Sylvia Colombo
Folha de S.Paulo
Depois de lotar os cinemas de várias cidades argentinas, e de ter sido visto por quase 1 milhão de pessoas, muitas das quais aplaudiram o filme de pé, "Argentina, 1985" passa a estar acessível a outros países por meio do streaming. A produção representará o país no Oscar de melhor filme estrangeiro.
Na Argentina, o promotor Julio Strassera, papel de Ricardo Darín, é uma figura conhecida e que até sua morte, em 2015, estava ativo nos debates jurídicos e políticos do país —era antiperonista.
Já para os de fora, a produção servirá para contar como um funcionário público de pouca expressão —e que havia passado a ditadura militar, que durou de 1976 a 1983, sem parecer contrário com o que ocorria no país— viraria o símbolo de um sistema judiciário que foi o único na América Latina a julgar e condenar, logo após o fim do regime, seus principais líderes e responsáveis por crimes contra a humanidade.
Ricardo Darín e Peter Lanzani em cena do filme "Argentina, 1985", de Santiago Mitre - Divulgação |
Designado a elaborar a acusação contra todas as cabeças das juntas militares que governaram a Argentina no período, e quem responsabiliza pela desaparição, morte e tortura de mais de 30 mil pessoas, Strassera contou com pouca ajuda para juntar as evidências.
A polícia não quis apoiá-lo pois, como tantas outras entidades da sociedade, temia que os militares se incomodassem e voltassem a tentar um golpe e recuperar o poder. As ameaças que recebiam eram muito assustadoras, com explosão de carros e outras formas de coação.
Foi por isso que Strassera teve de se rodear de jovens advogados comandados por Luis Moreno Ocampo, vivido por Peter Lanzani, que, depois do julgamento das juntas seria promotor da Corte Penal Internacional.
A vantagem foi que não trabalharam a partir do zero, mas, sim, com os documentos reunidos pela Conadep, a Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas, a partir de relatos de vítimas ou de seus parentes. Tanto a Conadep como o julgamento das Juntas Militares foram iniciativas do primeiro presidente argentino do período democrático, Raúl Alfonsín.
Frase de impacto com a qual Strassera fecha seu pedido de condenação dos repressores, "Nunca mais" é o título do relatório final da Conadep e se transformou em bordão da resistência à repressão na América Latina.
Embora naquela época já fosse sabido que o regime militar havia cometido o que seus advogados chamavam de excessos, poucos tinham ideia da escala e da covardia dos delitos. O julgamento das juntas foi transmitido pela rádio. O relato das vítimas teve longo alcance, a ponto de a mãe de Moreno Ocampo, que ia à missa com o general Videla e o considerava um bom homem, mudar de lado ao ouvir uma mulher que deu à luz dentro do carro de repressores —ela contou que eles não a ajudaram em nada e ainda a puseram a fazer faxina depois do parto.
O julgamento das juntas foi a primeira vez em que toda a sociedade argentina foi exposta às atrocidades cometidas pelos militares. Já seria um evento histórico apenas por isso. Mas o foi também por enfileirar todos os altos comandantes das Forças Armadas no banco dos réus de uma sala de audiência em que se respirava medo, tensão e esperança.
Ali também estavam as Mães da Praça de Maio, além de parentes de vítimas. Quando Strassera faz a acusação, o local explode como se fosse a arquibancada de um estádio, ao qual Videla apenas deita um olhar irônico com ares de psicopata.
O título da obra, porém, é enganoso com relação à história do período. Ao nomeá-la "Argentina, 1985", supõe-se que a ideia é a de mostrar o julgamento das Juntas Militares como algo definitivo, como se o igualasse ao ribunal de Nuremberg.
Que se tratou de um momento histórico, vanguardista na região e que mostrou enorme valentia de um setor da sociedade, não há dúvidas. Mas faltou tratar da questão política, que esvaziaria um pouco seu significado nos anos seguintes. Afinal, pressionado por militares, Alfonsín teve de promulgar leis que limitavam a questão da culpabilidade, o que significou a liberação de vários repressores. Foram elas as leis de Ponto Final, de 1986, e de Obediência Devida, 1987.
Para o desgosto dos que trabalharam tanto pela punição dos repressores, elas seriam seguidas por uma série de indultos distribuídos por Carlos Menem. Os julgamentos dos responsáveis por crimes cometidos pelo Estado só ocorreriam novamente na gestão de Néstor Kirchner. Eles voltaram a condenar os delitos da ditadura, sendo responsáveis, por exemplo, pelo fato de Jorge Rafael Videla, líder da primeira junta, ter vivido seus últimos anos numa prisão, como centenas de outros.
Em tempos de tanta polarização, o filme propõe uma reconciliação nacional algo utópica. Mas é significativo que a violência política que atormentou o país naqueles anos não tenha voltado a ocorrer na mesma escala.
ARGENTINA, 1985
Quando Disponível no Amazon Prime Video na sexta (21 Classificação 14 anos Elenco Ricardo Darín, Peter Lanzani e Gina Mastronicola Produção Argentina, 2022 Direção Santiago Mitre
A polícia não quis apoiá-lo pois, como tantas outras entidades da sociedade, temia que os militares se incomodassem e voltassem a tentar um golpe e recuperar o poder. As ameaças que recebiam eram muito assustadoras, com explosão de carros e outras formas de coação.
Foi por isso que Strassera teve de se rodear de jovens advogados comandados por Luis Moreno Ocampo, vivido por Peter Lanzani, que, depois do julgamento das juntas seria promotor da Corte Penal Internacional.
A vantagem foi que não trabalharam a partir do zero, mas, sim, com os documentos reunidos pela Conadep, a Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas, a partir de relatos de vítimas ou de seus parentes. Tanto a Conadep como o julgamento das Juntas Militares foram iniciativas do primeiro presidente argentino do período democrático, Raúl Alfonsín.
Frase de impacto com a qual Strassera fecha seu pedido de condenação dos repressores, "Nunca mais" é o título do relatório final da Conadep e se transformou em bordão da resistência à repressão na América Latina.
Embora naquela época já fosse sabido que o regime militar havia cometido o que seus advogados chamavam de excessos, poucos tinham ideia da escala e da covardia dos delitos. O julgamento das juntas foi transmitido pela rádio. O relato das vítimas teve longo alcance, a ponto de a mãe de Moreno Ocampo, que ia à missa com o general Videla e o considerava um bom homem, mudar de lado ao ouvir uma mulher que deu à luz dentro do carro de repressores —ela contou que eles não a ajudaram em nada e ainda a puseram a fazer faxina depois do parto.
O julgamento das juntas foi a primeira vez em que toda a sociedade argentina foi exposta às atrocidades cometidas pelos militares. Já seria um evento histórico apenas por isso. Mas o foi também por enfileirar todos os altos comandantes das Forças Armadas no banco dos réus de uma sala de audiência em que se respirava medo, tensão e esperança.
Ali também estavam as Mães da Praça de Maio, além de parentes de vítimas. Quando Strassera faz a acusação, o local explode como se fosse a arquibancada de um estádio, ao qual Videla apenas deita um olhar irônico com ares de psicopata.
O título da obra, porém, é enganoso com relação à história do período. Ao nomeá-la "Argentina, 1985", supõe-se que a ideia é a de mostrar o julgamento das Juntas Militares como algo definitivo, como se o igualasse ao ribunal de Nuremberg.
Que se tratou de um momento histórico, vanguardista na região e que mostrou enorme valentia de um setor da sociedade, não há dúvidas. Mas faltou tratar da questão política, que esvaziaria um pouco seu significado nos anos seguintes. Afinal, pressionado por militares, Alfonsín teve de promulgar leis que limitavam a questão da culpabilidade, o que significou a liberação de vários repressores. Foram elas as leis de Ponto Final, de 1986, e de Obediência Devida, 1987.
Para o desgosto dos que trabalharam tanto pela punição dos repressores, elas seriam seguidas por uma série de indultos distribuídos por Carlos Menem. Os julgamentos dos responsáveis por crimes cometidos pelo Estado só ocorreriam novamente na gestão de Néstor Kirchner. Eles voltaram a condenar os delitos da ditadura, sendo responsáveis, por exemplo, pelo fato de Jorge Rafael Videla, líder da primeira junta, ter vivido seus últimos anos numa prisão, como centenas de outros.
Em tempos de tanta polarização, o filme propõe uma reconciliação nacional algo utópica. Mas é significativo que a violência política que atormentou o país naqueles anos não tenha voltado a ocorrer na mesma escala.
ARGENTINA, 1985
Quando Disponível no Amazon Prime Video na sexta (21 Classificação 14 anos Elenco Ricardo Darín, Peter Lanzani e Gina Mastronicola Produção Argentina, 2022 Direção Santiago Mitre
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