Angelo Boccato
A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni participa da cerimônia de posse no Palácio do Quirinal em 22 de outubro de 2022 em Roma, Itália. (Antonio Masiello / Getty Images) |
Tradução / Em 22 de setembro, o ator italiano Pino Insegno (que dubla Viggo Mortensen nos filmes de Peter Jackson, a trilogia O Senhor dos Anéis) deu boas vindas à Giorgia Meloni, antes que ela encerrasse a campanha eleitoral da coalizão de extrema em Roma, utilizando um discurso adaptado de Aragorn, que aparece em O Retorno do Rei. Um sentimento de desconforto se espalhou entre todos os tolkienistas italianos que não se identificam com a apropriação fascista do autor britânico.
A história dessa apropriação pela extrema direita italiana começou na década de 1970. O Senhor dos Anéis foi traduzido para o italiano pela primeira vez em 1971. No contexto dos “anos de chumbo”, o Movimento Social Italiano (MSI) somou-se às forças que impulsionaram a ascensão da Nouvelle Droite, um movimento político e cultural da Nova Direita, e vislumbrou nos elementos tradicionalistas do trabalho de Tolkien uma fonte de inspiração política e cultural, levando ao lançamento do primeiro Acampamento Hobbit em 1977. A experiência também desencadeou o lançamento de revistas como a Éowin, batizada com o nome da princesa de Rohan pelas mulheres ativistas do MSI.
“Todos podem amar Tolkien. O Senhor dos Anéis é uma das obras primas mais grandiosas do século vinte”, afirma Loredana Lipperini, autora e apresentadora de rádio do programa de literatura Fahrenheit na Radio 3, da emissora estatal RAI. “Estamos presos no discurso literário da crítica marxista que repele qualquer coisa que não se conecte ao realismo. Uma grande parte dessa crítica, para os intelectuais italianos, enxerga que toda a literatura fantástica, da fantasia ao horror, passando pela ficcção científica, é ou algo infantil ou algo que pertence à direita.” Elementos biográficos também influenciaram na forma como essas obras foram recebidas. Tolkien era católico e um discreto apoiador do nacionalismo de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola — mas também recusou que seus livros fossem traduzidos para a Alemanha do terceiro Reich, quando a editora Rütten & Loening solicitou a certificação da sua ancestralidade ariana e que confirmasse que ele não possuía origens judaicas.
Conforme Lipperini enfatiza, tem ocorrido uma mudança geracional em termos de crítica literária da esquerda, algo comprovado pelo trabalho e pesquisa de autores como Wu Ming. Mas como a história sobre diferentes raças que se unem apesar de suas diferenças contra um inimigo comum, com um herói improvável, Frodo Bolseiro, que ama suas canecas de cerveja, ficar chapado com charutos de maconha e a paz da natureza, se tornou em um simbolo de narrativas racistas e de extrema direita?
A recepção de Tolkien variou muito de país a país, algo notado por Craig Franson, professor associado de literatura britânica, drama e escrita em La Salle University, na Philadelphia, e co-anfitrião do podcast American ID. “Na Inglaterra da década de 1980 havia uma crítica muito forte, também um pouco mais cedo com Raymond Williams, Fredric Jameson e outros, que o enxergavam dessa forma (como um fascista ou um criptofascista)”. “Contudo, nos Estados Unidos havia uma visão diferente de Tolkien, parcialmente em razão dele ter chegado na década de 1960 no grande momento hippie e logo foi adotado por eles em 1965”, explica Frason. “O período entre 1965 e 1971 é um momento em que ele se torna realmente parte da cultura pop e, ao longo dos próximos cinco ou dez anos, a popularidade dele afunda e desaparece novamente da esfera pública.”
O divisor de águas veio com o lançamento da trilogia de Peter Jackson, O Senhor dos Anéis. A Sociedade do Anel chegou ao cinema em dezembro de 2001 e essa adaptação tolkienista emaranhou-se com a conversa política e cultural no auge da guerra ao terror. A atenção que Tolkien recebeu na cultura pop global também abriu o caminho, nos Estados Unidos, com as guerras no Afeganistão e Iraque, para o interesse pelas obras de Tolkien pela extrema direita norte americana, expressamente em ambientes como o site que disseminam ódio como Stormfront, conforme a explicação de Franson. “As conversas no Stormfront se iniciaram a partir de discussões sobre a guerra no oriente médio e conspirações judaicas, e escalaram, descrevendo judeus como Naxgûl e chamando pessoas de cor de Orcs. Isso se deu no Stormfront e no decorrer do tempo se tornou uma norma por toda as redes sociais. Assim, quando o Breitbart foi lançado em 2007, ele estava repleto dessa linguagem.”
A reação extrema experienciada pelos atores de Os Anéis de Poder, Ismael Cruz Cordova, Sophie Nomvete, Lenny Henry e Cynthia Addai-Robinson tem suas raízes ali e ela se estende, na verdade, para muito além da ideia de fãs tóxicos. Franson estabelece um paralelo entre a nova extrema direita (alt-right) dos Estados Unidos e Giorgia Meloni. “Para mim, o que é crucial nessa história é que os fascistas estão, mais uma vez, usando a cultura popular para criar grandes estímulos de engajamento e isso é algo que sempre funciona para eles. Meloni é um tipo de garota propaganda disso: ela era exatamente a pessoa que eles imaginavam; ela é como se fosse um caso de sucesso daquilo que as pessoas que organizaram o Acampamento Hobbit tinham em mente no princípio.”
“Ela era uma criança que amava Tolkien, que se fantasiava de Hobbit e ia para as escolas recrutar pessoas para o fascismo e fazia isso tendo nascido durante as ondas de terrorismo [da década de 1970]. Houve mais de 1.000 pessoas assassinadas durante os ‘anos de chumbo’, a maior parte delas pelo terrorismo de extrema direita, inclusive o massacre de Bolonha em 1980 [que teve 85 mortos, 200 feridos, o maior massacre de civis na Itália desde a Segunda Guerra Mundial]. No despertar de toda aquela violência, ela pensou que seria uma boa ideia se juntar a um movimento neofascista e se vestir como Hobbit, visitando escolas para recrutar outros jovens”. Outra questão enfatizada por Frason é o quão pouco esses fãs e personalidades da extrema direita mudaram suas estratégias — para manter as pessoas de cor, não-cristãs e queers fora de “sua” Terra Média.
Parte do sucesso da extrema direita em preservar um tipo de hegemonia cultural sobre o gênero fantástico também tem a ver, de acordo com Silvia Costantino, da editora italiana Effequ, com o confuso caldeirão de temas e influências da fantasia, que tende a colocar na mesma cesta Tolkien, Michael Ende (o encontro nacional do grupo Irmãos de Itália é chamado “Atreju” por causa do protagonista de História Sem Fim) e mitos nórdicos. Conforme demonstra Constantino, “há um elemento de tradição com os Acampamentos Hobbit, a revista Éowyn… É relativamente fácil entender a razão pela qual Giorgia Meloni acabou lendo O Senhor dos Anéis e interpretando daquela forma. E então há o elemento da figura feminina. O personagem de Éowyn apresente fortes componentes revolucionários”.
As obras de Tolkien podem ser vistas como telas em branco. Através de lentes internacionalistas é possível ver diferentes raças buscando união; para a extrema direita, Orcs e os homens do sul (Southrons) são os alvos ficcionais para o racismo vil e a xenofobia deles. Independentemente disso, a tomada de Tolkien pela extrema direita e a literatura fantástica já dura muito tempo. É hora da literatura fantástica trilhar uma jornada mais justa, mais verde e mais igualitária.
Colaborador
Angelo Boccato é um jornalista freelance que mora em Londres e seu trabalho apareceu em diferentes publicações, incluindo a Columbia Journalism Review, The Independent e o Open Democracy. Ele twitta em @Ang_Bok e é coapresentador do podcast Post Brexit News Explosion.
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