só é reforçado pela impressão de realismo que advém da inclusão de extratos de documentos de arquivo ao final de cada capítulo. No entanto, sua exposição muitas vezes truncada não pode ir além de uma ilusão da materialidade do passado.
O romance de Scurati, diz ele, “complementa, talvez, o trabalho analítico da pesquisa histórica com a força sintética da narrativa” e não tenta substituí-la. Deste ponto de vista, M. desempenha o papel de síntese narrativa das análises produzidas pelos historiadores. No entanto – e será ainda mais o caso quando o filme for lançado – o que Scurati chama de ficcional (uma mistura de ficcional e factual) elabora uma nova forma de pensamento histórico que rompe com a história acadêmica, em grande parte desconhecida para a maioria das pessoas. Esse novo pensamento histórico é chamado para substituí-lo.
É difícil ignorar o ambiente cultural, social e político em que este trabalho surgiu. Este é um país onde ainda é possível ouvir que “Mussolini também fez coisas boas”; um país onde o desconhecimento do passado é comum, seja porque sua população não o conhece ou porque não quer saber. Uma ignorância no sentido mais forte, tingida de indiferença, vem sendo produzida culturalmente desde a Segunda Guerra Mundial através da grande imprensa e especialmente da televisão, veículo extraordinário de identidade e memória. A Itália é um país em que, ao longo dos últimos trinta anos de hegemonia cultural da direita plural, o antifascismo foi retratado como sinistro, devido ao seu caráter supostamente antidemocrático e à suposta crueldade da violência comunista.
Não se trata, de forma alguma, de apontar todos os erros do romance da inexpugnável torre de marfim dos historiadores “profissionais”, reservando a estes a produção do conhecimento histórico. Trata-se, antes, de questionar a interpretação de M. no presente, de interrogar a relação entre as formas de produção narrativa que seu autor privilegia e a autoconsciência da sociedade italiana. “O futuro do passado” está em jogo, não apenas seu presente.
Fascismo "por dentro"
No primeiro volume, intitulado M: filho do século, Antonio Scurati decide relatar a ascensão do fascismo a partir da perspectiva do próprio Mussolini. Essa escolha narrativa levantou muitas questões e críticas – algumas delas injustificadas – de “proximidade” de seu “personagem” ou de uma “reabilitação” latente de Mussolini. O objetivo de Scurati, ao adotar o ponto de vista do líder fascista, é contar essa história por dentro. Ao fazê-lo, Scurati recorre aos historiadores Renzo de Felice, George L. Mosse, Zeev Sternhell e Emilio Gentile, que defenderam a necessidade de uma análise do fascismo “de dentro”, levando a sério sua linguagem e mitos.
Scurati argumenta que o fato de ele pertencer a uma geração “nascida logo após o fim de tudo isso e pouco antes do início de todo o resto” lhe permite “reapropriar o material narrativo explosivo do século XX, com base em [seu próprio] seu não pertencimento a ele.” Nascido em 1969, seria, assim, uma encarnação do que chama de “literatura da inexperiência”, representada neste “romance pós-histórico”. O autor estaria assim finalmente liberto de qualquer dogmatismo ideológico em relação à geração que o precedeu, livre para encontrar a verdade ou pelo menos elaborar uma verdade: “A equidistância (certamente não a equivalência) do autor pós-histórico”, ele escreve, “no que diz respeito ao ponto de vista das vítimas e carrascos, portanto, sua livre escolha no foco narrativo, descende diretamente do transcendental da inexperiência”.
A abordagem de Scurati à literatura da inexperiência parece característica do que Eric Hobsbawm chamou de “a destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que ligam a experiência contemporânea à das gerações anteriores”, efetivamente libertando a geração mais jovem do imperativo categórico da lembrando os vencidos, ou seja, levando a bordo suas derrotas para transformá-los em uma força “revolucionária” no presente. A distinção reconhecidamente importante que o autor faz entre “equidistância” e “equivalência” não pode, porém, por si só resolver a questão de sua relação com seus personagens, o leitor a quem se dirige e o que seu texto “postula” para eles.
O leitor de M., exposto sem mediação ao conto de Mussolini no primeiro volume, é levado a experimentar a ascensão do fascismo de dentro do ventre da besta. A força inegável da escrita de Scurati está na descrição “debaixo” dos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial; um período particularmente intenso que deve ser analisado hora a hora, região a região, cidade a cidade, bairro a bairro, na tentativa de “enfrentar” o fascismo por meio de seus “desenvolvimentos”. A narrativa é, sem dúvida, eficaz. Usando a estética do “horror”, Scurati provoca arrependimento, não responsabilidade. Ele consegue cativar um grande número de leitores, mergulhando-os na vida cotidiana do fascismo. No entanto, a narrativa da ascensão do fascismo ao poder deixa pouco espaço para a perspectiva necessária para entender um fenômeno complexo e vívido na memória coletiva da Itália, da Europa e do mundo.
Seus desdobramentos cotidianos, vistos pelo prisma necessariamente míope de um “fascínio pela catástrofe”, vinculam a definição de fascismo ao plano contingente e efêmero das circunstâncias e aos efeitos recíprocos da violência e do medo. O que é fascismo? A resposta, segundo Scurati, está em seu caráter moral e psicológico, que não pode ser dissociado dos “humores” das favelas. Os fascistas estão constantemente apegados às suas origens sociais plebeias – Roberto Farinacci, “filho do ferroviário”, e Mussolini, “filho do ferreiro”, repetiam teimosamente, como se essas indicações fossem a melhor maneira de compreender o fenômeno. A natureza plebéia dos “fascistas” reforça a ideia de um fascismo “revolucionário”: “a revolução não será feita pelos comunistas, será feita pelos donos de dois quartos e uma cozinha em um bloco de apartamentos suburbano”. Um ponto de vista de dentro que nunca é questionado nos três volumes de Scurati.
De uma perspectiva croceana, o fascismo também é visto como uma doença moral degenerativa. O segundo volume, que abre com um Mussolini dobrado em dois pela dor de sangue e merda, é o exemplo mais típico. A imagem do vírus aparece muitas vezes, um vírus que “infecta milhares de funcionários dos correios prontos para incendiar os salões de trabalho”. O terror que esse povo armado de paus inspira, portanto, não está relacionado apenas à violência que produz, mas ao que representa em termos de patologia física e psíquica localizada nas profundezas da sociedade, em seu ventre, em seus instintos mais básicos.
Ao medo da “multidão” que “avança instintivamente” junta-se a imagem de um Benito Mussolini apresentado como um “super-homem gerado no ventre do povo e não de uma casta privilegiada”. Um Mussolini que “despreza e teme seus próprios esquadrões [uma atitude] que é amplamente correspondida”. Um Mussolini que retrata suas tropas como “mendigos enriquecidos, tropas de assalto transformadas em oficiais” e os italianos como “covardes e fracos”. Um Mussolini que hesita em voltar atrás “mas agora o círculo de ódio está se apertando por todos os lados. Talvez, se pudesse, ele voltaria. Mas é tarde demais.” Um Mussolini que “está protegido do espetáculo humilhante da miséria humana por um estranho tipo de hipermetropia: ele não vê seu par, seu vizinho, as pessoas pequenas, ou, se os vê, parecem borrados, indistintos, insignificantes”. homem como Giacomo Matteotti, o deputado socialista assassinado pelos camisas negras em 1924.
Um homem sozinho diante da loucura que pôs em movimento: “deveria falar de um chefe de Estado, idolatrado pelas multidões, que cai dia após dia no destino nada invejável da desconfiança mais radical de qualquer pessoa e no ainda mais condenação arrepiante de ter que cultivar uma confiança cada vez maior, absoluta e anormal em si mesmo”. Um homem cuja estatura encolheu tanto quanto a distância entre o dedo indicador e o polegar (daí o m minúsculo estilizado no título do volume três) ao se aproximar de Hitler e que está “com medo”. O mesmo medo que “vinte anos antes, quando habilmente orquestrado, o havia elevado ao poder” estava se voltando contra ele, levando-o à violência e a “lançar o povo italiano na carnificina de um novo conflito mundial”.
No terceiro volume, que abrange o período das Leis Raciais de 1938 até a entrada da Itália na Segunda Guerra Mundial, o ponto de vista de Scurati fica cada vez mais claro. Ele apresenta um Mussolini em “êxtase”, fascinado pelo medo, a “mais poderosa das paixões políticas”, incutida nele por um “sanguinário” Hitler, o “demônio nazista” e sua corte composta por um “plebeu, arrivista, doente”. “Ralé bem-educada” – mas um Mussolini ao mesmo tempo um súcubo; um líder envelhecido, gordo e inquieto, ansioso pelo “destino” de “seu” povo. Scurati aqui se inclina para aquela leitura que dá desculpas para o fascismo italiano, apanhado na órbita da Alemanha nazista, um velho clichê que lança a aliança com Hitler como acidental, um “erro fatal” feito com o argumento de que é “melhor” que Hitler esteja “com nós do que contra nós”.
Enquanto isso, as leis raciais são apresentadas como um “instrumento diplomático”, uma promessa dada a essa aliança, uma “garantia” da firmeza de um acordo duradouro. Essa leitura revisionista é reforçada pelo fato de que a reconstrução de Scurati do curso do fascismo deixa de lado seis anos (de 1932 a 1938), deixando de lado a colonização da Etiópia – uma importante transição entre o racismo colonial e o antissemitismo em casa concebido como instrumento para a “regeneração” dos italianos.
A crítica básica do fascismo, portanto, parece abstratamente moral porque quase apenas a violência e o medo dominam. Na narrativa da ascensão do fascismo ao poder, como na da consolidação de seu regime, Scurati dá pouco espaço às condições econômicas, políticas, sociais e culturais que lhe deram base, seu programa político e ideologia, e o regime que estabeleceu . A historiadora Giulia Albanese tem razão ao apontar que “as páginas da marcha sobre Roma mostram que o evento foi reversível”. Scurati corretamente sugere que o fascismo foi um resultado possível, mas dificilmente automático, do conflito social contemporâneo e que, portanto, a convergência entre a classe dominante e a contrarrevolução – essencial para a chegada do fascismo ao poder – não poderia ser tomada como inevitável.
No entanto, o objeto da atenção do autor não é, nas palavras do historiador Charles S. Maier, “o capitalismo de crise armado de cassetete”, mas sim, e apenas às vezes, a inadequação da classe dominante tradicional, “pessoas de um museu”, composto por uma “burguesia italiana inimiga espiritual do fascismo” diante da nova situação que se abriu em março de 1919. A descrição do rei como “prisioneiro de guerra” e do primeiro-ministro liberal Giovanni Giolitti “tentativa parcial, laboriosa e contraditória de transformar um país antigo e arcaico em uma democracia moderna” parecem exonerar, pelo menos em parte, o estado liberal.
O oprimido ausente
Scurati sustentou em inúmeras entrevistas que “o romance gera um julgamento histórico, moral e civil preciso e firme condenando o fascismo. E o faz justamente porque não parte de um preconceito ideológico.” Toda a questão que isso coloca é a definição de antifascismo que resulta da exposição “terceira” do romancista, mas não “neutra”. O que Scurati quer nos dizer sobre o antifascismo no passado e, talvez mais importante para ele, sobre sua adaptação aos novos tempos?
A questão nos remete ao papel político do romance “histórico”. Em meados da década de 1930, György Lukács dedicou algumas páginas esclarecedoras ao romance antifascista, literatura que, segundo ele, marcou a “ruptura entre o escritor e a vida do povo”. Ele escreveu que “É sobretudo o preconceito que vive no povo, nas massas, o princípio da irracionalidade, do que é puramente instintivo, contra a razão. Com tal concepção do povo, o humanismo destrói suas melhores armas antifascistas”. O filósofo húngaro então pediu o “desmascaramento da hostilidade do fascismo” em relação aos oprimidos para “proteger as forças criativas do povo” porque “as grandes ideias e ações que a humanidade produziu até agora se originaram na vida popular”.
Depois de ler os três volumes de M., não há dúvidas quanto à sua condenação moral do fascismo – apesar das limitações e elementos negligenciados destacados acima. Mas para Scurati, a batalha antifascista é essencialmente uma luta entre a razão e a irracionalidade brutal e bárbara: “Hoje estamos numa encruzilhada: devemos escolher entre cultura, democracia e progresso, ou nos lançar nos braços do despotismo, cegueira obediência”.
Ao reduzir a luta antifascista, esta luta pela eternidade (como Carlo Rosselli a chamou), a uma luta entre progresso e reação, entre democracia (mas qual?) oprimido. Claramente, os preconceitos de classe antiplebeus colorem o afresco de Scurati: os camponeses sem terra são descritos como “bois cinzentos idiotas”; a “multidão” é vista como “dócil, primitiva”; as pessoas parecem ser guiadas por seus instintos, seus estômagos, seus “humores”, dos quais se diz que Mussolini tem uma “inteligência formidável”; um povo na melhor das hipóteses ausente, na pior consentindo por preguiça. “Sim, a maioria dos italianos”, escreve Scurati, para explicar a atmosfera após o assassinato do líder socialista Matteotti, “horrorizado com o crime, gostaria que a queda do regime recuperasse suas casas infestadas de fantasmas. Mas, então, por volta da hora do jantar, as exigências da vida prevalecem. A moral não é uma delas. O país é opaco, seu senso de justiça é lento, turvo”.
Neste afresco, os antifascistas de baixo aparecem quase exclusivamente em seu papel de vítimas, mortos, espancados, humilhados, como os “dois pobres” condenados por insultar o Duce, que são apresentados como “animais mansos e inofensivos”. Os círculos de emigrantes antifascistas de Nice em que Gino Lucetti – que tentou matar Mussolini – se desenvolveram são apresentados como: “um tribunal de milagres de pobres emigrantes, comunistas, anarquistas, revolucionários, párias, espancados, expulsos, homens que enganaram a fome em diante das mesas das tavernas humildes, entre invertidos, ladrões e putas, numa louvável e, ao mesmo tempo, sublime mistura de embriaguez, vãs esperanças de redenção, idealismos desesperados e miséria crônica, feroz”.
Ainda mais significativo nesse sentido é o fato de que o antifascismo desaparece no terceiro volume, com Scurati decidindo deixar de lado o momento mais importante da luta antifascista no exterior. A década de 1930 provou ser um teste decisivo para o antifascismo. Dez anos de “academia do exílio” em Paris tornaram possível apenas uma alternativa: morte ou “redenção”. Scurati trata do fim da parábola, a derrota republicana na Guerra Civil Espanhola, resumida como uma “guerra interna entre republicanos e franquistas”. Mais uma vez, os antifascistas são aqueles imediatamente executados por ordem de Mussolini, mas não aqueles que lutaram com armas na mão, “hoje na Espanha e amanhã na Itália”; aqueles que clamavam por uma guerra preventiva e uma revolução antifascista; aqueles que precisavam mais da Espanha do que a Espanha precisava deles, como escreveu Emilio Lussu.
Tudo é como se os oprimidos não pudessem desempenhar nenhum papel ativo na luta contra um movimento e um regime construído justamente em oposição às suas lutas. Scurati ignora os oprimidos, talvez em função desse duplo medo: as pessoas que têm medo, mas também os medos estimulados por essa “massa informe, estúpida e apática”. Mas como é possível contemplar a luta antifascista ignorando o subalterno, e vice-versa, como entender o fascismo sem considerar sua dimensão profundamente contrarrevolucionária? Porque o fascismo realmente fez guerra contra os subalternos.
Sob a pena de Scurati, as lutas emancipatórias do bienio rosso (os “dois anos vermelhos” de greves e ocupações em 1919 e 1920) aparecem como “ilusões revolucionárias” que arruinaram a Itália por meio de uma “fúria de greves”, sugerindo que o “revolucionário” ultrajes do movimento trabalhista de alguma forma detonaram o barril de pólvora. Scurati faz Mussolini dizer que “[os comunistas] não começaram essa guerra civil, mas vão terminá-la. Trata-se de tornar a violência cada vez mais inteligente, de inventar a violência cirúrgica”.
A esperança orientou os passos daqueles que participaram das ondas grevistas no período imediato entre guerras, exigindo não apenas aumentos salariais, redução da jornada de trabalho e o fim da escassez de alimentos, mas também mudar o destino do mundo, quebrar as correntes. Tudo parecia possível quando, na Rússia, a primeira revolução socialista finalmente pareceu abrir novas perspectivas. Scurati não fala desse entusiasmo, mas se debruça longamente sobre os “milhões de italianos [que] deixaram de esperar por mudanças e começaram a se sentir ameaçados por ela. O canto dos quadrados se engasgou em um coro. Um grito que já não implorava ao futuro para redimir finalmente o presente, mas implorava que permanecesse não criado. Não uma oração, mas um exorcismo.”
Às vezes Scurati chega a igualar violência (pré)revolucionária e contrarrevolução; sua crítica a-histórica e abstratamente ética da violência lhe permite confundir os campos opostos: “Protestos, devastação, incêndios estão por toda parte. Por todos os lados. A escalada culminou em um bonde em Roma onde, em 12 de setembro, o policial Giovanni Corvi assassinou o sindicalista fascista Armando Casalini com três tiros de revólver enquanto os olhos da criança ainda estavam abertos.” O líder comunista Nicola Bombacci serve perfeitamente a esse propósito. O homem que o autor descreve como “o homem de Moscou”, o “confidente italiano” de Lenin (não está claro em que base), que mais tarde se tornaria um dos fervorosos defensores de Mussolini, serve como um elo entre os dois lados violentos do mesmo “guerra civil europeia” – sobre a qual, no entanto, Scurati não diz nada.
Pois a contrarrevolução não foi organizada apenas na Itália, mas em todos os lugares após a Revolução Russa de Outubro. O anticomunismo não visava apenas o recém-nascido Estado soviético, no qual se concentravam todos os tipos de fantasias, mas também se expressava em hostilidade aos dominados e em uma concepção elitista de democracia, resultado do que Peter Gay chamaria de cultura do ódio. As democracias europeias que emergiram da Primeira Guerra Mundial apoiaram soluções reacionárias para lidar com um comunismo, que era visto como um perigo muito maior.
Quanto aos partidos antifascistas, em M. tudo o que se percebe é a “cegueira” de seus dirigentes: “Os ódios faccionais, a escravidão às fórmulas, a cegueira ideológica, a linguagem que se volta uma e outra vez para questões formais, à pura lógica, a eterna roda das rivalidades pessoais, a surdez ao barulho do mundo, às promessas da aurora”. O Scurati do século XXI esquece de retratar o antifascismo de dentro, dia a dia, como um movimento concreto ancorado em seu tempo, com seus erros, mas também com suas forças. Isso limita severamente a complexidade da situação, mesmo em uma fase particularmente intensa da luta política.
Certamente, a oposição antifascista mostrou-se incapaz de adaptar sua luta à nova configuração política. Esta foi uma inadequação ligada, na pior das hipóteses, a um mal-entendido radical e, na melhor das hipóteses, a uma concepção estreita do fascismo como um fenômeno. O socialismo italiano, sem dúvida, provou-se desastrosamente inadequado diante da situação pós-Primeira Guerra Mundial na Itália. Mas descartar a fundação do Partido Comunista em 1921 — fruto de séria reflexão, cuidadosa elaboração e intensa ação política e social — como uma “divisão demente” ou reduzir a história do movimento operário italiano às vésperas da ascensão de Mussolini a “ ódios faccionais” dificilmente permite ir além dos juízos de valor, de pouca utilidade para uma refundação ou consolidação do antifascismo.
A cegueira denunciada por Scurati não nos ajuda a entender o que deveria ter sido feito, ou melhor, o que deveria ser feito (o famoso desvelamento do presente) em tal situação. A menos que consideremos que apenas o sacrifício de alguns heróis individuais (Matteotti é a única figura totalmente positiva na história) pode redimir toda a Itália.
Sob a pena de Scurati, os subalternos passam de portadores de emancipação a “vítimas” voluntárias ou heróis de sacrifício. Nessa perspectiva, apesar de seu objetivo declarado, M. não pode ser base para refundar o antifascismo. Sua leitura “vitimizadora” da oposição daqueles tempos não pode servir à memória coletiva e à redenção das vítimas de lutas passadas. Ao ignorar a dimensão propriamente revolucionária do antifascismo (e a dimensão contrarrevolucionária do fascismo), M. não pode cumprir a crítica revolucionária do presente, que é a única capaz de enfrentar o novo fascismo. O livro se esforça para perseguir o mundo que era, sem realmente entender o mundo que é.
Colaborador
Enquanto isso, as leis raciais são apresentadas como um “instrumento diplomático”, uma promessa dada a essa aliança, uma “garantia” da firmeza de um acordo duradouro. Essa leitura revisionista é reforçada pelo fato de que a reconstrução de Scurati do curso do fascismo deixa de lado seis anos (de 1932 a 1938), deixando de lado a colonização da Etiópia – uma importante transição entre o racismo colonial e o antissemitismo em casa concebido como instrumento para a “regeneração” dos italianos.
A crítica básica do fascismo, portanto, parece abstratamente moral porque quase apenas a violência e o medo dominam. Na narrativa da ascensão do fascismo ao poder, como na da consolidação de seu regime, Scurati dá pouco espaço às condições econômicas, políticas, sociais e culturais que lhe deram base, seu programa político e ideologia, e o regime que estabeleceu . A historiadora Giulia Albanese tem razão ao apontar que “as páginas da marcha sobre Roma mostram que o evento foi reversível”. Scurati corretamente sugere que o fascismo foi um resultado possível, mas dificilmente automático, do conflito social contemporâneo e que, portanto, a convergência entre a classe dominante e a contrarrevolução – essencial para a chegada do fascismo ao poder – não poderia ser tomada como inevitável.
No entanto, o objeto da atenção do autor não é, nas palavras do historiador Charles S. Maier, “o capitalismo de crise armado de cassetete”, mas sim, e apenas às vezes, a inadequação da classe dominante tradicional, “pessoas de um museu”, composto por uma “burguesia italiana inimiga espiritual do fascismo” diante da nova situação que se abriu em março de 1919. A descrição do rei como “prisioneiro de guerra” e do primeiro-ministro liberal Giovanni Giolitti “tentativa parcial, laboriosa e contraditória de transformar um país antigo e arcaico em uma democracia moderna” parecem exonerar, pelo menos em parte, o estado liberal.
O oprimido ausente
Scurati sustentou em inúmeras entrevistas que “o romance gera um julgamento histórico, moral e civil preciso e firme condenando o fascismo. E o faz justamente porque não parte de um preconceito ideológico.” Toda a questão que isso coloca é a definição de antifascismo que resulta da exposição “terceira” do romancista, mas não “neutra”. O que Scurati quer nos dizer sobre o antifascismo no passado e, talvez mais importante para ele, sobre sua adaptação aos novos tempos?
A questão nos remete ao papel político do romance “histórico”. Em meados da década de 1930, György Lukács dedicou algumas páginas esclarecedoras ao romance antifascista, literatura que, segundo ele, marcou a “ruptura entre o escritor e a vida do povo”. Ele escreveu que “É sobretudo o preconceito que vive no povo, nas massas, o princípio da irracionalidade, do que é puramente instintivo, contra a razão. Com tal concepção do povo, o humanismo destrói suas melhores armas antifascistas”. O filósofo húngaro então pediu o “desmascaramento da hostilidade do fascismo” em relação aos oprimidos para “proteger as forças criativas do povo” porque “as grandes ideias e ações que a humanidade produziu até agora se originaram na vida popular”.
Depois de ler os três volumes de M., não há dúvidas quanto à sua condenação moral do fascismo – apesar das limitações e elementos negligenciados destacados acima. Mas para Scurati, a batalha antifascista é essencialmente uma luta entre a razão e a irracionalidade brutal e bárbara: “Hoje estamos numa encruzilhada: devemos escolher entre cultura, democracia e progresso, ou nos lançar nos braços do despotismo, cegueira obediência”.
Ao reduzir a luta antifascista, esta luta pela eternidade (como Carlo Rosselli a chamou), a uma luta entre progresso e reação, entre democracia (mas qual?) oprimido. Claramente, os preconceitos de classe antiplebeus colorem o afresco de Scurati: os camponeses sem terra são descritos como “bois cinzentos idiotas”; a “multidão” é vista como “dócil, primitiva”; as pessoas parecem ser guiadas por seus instintos, seus estômagos, seus “humores”, dos quais se diz que Mussolini tem uma “inteligência formidável”; um povo na melhor das hipóteses ausente, na pior consentindo por preguiça. “Sim, a maioria dos italianos”, escreve Scurati, para explicar a atmosfera após o assassinato do líder socialista Matteotti, “horrorizado com o crime, gostaria que a queda do regime recuperasse suas casas infestadas de fantasmas. Mas, então, por volta da hora do jantar, as exigências da vida prevalecem. A moral não é uma delas. O país é opaco, seu senso de justiça é lento, turvo”.
Neste afresco, os antifascistas de baixo aparecem quase exclusivamente em seu papel de vítimas, mortos, espancados, humilhados, como os “dois pobres” condenados por insultar o Duce, que são apresentados como “animais mansos e inofensivos”. Os círculos de emigrantes antifascistas de Nice em que Gino Lucetti – que tentou matar Mussolini – se desenvolveram são apresentados como: “um tribunal de milagres de pobres emigrantes, comunistas, anarquistas, revolucionários, párias, espancados, expulsos, homens que enganaram a fome em diante das mesas das tavernas humildes, entre invertidos, ladrões e putas, numa louvável e, ao mesmo tempo, sublime mistura de embriaguez, vãs esperanças de redenção, idealismos desesperados e miséria crônica, feroz”.
Ainda mais significativo nesse sentido é o fato de que o antifascismo desaparece no terceiro volume, com Scurati decidindo deixar de lado o momento mais importante da luta antifascista no exterior. A década de 1930 provou ser um teste decisivo para o antifascismo. Dez anos de “academia do exílio” em Paris tornaram possível apenas uma alternativa: morte ou “redenção”. Scurati trata do fim da parábola, a derrota republicana na Guerra Civil Espanhola, resumida como uma “guerra interna entre republicanos e franquistas”. Mais uma vez, os antifascistas são aqueles imediatamente executados por ordem de Mussolini, mas não aqueles que lutaram com armas na mão, “hoje na Espanha e amanhã na Itália”; aqueles que clamavam por uma guerra preventiva e uma revolução antifascista; aqueles que precisavam mais da Espanha do que a Espanha precisava deles, como escreveu Emilio Lussu.
Tudo é como se os oprimidos não pudessem desempenhar nenhum papel ativo na luta contra um movimento e um regime construído justamente em oposição às suas lutas. Scurati ignora os oprimidos, talvez em função desse duplo medo: as pessoas que têm medo, mas também os medos estimulados por essa “massa informe, estúpida e apática”. Mas como é possível contemplar a luta antifascista ignorando o subalterno, e vice-versa, como entender o fascismo sem considerar sua dimensão profundamente contrarrevolucionária? Porque o fascismo realmente fez guerra contra os subalternos.
Sob a pena de Scurati, as lutas emancipatórias do bienio rosso (os “dois anos vermelhos” de greves e ocupações em 1919 e 1920) aparecem como “ilusões revolucionárias” que arruinaram a Itália por meio de uma “fúria de greves”, sugerindo que o “revolucionário” ultrajes do movimento trabalhista de alguma forma detonaram o barril de pólvora. Scurati faz Mussolini dizer que “[os comunistas] não começaram essa guerra civil, mas vão terminá-la. Trata-se de tornar a violência cada vez mais inteligente, de inventar a violência cirúrgica”.
A esperança orientou os passos daqueles que participaram das ondas grevistas no período imediato entre guerras, exigindo não apenas aumentos salariais, redução da jornada de trabalho e o fim da escassez de alimentos, mas também mudar o destino do mundo, quebrar as correntes. Tudo parecia possível quando, na Rússia, a primeira revolução socialista finalmente pareceu abrir novas perspectivas. Scurati não fala desse entusiasmo, mas se debruça longamente sobre os “milhões de italianos [que] deixaram de esperar por mudanças e começaram a se sentir ameaçados por ela. O canto dos quadrados se engasgou em um coro. Um grito que já não implorava ao futuro para redimir finalmente o presente, mas implorava que permanecesse não criado. Não uma oração, mas um exorcismo.”
Às vezes Scurati chega a igualar violência (pré)revolucionária e contrarrevolução; sua crítica a-histórica e abstratamente ética da violência lhe permite confundir os campos opostos: “Protestos, devastação, incêndios estão por toda parte. Por todos os lados. A escalada culminou em um bonde em Roma onde, em 12 de setembro, o policial Giovanni Corvi assassinou o sindicalista fascista Armando Casalini com três tiros de revólver enquanto os olhos da criança ainda estavam abertos.” O líder comunista Nicola Bombacci serve perfeitamente a esse propósito. O homem que o autor descreve como “o homem de Moscou”, o “confidente italiano” de Lenin (não está claro em que base), que mais tarde se tornaria um dos fervorosos defensores de Mussolini, serve como um elo entre os dois lados violentos do mesmo “guerra civil europeia” – sobre a qual, no entanto, Scurati não diz nada.
Pois a contrarrevolução não foi organizada apenas na Itália, mas em todos os lugares após a Revolução Russa de Outubro. O anticomunismo não visava apenas o recém-nascido Estado soviético, no qual se concentravam todos os tipos de fantasias, mas também se expressava em hostilidade aos dominados e em uma concepção elitista de democracia, resultado do que Peter Gay chamaria de cultura do ódio. As democracias europeias que emergiram da Primeira Guerra Mundial apoiaram soluções reacionárias para lidar com um comunismo, que era visto como um perigo muito maior.
Quanto aos partidos antifascistas, em M. tudo o que se percebe é a “cegueira” de seus dirigentes: “Os ódios faccionais, a escravidão às fórmulas, a cegueira ideológica, a linguagem que se volta uma e outra vez para questões formais, à pura lógica, a eterna roda das rivalidades pessoais, a surdez ao barulho do mundo, às promessas da aurora”. O Scurati do século XXI esquece de retratar o antifascismo de dentro, dia a dia, como um movimento concreto ancorado em seu tempo, com seus erros, mas também com suas forças. Isso limita severamente a complexidade da situação, mesmo em uma fase particularmente intensa da luta política.
Certamente, a oposição antifascista mostrou-se incapaz de adaptar sua luta à nova configuração política. Esta foi uma inadequação ligada, na pior das hipóteses, a um mal-entendido radical e, na melhor das hipóteses, a uma concepção estreita do fascismo como um fenômeno. O socialismo italiano, sem dúvida, provou-se desastrosamente inadequado diante da situação pós-Primeira Guerra Mundial na Itália. Mas descartar a fundação do Partido Comunista em 1921 — fruto de séria reflexão, cuidadosa elaboração e intensa ação política e social — como uma “divisão demente” ou reduzir a história do movimento operário italiano às vésperas da ascensão de Mussolini a “ ódios faccionais” dificilmente permite ir além dos juízos de valor, de pouca utilidade para uma refundação ou consolidação do antifascismo.
A cegueira denunciada por Scurati não nos ajuda a entender o que deveria ter sido feito, ou melhor, o que deveria ser feito (o famoso desvelamento do presente) em tal situação. A menos que consideremos que apenas o sacrifício de alguns heróis individuais (Matteotti é a única figura totalmente positiva na história) pode redimir toda a Itália.
Sob a pena de Scurati, os subalternos passam de portadores de emancipação a “vítimas” voluntárias ou heróis de sacrifício. Nessa perspectiva, apesar de seu objetivo declarado, M. não pode ser base para refundar o antifascismo. Sua leitura “vitimizadora” da oposição daqueles tempos não pode servir à memória coletiva e à redenção das vítimas de lutas passadas. Ao ignorar a dimensão propriamente revolucionária do antifascismo (e a dimensão contrarrevolucionária do fascismo), M. não pode cumprir a crítica revolucionária do presente, que é a única capaz de enfrentar o novo fascismo. O livro se esforça para perseguir o mundo que era, sem realmente entender o mundo que é.
Colaborador
Stefanie Prezioso é professora associada da Universidade de Lausanne e autora de vários trabalhos sobre o antifascismo europeu.
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