31 de outubro de 2022

A vitória de Lula traz um sopro de esperança para a democracia

Lula derrotou o presidente da extrema direita, Jair Bolsonaro, na eleição mais acirrada da história do país. O veterano de esquerda enfrentará enormes desafios ao tomar posse, mas seu triunfo sobre Bolsonaro deu à política brasileira uma nova chance após uma presidência catastrófica.

Olavo Passos de Souza

Jacobin

O presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, cumprimenta apoiadores após vencer a eleição presidencial, São Paulo, Brasil, 30 de outubro. (Caio GUATELLI / AFP via Getty Images)

Tradução / No domingo, 30 de outubro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu uma vitória histórica sobre o atual presidente Jair Bolsonaro. Na disputa mais acirrada desde a redemocratização brasileira na década de 1980, Bolsonaro se tornou o primeiro presidente em exercício a perder a reeleição.

A eleição dividiu o Brasil entre a defesa da democracia e um retorno à política civil de um lado, e o autoritarismo e a política reacionária do outro. A vitória de Lula, com 50,9% dos votos contra os 49,1% de Bolsonaro, provocou comemorações nas maiores avenidas do Brasil, onde o grito popular pediu o fim da crise social que assolar o país.

O jornalista brasileiro Fernando Gabeira, que lutou como guerrilheiro contra a ditadura militar, chamou a eleição de “uma vitória para o Brasil, e uma vitória para a humanidade. Agora podemos respirar de novo”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um rival de longa data de Lula, enviou a ele uma mensagem de felicitações proclamando que “a democracia venceu”.

Vitória para a democracia

Em 2018, o total de votos de Bolsonaro no segundo turno foi um pouco mais alto: 58,2 milhões em comparação com 57,7 há quatro anos. Mas Lula conseguiu também conseguiu um aumento na votação frente a Fernando Haddad, seu correligionário do Partido dos Trabalhadores (PT), principal oponente de Bolsonaro em 2018, aumentando de 47 milhões de votos há quatro anos para 60 milhões de votos desta vez.

Lula fez campanha com uma mensagem de democracia e pragmatismo, defendendo a unidade política, e uma valorização dos direitos humanos e civis. Para seu candidato a vice, Lula escolheu Geraldo Alckmin, outro antigo rival, que foi seu oponente presidencial em 2006. A frente ampla de Lula, composta de figuras que vão dos socialistas aos neoliberais, denunciou o desprezo de Bolsonaro pelo povo brasileiro, pela economia e pelo meio ambiente, prometendo um retorno à estabilidade e ao progresso em oposição aos quatro anos de caos de Bolsonaro.

No discurso de vitória, Lula incluiu a seguinte proclamação:

Esta não é uma vitória do PT, não é uma vitória dos partidos políticos, mas uma vitória do movimento democrático, do povo brasileiro que deseja mais do que aquilo que lhe foi dado. Democracia é mais do que uma palavra bonita a ser jogada pelo ar – é algo que temos que sentir na pele.

É a terceira vitória presidencial na carreira de Lula, após dois mandatos consecutivos, entre 2002 e 2010, consolidando sua posição como o político vivo mais popular do Brasil.

Entretanto, a eleição de Lula é um momento amargo e doce, pois as eleições legislativas e governamentais do último mês foram em grande parte vencidas por candidatos conservadores ou de extrema direita que apoiaram Bolsonaro. Lula enfrentará uma hostilidade sem precedentes como presidente, já que seus opositores políticos controlarão o Congresso brasileiro, bem como seus maiores e mais ricos Estados.

Além disso, Bolsonaro afirmou repetidamente no passado que a única maneira que ele poderia perder seria no caso de fraude. Com sua base cada vez mais radicalizada e disposta a agir violentamente, resta saber o que os próximos meses significarão para a democracia brasileira.

Uma campanha sem igual

No período que antecedeu a eleição, Bolsonaro se apresentou como um campeão de estabilidade e progresso, alegando que o Brasil estava em uma condição próspera com uma economia forte, desafiando todas as evidências contrárias. Uma de suas principais ferramentas de campanha foi o uso do Auxilio Brasil, um programa social destinado aos cidadãos de baixa renda, através de transferências financeiras diretas. Inicialmente criado como um programa emergencial durante a pandemia da COVID-19, ele provou ser uma das poucas ferramentas que Bolsonaro teve para elevar seus níveis desastrosos de aprovação.

Com isto em mente, o presidente fez pressão para manter o programa vivo até outubro e turbinar a campanha presidencial. Bolsonaro afirmou que o Auxilio Brasil foi mais bem-sucedido que o Bolsa Família de Lula, o histórico programa de apoio às pessoas de baixa renda do ex-presidente que ajudou a tirar dezenas de milhões de pessoas da pobreza nos anos 2000. Enquanto a política parecia estar em desacordo com a posição econômica neoliberal de Bolsonaro, ele usou o Auxilio Brasil para se retratar como um ótimo líder humanitário.

Seus críticos, por outro lado, o chamaram de o maior ato de compra de votos em massa da história do Brasil. Entretanto, é inegável que o programa emergencial de Bolsonaro, introduzido após quatro anos de desordem econômica e social, pelo qual seu próprio governo foi responsável, aumentou sua popularidade e ajudou a mantê-lo competitivo nas urnas.

Lula, por sua vez, trabalhou duro para se apresentar como a única escolha democrática. Lembrou de seu próprio governo como uma era próspera para o país, enquanto se defendia de uma oposição amargamente hostil que o enchia de acusações falsas relacionadas à mentiras, ao comunismo e até mesmo ao satanismo.

Mesmo estando à frente nas pesquisas eleitorais, Lula não estava tão acostumado a fazer campanha na era digital quanto Bolsonaro, cujos apoiadores inundaram as redes com a narrativa reacionária. O ex-presidente, que concorreu pela primeira vez às eleições nos anos 1980 e hoje nem sequer possui um telefone celular, utilizou locais de comunicação mais tradicionais. Isto fez um forte contraste com Bolsonaro, um usuário ativo do Twitter que implantou uma máquina de notícias falsas incrivelmente eficaz.

Em uma campanha eleitoral repleta de hostilidade e violência, os dois candidatos permaneceram acirrados nas urnas durante todo o mês de outubro.

Democracia em perigo

As eleições desde o retorno da democracia nos anos 1980 têm sido marcadas pela relativa civilidade e pela transição pacífica do poder. Esta tendência começou a enfraquecer em 2010, pois a polarização transformou as campanhas do país cada vez mais hostis, fazendo com que as campanhas presidenciais de 2014, 2018 e agora 2022 fossem cada vez mais agressivas que as últimas.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a instituição que regulamenta as eleições, aplica regras rígidas de campanha para garantir que o processo democrático possa prosseguir pacificamente. A todos os candidatos é garantido um tempo de propaganda nos canais de televisão e rádio proporcional à força legislativa de seu partido. A campanha na véspera das eleições ou dentro das áreas eleitorais é ilegal, e propagandas falsas podem ser denunciadas e retiradas de circulação.

Este sistema, juntamente com as urnas eletrônicas de votação que têm se mostrado consistentemente confiáveis, fizeram das eleições brasileiras uma referência de eficiência e representação no mundo democrático. Porém, a nova era de desinformação e polarização testou estas medidas de proteção eleitoral até o limite de suas possibilidades.

Os aplicativos de comunicação como o WhatsApp são focos de notícias falsas e extremamente difíceis de monitorar. Isto tornou quase impossível evitar que a desinformação fosse enviada de um lado para o outro. As autoridades eleitorais removeram de circulação um número recorde de anúncios de TV e rádio que eram considerados agressivos, mas somente depois de seu efeito já ter sido divulgado. Os candidatos de extrema direita cresceram mais confiantes e revitalizados em seus ataques, já que a marca do conservadorismo reacionário de Bolsonaro retratava a esquerda brasileira como um inimigo mortal.

É o caso do governo Bolsonaro e seus aliados, que desempenharam um papel ativo nesta investida. O presidente constantemente atacou o processo eleitoral e respondeu aos esforços para sancionar seu comportamento antidemocrático com gritos de perseguição. Bolsonaro apresentou o TSE, a Suprema Corte (STF), os institutos de votação e a mídia em geral como parte de uma conspiração para retirá-lo do poder.

Violência da extrema direita

Esta demonização das bases democráticas alimentou um clima perigoso entre os seguidores de Bolsonaro. Os trabalhadores que fazem pesquisas eleitorais foram atacados nas ruas e apoiadores de extrema direita assassinaram várias pessoas, incluindo um homem que foi morto com um facão por expressar seu apoio a Lula. Os apelos para que a STF fosse dissolvida se tornaram comuns entre os eleitores bolsonaristas.

O mês de outubro, que culminou na eleição de domingo, foi um campo de batalha de desinformação, extremismo político e até violência aberta. Em 23 de outubro, Roberto Jefferson, um político ligado historicamente com a direita e agora com Bolsonaro, que uma vez empregou seu filho como estagiário, atacou a Polícia Federal (PF). Os ataques virtuais de Jefferson ao STF haviam violado os termos de sua prisão domiciliar e provocaram uma ação para prendê-lo, o que Bolsonaro tentou evitar.

Quando os policiais federais se aproximaram da casa de Jefferson, o ex-político respondeu com tiros e granadas, antes de ser finalmente detido. Em qualquer outra eleição, este evento teria dominado o ciclo de notícias. Entretanto, a campanha de Bolsonaro conseguiu desviar a atenção dela, direcionando a conversa para uma suposta fraude nas inserções das campanhas na rádio.

Em outro incidente, desta vez em 29 de outubro, a deputada de direita Carla Zambelli sacou uma arma em público e perseguiu um homem em uma rua de São Paulo. Zambelli alegou que o homem a estava perseguindo por sua posição política e a tinha agredido fisicamente, embora provas em vídeo desmascaram essas acusações. Transportar armas de fogo, escondidas ou não, no dia anterior a uma eleição é ilegal no país.

No entanto, Zambelli desafiou abertamente a lei, declarando em uma entrevista na TV após o incidente que ela não reconheceu a decisão da STF sobre o assunto. Esta injeção de violência armada e intimidação na cena política mostra como os esforços de Bolsonaro corroeram o discurso público e a confiança nas instituições democráticas.

A fase final

Após o desempenho surpreendentemente forte de Bolsonaro no primeiro turno e as vitórias esmagadoras dos candidatos bolsonaristas nas eleições do Congresso, Senado e Governo, a campanha do presidente foi para a ofensiva, na esperança de que eles pudessem alcançar uma surpresa. Durante a primeira quinzena de outubro, o número de votos dos bolsonaristas aumentou continuamente.

Isto serviu como um alerta para a campanha de Lula e o ex-presidente fez uma série de movimentos para garantir que ele mantivesse sua vantagem sobre Bolsonaro. Talvez o mais polêmico de todos foi sua abordagem ao bloco evangélico.

Pastores evangélicos, que constituem uma poderosa força conservadora na política e na sociedade em sua maioria apoiaram Bolsonaro e sua postura moralista “pró-família”. A direita religiosa pregou ativamente contra todas as formas de política de esquerda e alegou que Lula fecharia as igrejas. O multimilionário televangelista Silas Malafaia ficou ao lado do presidente Bolsonaro em muitos de seus comícios de campanha e até viajou com ele para o funeral da Rainha Isabel II na Inglaterra.

Lula tentou afastar a base religiosa de seu oponente, incluindo referências a Deus em seus discursos e escrevendo uma “carta aos evangélicos” na qual ele procurava dissipar seus medos. Esta carta lembrava sua “Carta ao povo brasileiro” de 2002, na véspera de sua primeira vitória presidencial, que tentou combater as alegações de seus oponentes de que ele era um comunista disfarçado. O apelo pragmático aos valores tradicionais por Lula desanimou alguns de sua base, enquanto outros o viam como uma necessidade em uma eleição apertada.

Nos debates presidenciais de outubro, Bolsonaro também mudou de tática. Afastando-se de sua retórica agressiva e explosiva bem conhecida, Bolsonaro tentou cultivar a imagem de uma figura calma e civilizada, elogiando seu próprio mandato como presidente enquanto acusava Lula de tentar prejudicar sua reputação. Esta surpreendente mudança de tática funcionou bem para o presidente em exercício, colocando Lula na posição de defender a si mesmo e suas políticas.

A reorientação foi em grande parte o trabalho do chefe de campanha de Bolsonaro e seu segundo filho, Carlos, que por muitos anos foi o formador da imagem pública de seu pai. Junto com seus dois irmãos, Carlos se tornou um político de sucesso por mérito próprio. Ele é um parceiro do aliado de Donald Trump, Steve Bannon, e da empresa Cambridge Analytica, e tem se mostrado um mestre da desinformação nas redes sociais.

A derrota de Jair Bolsonaro pode trazer um fim à sua própria carreira política. Entretanto, seus filhos continuam ativos e influentes, e sua marca de autoritário reacionário e protofascista tem crescido mais forte desde sua vitória eleitoral em 2018.

A resposta de Bolsonaro

Odesprezo de Bolsonaro pelo processo democrático é bem conhecido. Ele forjou sua carreira política como apologista da ditadura militar e de seus torturadores. A cada passo, Bolsonaro tentou barrar as medidas democráticas a fim de garantir sua reeleição.

Ao longo de 2022, ele fez campanha para a instauração do voto por cédulas de papel no lugar das comprovadas e testadas urnas eletrônicas, alegando que essas urnas seriam inevitavelmente invadidas. Ele alegou ter provas de irregularidades (mas nunca as apresentou) e pediu aos militares que fizessem sua própria contagem dos votos.

Quando os governos estaduais liberaram o transporte público no dia da eleição para garantir maior comparecimento no primeiro turno, Bolsonaro tentou detê-los. No segundo turno, a Polícia Federal Rodoviária realizou blitz no trânsito perto das áreas de votação no nordeste, o reduto político de Lula. Isto constituiu um movimento de obstrução legal para a interferência ilegal.

O STF tornou oficial a vitória de Lula, proclamando que não há “nenhum risco de que os resultados sejam ameaçados”. O presidente da Câmara dos Deputados, aliado de Bolsonaro, Arthur Lira, também reconheceu publicamente o resultado. Estes pronunciamentos certamente tornarão mais difícil para Bolsonaro desafiar sua derrota.

No entanto, as eleições estabeleceram uma forte união de políticos bolsonaristas que fizeram campanha ativa em favor do presidente. Sua base se mostrou mais do que disposta a ignorar o processo democrático a fim de proteger seu líder. Será que o Brasil ainda pode enfrentar algo semelhante aos tumultos de 6 de janeiro no Capitólio, nos Estados Unidos?

Desafio e esperança

Em seu discurso de vitória, Lula comemorou seu retorno político: “Eles tentaram me enterrar, mas aqui estou eu”. Eleito pela primeira vez em 2002, Lula teve que moderar suas posturas de esquerda para governar um país tão diverso politicamente como o Brasil. Seu tempo no cargo foi altamente bem-sucedido e terminou com uma taxa de aprovação de 87%.

Na década de 2010, Lula viu seu partido, o PT, demonizado pela investigação tendenciosa de Sergio Moro. Moro prendeu Lula sob falsas acusações em 2018, bem a tempo de impedi-lo de concorrer à presidência contra Bolsonaro. O STF anulou sua condenação em 2019, permitindo que ele voltasse ao meio político, e agora ele conseguiu um terceiro mandato, vinte anos após sua primeira vitória presidencial.

No entanto, o Lula que saiu vitorioso ontem não é a mesma figura que se tornou presidente em 2002, e o país que ele irá governar também mudou. A fim de derrotar Bolsonaro, Lula se moveu cada vez mais em direção ao centro para ampliar seu apelo. Seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, é um oponente ideológico da esquerda, junto com muitos de seus outros aliados. O apelo de Lula aos evangélicos também tem servido para fortalecer o lugar da religião na vida política brasileira.

O Congresso que o novo presidente irá presidir é muito mais conservador e hostil do que aquele com o qual ele trabalhou nos anos 2000. Lula enfrenta uma série de desafios assustadores, tais como reverter os danos causados à Amazônia, reconstruir as entidades sociais e ambientais que Bolsonaro destruiu, e combater a cultura de ódio e preconceito que o seu antecessor cultivava. Mas quaisquer que sejam as provações que possam surgir, sua vitória deu à democracia e ao debate público uma nova chance em um país que precisava desesperadamente de esperança.

Colaborador

Olavo Passos de Souza é doutorando em história pela Stanford University.

Bolsonaro perdeu, mas seguirá ditando ritmo da política

Presidente articulou melhor que outros políticos valores emergentes da sociedade

Miguel Lago

Cientista político, professor da Escola de Assuntos Públicos da Sciences Po (Paris) e da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Columbia (Nova York) e diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)

Folha de S.Paulo

Eleições costumam ser encaradas como forma de premiar ou punir o governo. O governante que melhora a vidas das pessoas seria reeleito ou elegeria seu sucessor. Aquele que piorasse a vida da população, não.

Em que pese a derrota, é surpreendente o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro (PL). A economia piorou, a fome voltou, as políticas públicas foram desmanteladas, milhares de pessoas morreram na pandemia por causa do comportamento do presidente e o futuro foi hipotecado. Em circunstâncias normais, não estaria sequer no segundo turno.

De onde vem a força de Bolsonaro? Alguns dirão que a sociedade brasileira é intrinsecamente conservadora e, portanto, preocupada com a preservação dos valores cristãos e da família. O capitão reformado seria aquele que melhor representa esse ideário.

Apoiadores de Bolsonaro acompanham a apuração das urnas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

A conclusão me parece apressada e superficial. Bolsonaro não é conservador, muito menos representa os valores cristãos.

O conservadorismo político se construiu integralmente em oposição à ruptura e à revolução. Mudanças radicais são seu pesadelo, e toda a força política conservadora busca suavizar as mudanças, impedir os arroubos, as rupturas. O conservadorismo é, por essência, contrarrevolucionário.

Bolsonaro é um revolucionário de extrema direita. Nada em seu discurso se relaciona à tradição conservadora brasileira. Ao contrário, ele articula forças emergentes e insurgentes presentes em nossa sociedade: a religiosidade neopentecostal, a estética do agro e a sociabilidade de perfil.

O Brasil é o maior país católico do mundo, mas a força religiosa preponderante é a neopentecostal. Para grande parte dos fiéis católicos, a identidade católica não é definidora das escolhas do dia a dia, como é a neopentecostal.

Esta identidade condiciona todas as decisões, desde a forma de se vestir, se comportar, consumir e votar. Sua influência no comportamento dos brasileiros é muito maior. Ainda que minoritária do ponto de vista estatístico, ela pesa muito mais do que a grande maioria silenciosa e desarticulada.

Sobre o segundo ponto, o Brasil depende cada vez mais do agronegócio. Seu peso na economia tem sido crescente e acompanha a desindustrialização do país. Essa força econômica emergente articula uma estética própria.

A vestimenta de gaúchos e sertanejos, tão típica de nossa tradição rural, foi substituídas pela de caubói. O rodeio se tornou o grande festival do país, e a música que mais toca nas rádios brasileiras é uma espécie de country music cantada em português.

A posse e o porte de arma completam a composição deste novo "homem do campo". A promoção dessa nova estética é articulada pelo setor e difundida pelo país inteiro sob os slogans "o agro é pop", "o agro é tech" e daí por diante…

Quanto ao último ponto, a população brasileira está entre as maiores consumidoras de redes sociais do mundo. A sociabilidade de grande parte de nossos compatriotas se dá primordialmente através dos perfis de redes sociais. Somos aquilo que desejamos projetar em nossos perfis. O conhecimento foi substituído pela opinião, e o encontro na praça deu lugar à aventura narcísica.

Bolsonaro soube articular muito bem esse novo ambiente comunicacional com a identidade neopentecostal e a estética do agro. Seu movimento se tornou o fio condutor dessas forças propulsoras e a partir delas o capitão reformado construiu uma nova gramática política desprendida da lógica do "bom governo".

O que está em jogo é derrubar a tradição brasileira e substituí-la por uma nova visão de mundo. Para tanto é necessário eliminar o "inimigo" —nomeado como "a esquerda", mas, na realidade, o bolsonarismo tem como alvo as construções sociais e institucionais de décadas da sociedade brasileira.

O bolsonarismo representa uma ruptura política e cultural com a tradição brasileira. Quem vota em Bolsonaro não o faz por acreditar racionalmente que ele representará melhor seus interesses, mas por representar suas opiniões. Trata-se de um voto exclusivamente identitário.

Enquanto essas forças forem as identidades políticas preponderantes no país, o bolsonarismo seguirá ditando o ritmo da política. Bolsonaro perdeu neste domingo (30) nas urnas, mas o trabalho para derrotar o bolsonarismo na sociedade será imenso.

Opções golpistas encolhem e Bolsonaro encara abismo isolado

Se apostar na bagunça dos caminhoneiros, presidente enfrentará reação quase unânime

Folha de S.Paulo

Quando apareceu rapidamente em frente às câmaras para saudar o fim do processo eleitoral e abrir caminho para manter seu quinhão de poder no terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Arthur Lira (PP) disparou a mais importante sinalização institucional da noite do domingo (30).

O presidente Jair Bolsonaro (PL) está mais isolado do que nunca, mesmo contando seu padrão insular de articulação política. O presidente da Câmara foi seguidos pelo do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e por toda a litania dos Poderes no reconhecimento do resultado das urnas.

Bolsonaro deixa o Palácio da Alvorada rumo ao Planalto na manhã desta segunda (31) - Evaristo Sá/AFP

Ninguém apareceu para gritar que houve fraude fora das redes robotizadas do bolsonarismo. Nenhuma Damares, nenhum Moro, nenhuma Zambelli. E os líderes mundiais rapidamente parabenizaram Lula, Joe Biden (EUA) à frente.

Ato contínuo, o mandatário máximo se comportou como criança que perdeu a partida e foi correndo para casa se trancar em um silêncio vexatório, digno de um João Figueiredo saindo do Planalto para não passar a faixa a José Sarney em 1985. E não pôde levar consigo a bola do jogo.

Ela ficou com seus aliados, após quase quatro anos de ameaças de ruptura de ordens diversas. Não que o potencial disruptivo do presidente tenha se exaurido por completo, como o silêncio que mantém até a confecção destas linhas indica e as barricadas em mais de 240 pontos de estradas federais provam.

Mas tudo indica que, ao contemplar o abismo em sua solidão, Bolsonaro se veja na posição descrita por Friedrich Nietzsche em 1886 e seja encarado de volta. E o que ele verá é uma pletora de ameaças a quaisquer manifestações golpistas daqui em diante.

Um importante presidente de partido de centro dizia nesta manhã que, se tentar amplificar a bagunça ensaiada desde domingo por seus aliados caminhoneiros, Bolsonaro irá encarar nada menos que a sugestão para que renuncie. Impeachment, se houvesse tempo hábil, estaria à mão também.

Outro líder, este do centrão que reabsorveu Bolsonaro e aproveitou-se de sua musculatura eleitoral para engordar a ponto de dominar de vez a Câmara e o Senado, diz que esforços estão sendo feitos para que o presidente entre em modo de resignação e entenda que só isso o salva de uma saraivada imediata de questionamentos jurídicos.

Pois o emprego da Polícia Rodoviária Federal na evidente tentativa de intimidar eleitores nordestinos, e na relatada inação em alguns pontos de bloqueio de estradas, configura crime de responsabilidade claro, mesmo na visão deste aliado. Não seria o primeiro para o qual o establishment fecharia os olhos em nome de não balançar ainda mais o barco.

Mas aqui voltamos ao abismo, ou seja, qual a contemplação que Bolsonaro faz. Nos delírios bolsonaristas, amparados no forte apoio a seus atos antidemocráticos, particularmente os feriados de 7 de Setembro de 2021 e neste ano, uma derrota para Lula implicaria um movimento de rua imediato em favor do presidente.

Até aqui, o que se vê são crimes contra o direito de ir e vir praticados por uma minoria importante e organizada, mas uma minoria. E todo o mundo político, salvo talvez os filhos de Bolsonaro, o áulico Walter Braga Netto e alguns generais do bolsonarismo, ex-usuários de farda ou não, já avisou que não entrará no jogo.

Emparedados ficam os militares, que foram instrumentalizados por Bolsonaro ao servir à sua campanha contra as urnas eletrônicas: como a Folha mostrou domingo, há pressão interna no Planalto para um relatório sugerindo fraudes a ser assinado pela Defesa.

Se não há nenhum indício de que apoiariam uma contestação com armas na mão, a movimentação nas estradas enseja o temor de uma querela institucional: algum governador pede para o Exército fazer o que a PRF não está fazendo e liberar estrada, e Bolsonaro nega a autorização, forçando a entrada do Supremo na discussão.

Mas essa hipótese extrema, com suas variantes, já se mostrou rejeitada pelo entorno ampliado de Bolsonaro, para não falar em seus adversários percebidos. Mais importante, há a posição do serviço ativo. O Alto-Comando do Exército, principal colegiado militar do país, sinalizou ao governo que não irá aderir a nenhuma contestação da eleição.

Um dos movimentos centrais nesse balé foi dado pelo assertivo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. Ele matou no peito, para usar a expressão de gosto em Brasília, a cartada dada pela PRF no domingo. Chamou seu comandante para uma conversinha, conseguiu desmoralizar o processo golpista e, de quebra, não escalou a crise ao manter o cronograma das eleições.

Sem adiamento do pleito, tudo transcorreu com tensão, mas com formatação de naturalidade democrática. Resta saber se a tática do domingo seguirá a mesma, ou se o ministro irá usar o arsenal que tem à disposição para enquadrar o que resta do governo Bolsonaro.

Essa munição é outro componente do abismo à frente do presidente, que de resto sempre trabalhou com a hipótese de que poderia ser preso assim que perdesse o foro privilegiado. Agora a data está estabelecida, e o modelo Roberto Jefferson ou Carla Zambelli de reação ronda conversas de adversários e aliados.

Bolsonaro vende a ideia de que algum tipo de imunidade para si e sua família garantiria a estabilidade pós-derrota. O problema, para ele, é a credibilidade de sua tática mesmo entre quem lhe dá sustentação.

Lula terá enorme desafio de dissolver polarização, dizem analistas

Silêncio de Bolsonaro e manifestações questionando eleição sugerem pacificação distante

Uirá Machado

Folha de S.Paulo

É difícil imaginar que a polarização da sociedade brasileira vá se diluir com a eleição deste domingo (30). O longo silêncio de Jair Bolsonaro (PL), as manifestações de caminhoneiros país afora e os episódios de violência antes e depois da votação sugerem que a tensão vai continuar por um bom tempo.

Analistas ouvidos pela Folha consideram que a temperatura pode baixar caso Bolsonaro adote medidas de conciliação, mas, mesmo nesse cenário, a divisão não vai desaparecer de uma hora para a outra.

Manifestantes ateiam fogo para bloquear estrada em Vázea Grande, no Mato Grosso - Rogerio Florentino/Reuters

Os dois polos desse racha podem ser descritos de diferentes maneiras: lulistas X bolsonaristas, petistas X antipetistas, progressistas X conservadores, antibolsonaristas X bolsonaristas, democratas X direita radical.

Pouco importa, pois todo mundo sabe do que se trata. De um lado estão os que, sendo simpatizantes do PT ou não, votaram em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e lhe deram a vitória apertada; do outro figuram os que lutaram pela reeleição de Bolsonaro.

"Essa divisão vai continuar", afirma o cientista político Claudio Couto, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas).

"A grande dificuldade do próximo governo vai ser atenuar essa divisão porque eliminá-la eu acho que é praticamente impossível. Vai depender muito da habilidade do Lula, dos acordos que ele conseguir fazer no Congresso, mas sobretudo no diálogo com diferentes setores da sociedade", diz Couto.

Para o cientista político, os protestos de bolsonaristas questionando o resultado das urnas e a demora do presidente em reconhecer a derrota, que Couto classifica de "silêncio retumbante", indica a dificuldade que Lula terá pela frente.

Apoiadores de Bolsonaro não só repetem o discurso de fraude nas urnas como começam a falar em atuar pelo impeachment de Lula e de Geraldo Alckmin (PSB).

"Como é que fala em impeachment de um governo que nem sequer tomou posse? Não faz sentido isso se a gente pensar em termos lógicos", diz Couto. "Mas eles não operam segundo a lógica, pelo menos não do ponto de vista da legalidade", completa.

Na sua visão, o tom conciliador de Lula em seu discurso foi um passo importante, mas isso não basta para que as pessoas retomem a capacidade de dialogar. "Vamos ter que esperar um bom tempo para ter uma pacificação", diz ele.

Para Couto, é necessário que os brasileiros voltem a se sentir no campo da democracia, pouco importando as opções em termos de políticas públicas. "Enquanto isso não acontecer, ficaremos nessa situação aflitiva, com chances razoáveis de violência."

Ele concorda com a análise da socióloga Angela Alonso, que aponta uma clivagem na sociedade brasileira.

Professora da USP e colunista da Folha, a lógica do confronto vai permanecer por um bom tempo porque as pessoas passaram a se identificar antes pela sua preferência política do que por seus demais papéis na sociedade.

Essa hipótese ajudaria a entender, para ficar apenas em dois exemplos, por que os papéis de médico e paciente e de patrão e empregado têm sido deixados em segundo plano em alguns casos, com a identidade formada pela preferência política monopolizando a relação social.

O cientista político Felipe Borba acrescenta um fator de instabilidade nessa equação já explosiva: "Nesses grupos radicais, algumas lideranças são autônomas em relação a Bolsonaro", afirma o professor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e coordenador do Giel (Grupo de Investigação Eleitoral).

Ele se refere sobretudo a caminhoneiros e evangélicos com capacidade de mobilizar as pessoas em torno de uma ideia golpista. Ainda assim, diz ele, o principal gatilho é mesmo Bolsonaro. "Ele diminuindo o tom, os outros apoiadores também vão diminuir", afirma Borba.

Ainda que isso aconteça, o desafio permanecerá para o próximo ano, e por isso Borba descreve a situação em termos superlativos: "Foi a maior vitória de um partido de esquerda no Brasil. E parece ser o maior desafio político que o Lula vai enfrentar na carreira dele".

Não há receita simples para superar esse ódio eleitoral. De acordo com Rodrigo Tavares, colunista da Folha, a lista de atitudes a serem adotadas por Lula inclui reconhecer a divisão e implementar políticas que levem em conta os derrotados nas urnas, a fim de evitar a sensação de que um grupo está sendo excluído da sociedade.

No pior cenário, esse receio de ser ignorado pelo poder público e de não mais fazer parte da democracia pode ser um dos detonadores de um conflito social armado, segundo afirma a cientista política Barbara F. Walter no livro "Como as Guerras Civis Começam" (Zahar, 2022).

Na obra, ela demonstra que o risco de uma guerra civil começar é maior em países que estão saindo de uma autocracia e se tornando democráticos, ou deixando de ser democráticos para virar uma autocracia. O Brasil de Bolsonaro está entre os exemplos que ela cita.

Entrevista: "Ato em defesa da democracia foi uma fala de setores fora da esquerda contra autoritarismo", diz Carlos Fico

Segundo o professor de História do Brasil da UFRJ, resultado é "choque de realidade", e a restauração da normalidade democrática deve ser a prioridade de Lula

André Duchiade


Bolsonaristas lamentam a derrota nas urnas, reunidos em frente ao condomínio de luxo onde vive o presidente Alexandre Cassiano/Agência O Globo

Muitas vezes, se diz que o país sai dividido de uma eleição. Este caso se aplica mais a esta eleição do que a outras?

Este muitas vezes é um lugar-comum, mas neste caso se aplica inteiramente. Foi a eleição mais acirrada da História do Brasil desde 1945. Houve uma diferença de sete pontos percentuais em 89 entre Collor e Lula, três pontos entre Dilma e Aécio, e, em 1955, cinco pontos entre Juscelino e Juárez Távora, mais por causa do bom desempenho do terceiro colocado [Ademar de Barros]. As eleições de 2022 têm um ineditismo por esse acirramento total, com a divisão sendo quase meio a meio.

Uma grande coalizão democrática se uniu atrás de Lula contra Bolsonaro. Fazer a gestão dessa coalizão será o principal desafio do governo?

É impressionante que, para derrotar Bolsonaro, tenha sido importante um esforço de união sem precedentes. Essa é a mais ampla frente de que tenho notícia. Isso tem dois aspectos. O primeiro é que foi preciso um esforço gigantesco, o que mostra a força eleitoral de Bolsonaro e do bolsonarismo. O segundo é que há realmente um grande desafio de governabilidade. A pergunta que fica é se o presidente eleito governará com essa frente. A meu ver, é a única solução possível para minimizar os prejuízos do governo Bolsonaro para a democracia brasileira.

Carlos Fico, historiador e professor titular da UFRJ — Foto: Fernando Souza 13-03-2020

Quais podem ser os pontos de convergência da coalizão?

O grande ponto de convergência é a restauração plena da democracia e da governabilidade em bases democráticas. Não houve uma polarização, mas, sim, uma divisão de antípodas, entre autoritarismo e democracia. O governo Bolsonaro se caracterizou não só pelo autoritarismo, mas pelo desmanche de várias estruturas de governabilidade democráticas: pelo desmanche dos órgãos colegiados, pela presença de muitos militares em cargos de governo, e pelo desprezo por certas agendas que caracterizam um país democrático. A necessidade de um governo que expresse essa frente ampla em defesa da democracia me parece fundamental diante dos prejuízos gerados pelo governo Bolsonaro. A questão principal que deveria preocupar a composição do governo, os seus primeiros atos e a composição do Ministério é a restauração da governabilidade democrática.

O que a votação tão forte de Bolsonaro nos diz?

A eleição de Lula em condições tão difíceis, sendo necessário esse esforço de união de uma frente ampla e por uma margem tão reduzida, é uma espécie de choque de realidade para as pessoas que entendiam que a sociedade brasileira se caracterizava majoritariamente por um perfil progressista. Afinal, quase metade do eleitorado optou por um candidato autoritário, antivacina, armamentista, misógino, homofóbico, que não defende os direitos humanos e fez declarações racistas. Então, isso não se deve a uma manipulação, não se deve a fake news. Isso se deve a uma adesão eleitoral, que eu chamo de adesão por afeto. É muito preocupante. Considero o resultado um grande choque de realidade para quem não percebia esse caráter, vamos dizer, muito de direita e com um viés muito preconceituoso de uma parcela tão significativa do eleitorado brasileiro.

Como Lula pode lidar com esses setores radicalizados?

Há o radicalismo, mas também situações que são criminosas. O outro ineditismo destas eleições foi a ocorrência das transgressões eleitorais mais diversas, o que mostra como Bolsonaro conseguiu intimidar a Justiça Eleitoral, que não reagiu em diversos casos. As transgressões eleitorais incluem a emenda que instituímos um estado de emergência que nem existe no estatuto legal brasileiro, a PEC Kamikaze, pois não se pode instituir benefícios no período eleitoral, o uso do Sete de Setembro como comício, as diversas ameaças, o uso de prédios públicos, e, hoje [ontem] mesmo, a ação da Polícia Rodoviária Federal. Então, é preciso distinguir o que são posições de uma direita extremamente conservadora e o que são estratégias criminosas do bolsonarismo. Foram muitos casos.

Lula disse que não será candidato em 2026. Por onde pode se dar a renovação da esquerda?

Não só esquerda e o PT, mas também os bolsonaristas terão muitas dificuldades para lançar candidatos em 2026. Porque pela primeira vez na História do Brasil tivemos uma competição entre dois candidatos extremamente carismáticos cujos eleitorados aderiu a eles com uma fidelidade afetiva, como se fossem times de futebol. Isso nunca tinha acontecido. Agora temos um eleitorado que se caracteriza pela adesão por afeto, e por isso será muito difícil substituir e encontrar uma renovação tanto para Lula quanto para Bolsonaro. Pela direita, talvez Tarcísio de Freitas ou [o governador de Minas, Romeu] Zema, caso Bolsonaro não volte a se candidatar. No caso do PT, o nome que ocorre a muitos é o de Haddad, mas com a derrota em São Paulo fica difícil. A renovação do sistema político é muito difícil, porque houve competição entre candidatos extremamente carismáticos com adesão do eleitorado por afeto

Bolsonaro é o líder natural desta direita? Ele é indispensável a ela?

Do ponto de vista eleitoral, Bolsonaro é incontestavelmente a grande liderança dessa direita e vai permanecer assim. No entanto, não creio que tenha muita capacidade de articulação para se constituir como uma liderança política capaz de estabelecer diretrizes e organizar o setor. Há que se considerar também o seguinte: até recentemente, a direita no Brasil não tinha partidos bem organizados. Os eleitores de direita votavam no PSDB e em outras siglas. Agora eles contam com partidos organizados, do PL ao União Brasil. Isso também é um componente novo. Até muito recentemente, ninguém se declarava propriamente um conservador de direita no páis, e, nos últimos anos, muitos passaram orgulhosamente a assim se assumirem. Então agora há uma estrutura partidária de direita, uma coisa relativamente nova no Brasil, há uma liderança eleitoral incontestável e muito popular, e há a mudança de um perfil político e cultural. Vamos ter que verificar agora se vai haver, por exemplo, um esforço de união dessas agremiações de direita.

A centro-direita é uma das grandes derrotadas das eleições. O senhor vê alguma saída para a crise do setor?

O chamado centro democrático e também a direita democrática saem enfraquecidos. Os setores conservadores mais democráticos, a direita não radicalizada e os liberais não conseguiram viabilizar a chamada terceira via, e tiveram de se associar a Lula em defesa da democracia. Esses setores vão ter de se repensar e de lutar inclusive pela hegemonia nesses partidos de direita. É incerto se esses partidos vão tender a uma posição mais extremada ou se vão se situar no contexto da democracia.

Qual deve ser a posição do Supremo a partir de agora?

Bolsonaro deu aquela declaração de que não proporia um aumento do número de ministros do Supremo, mas não disse que seus parlamentares não poderiam fazer isso. Com a vitória do Lula, felizmente essa proposta cai por terra. Mas outras possibilidades de provocação ou de agressão ao Supremo Tribunal Federal não podem ser descartadas. É possível que haja outras agressões no Congresso, como a questão das decisões monocráticas ou mesmo a proposta de impeachment de ministros do Supremo. Vale lembrar que um pedido de impeachment de ministro do STF depende de dois terços do Senado, mas se a denúncia é recebida pela Mesa, e então é considerada pertinente pela maioria simples, e implica na suspensão do exercício das funções de juiz.

O que prever da relação de Lula com os militares?

Segundo o TCU, são mais de 6 mil militares em cargos comissionados. Se ele quiser esse número, que é uma coisa exageradíssima, ele vai enfrentar resistências. Haverá resistências também se quiser modificar o regime Previdenciário dessa categoria, que foi muito beneficiada pela Reforma da Previdência do governo Bolsonaro. Inclusive alguns militares já deram sinais de que não esperam que isso se altere. Essas são as duas grandes dificuldades, o número excessivo de militares em cargos para os quais não têm vocação e a questão da Previdência, Do ponto de vista do relacionamento mais institucional do PT, sobretudo de Lula, com os militares, não creio qu venham a ocorrer problemas, porque Lula já passou por dois governos. Não só ele, mas várias pessoas do seu entorno têm boas relações com os militares.

Qual papel devemos esperar do Centrão?

Tradicionalmente, o Centrão é negociável. Há uma quantidade grande, em torno de 160, de deputados que não são exatamente independentes, mas que não fizeram uma declaração clara de apoio a nenhum dos candidatos nessa eleição presidencial; Lula pode contar com 138 da base do PT e da esquerda, e há em torno de 240 bolsonaristas. Ele vai ter de negociar com esses outros 160. Essa situação se repete no Senado, onde há mais ou menos 40 deputados alinhados com Bolsonaro, mas nem todos são inteiramente afinados, há cerca de 13 com perfil mais neutro. Lula vai ter de fazer essa negociação, que será uma negociação dura e problemática. Prevejo que possa construir maiorias ad hoc, caso a caso.

Nestas eleições, as acusações não pegaram nos candidatos, com posições muito marcadas. O que isto diz sobre a política brasileira?

Este é um fenômeno da História política quando ocorre competição entre dois candidatos que tem adesão por afeto, como chamamos em psicologia política. O eleitorado desses candidatos é extremamente fiel e imune a escândalos e erros de campanha, de modo que a porcentagem das pesquisas se mantinha sempre mais ou menos estável, mesmo quando aconteciam eventos que, em uma campanha eleitoral normal, teriam uma afetação tremenda. A campanha de Bolsonaro enfrentou escândalos chocantes e mesmo assim as pesquisas não foram afetadas. Getúlio Vargas pode ter sido pode ser considerado um candidato com adesão por afeto, e Jânio Quadros também. Mas dois candidatos com esse perfil carismático concorrendo na mesma eleição é algo inédito.

Como o senhor avalia o papel dos evangélicos nestas eleições?

Setores vinculados ao fundamentalismo cristão vão buscar avançar pauta de costumes em funçaõ da bancada expressiva que vão ter no Congresso. Essa pauta de costumes não prosperou muito no primeiro mandato, mas temas como aborto e ideologia de gênero certamente vão prosseguir. certamente isso vai prosseguir, muito ruim que a política esteja permeada por essa questão da religiosidade, o que é muito negativo, não deveria ser assim

Lula fez campanha prometendo aumentar gastos, e o Orçamento de 2023 já está estourado devido às medidas de Bolsonaro. O quão séria é esta questão?

Será um grande desafio, junto com a questão da recomposição da governabilidade da gestão pública democrática. Porque houve esse aumento de gastos em 2022, e foram feitas promessas nesse sentido. Isso torna muito preocupante o futuro das contas públicas e o eventual impacto inflacionário decorrente. Haverá uma relação tensa entre a necessidade óbvia de um ajuste fiscal, do qual Lula não poderá correr, e a demanda dos eleitores cobrando as promessas de campanha. Isso certamente vai ser um enorme problema par sobretudo no primeiro ano do governo Lula.

Alguns diziam que a Nova República acabou. Como o senhor vê estes comentários agora?

Chamo isto de retórica da iminência. É muito comum nesses eventos dramáticos entenderem que estamos à beira do abismo, diante de um país paralisado, da eleição mais importante da História, essas coisas. Penso que devemos ter cuidado com esse tipo de retórica. Minha impressão é que estamos com uma sociedade muito cansada do histrionismo, da violência. Um pouco de tranquilidade não faz mal para ninguém. É claro que a eleição tem muitos ineditismos, mas é de todo recomendável que busquemos mais tranquilidade e rotina.

A grande apropriação pós-fascista italiana de Tolkien

Giorgia Meloni, como muitos na extrema-direita italiana, é uma obcecada por O Senhor dos Anéis - levantando questões sobre o que há na obra de Tolkien que parece atrair os fascistas.

Angelo Boccato


A primeira-ministra italiana Giorgia Meloni participa da cerimônia de posse no Palácio do Quirinal em 22 de outubro de 2022 em Roma, Itália. (Antonio Masiello / Getty Images)

Tradução / Em 22 de setembro, o ator italiano Pino Insegno (que dubla Viggo Mortensen nos filmes de Peter Jackson, a trilogia O Senhor dos Anéis) deu boas vindas à Giorgia Meloni, antes que ela encerrasse a campanha eleitoral da coalizão de extrema em Roma, utilizando um discurso adaptado de Aragorn, que aparece em O Retorno do Rei. Um sentimento de desconforto se espalhou entre todos os tolkienistas italianos que não se identificam com a apropriação fascista do autor britânico.

A história dessa apropriação pela extrema direita italiana começou na década de 1970. O Senhor dos Anéis foi traduzido para o italiano pela primeira vez em 1971. No contexto dos “anos de chumbo”, o Movimento Social Italiano (MSI) somou-se às forças que impulsionaram a ascensão da Nouvelle Droite, um movimento político e cultural da Nova Direita, e vislumbrou nos elementos tradicionalistas do trabalho de Tolkien uma fonte de inspiração política e cultural, levando ao lançamento do primeiro Acampamento Hobbit em 1977. A experiência também desencadeou o lançamento de revistas como a Éowin, batizada com o nome da princesa de Rohan pelas mulheres ativistas do MSI.

“Todos podem amar Tolkien. O Senhor dos Anéis é uma das obras primas mais grandiosas do século vinte”, afirma Loredana Lipperini, autora e apresentadora de rádio do programa de literatura Fahrenheit na Radio 3, da emissora estatal RAI. “Estamos presos no discurso literário da crítica marxista que repele qualquer coisa que não se conecte ao realismo. Uma grande parte dessa crítica, para os intelectuais italianos, enxerga que toda a literatura fantástica, da fantasia ao horror, passando pela ficcção científica, é ou algo infantil ou algo que pertence à direita.” Elementos biográficos também influenciaram na forma como essas obras foram recebidas. Tolkien era católico e um discreto apoiador do nacionalismo de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola — mas também recusou que seus livros fossem traduzidos para a Alemanha do terceiro Reich, quando a editora Rütten & Loening solicitou a certificação da sua ancestralidade ariana e que confirmasse que ele não possuía origens judaicas.

Conforme Lipperini enfatiza, tem ocorrido uma mudança geracional em termos de crítica literária da esquerda, algo comprovado pelo trabalho e pesquisa de autores como Wu Ming. Mas como a história sobre diferentes raças que se unem apesar de suas diferenças contra um inimigo comum, com um herói improvável, Frodo Bolseiro, que ama suas canecas de cerveja, ficar chapado com charutos de maconha e a paz da natureza, se tornou em um simbolo de narrativas racistas e de extrema direita?

A recepção de Tolkien variou muito de país a país, algo notado por Craig Franson, professor associado de literatura britânica, drama e escrita em La Salle University, na Philadelphia, e co-anfitrião do podcast American ID. “Na Inglaterra da década de 1980 havia uma crítica muito forte, também um pouco mais cedo com Raymond Williams, Fredric Jameson e outros, que o enxergavam dessa forma (como um fascista ou um criptofascista)”. “Contudo, nos Estados Unidos havia uma visão diferente de Tolkien, parcialmente em razão dele ter chegado na década de 1960 no grande momento hippie e logo foi adotado por eles em 1965”, explica Frason. “O período entre 1965 e 1971 é um momento em que ele se torna realmente parte da cultura pop e, ao longo dos próximos cinco ou dez anos, a popularidade dele afunda e desaparece novamente da esfera pública.”

O divisor de águas veio com o lançamento da trilogia de Peter Jackson, O Senhor dos Anéis. A Sociedade do Anel chegou ao cinema em dezembro de 2001 e essa adaptação tolkienista emaranhou-se com a conversa política e cultural no auge da guerra ao terror. A atenção que Tolkien recebeu na cultura pop global também abriu o caminho, nos Estados Unidos, com as guerras no Afeganistão e Iraque, para o interesse pelas obras de Tolkien pela extrema direita norte americana, expressamente em ambientes como o site que disseminam ódio como Stormfront, conforme a explicação de Franson. “As conversas no Stormfront se iniciaram a partir de discussões sobre a guerra no oriente médio e conspirações judaicas, e escalaram, descrevendo judeus como Naxgûl e chamando pessoas de cor de Orcs. Isso se deu no Stormfront e no decorrer do tempo se tornou uma norma por toda as redes sociais. Assim, quando o Breitbart foi lançado em 2007, ele estava repleto dessa linguagem.”

A reação extrema experienciada pelos atores de Os Anéis de Poder, Ismael Cruz Cordova, Sophie Nomvete, Lenny Henry e Cynthia Addai-Robinson tem suas raízes ali e ela se estende, na verdade, para muito além da ideia de fãs tóxicos. Franson estabelece um paralelo entre a nova extrema direita (alt-right) dos Estados Unidos e Giorgia Meloni. “Para mim, o que é crucial nessa história é que os fascistas estão, mais uma vez, usando a cultura popular para criar grandes estímulos de engajamento e isso é algo que sempre funciona para eles. Meloni é um tipo de garota propaganda disso: ela era exatamente a pessoa que eles imaginavam; ela é como se fosse um caso de sucesso daquilo que as pessoas que organizaram o Acampamento Hobbit tinham em mente no princípio.”

“Ela era uma criança que amava Tolkien, que se fantasiava de Hobbit e ia para as escolas recrutar pessoas para o fascismo e fazia isso tendo nascido durante as ondas de terrorismo [da década de 1970]. Houve mais de 1.000 pessoas assassinadas durante os ‘anos de chumbo’, a maior parte delas pelo terrorismo de extrema direita, inclusive o massacre de Bolonha em 1980 [que teve 85 mortos, 200 feridos, o maior massacre de civis na Itália desde a Segunda Guerra Mundial]. No despertar de toda aquela violência, ela pensou que seria uma boa ideia se juntar a um movimento neofascista e se vestir como Hobbit, visitando escolas para recrutar outros jovens”. Outra questão enfatizada por Frason é o quão pouco esses fãs e personalidades da extrema direita mudaram suas estratégias — para manter as pessoas de cor, não-cristãs e queers fora de “sua” Terra Média.

Parte do sucesso da extrema direita em preservar um tipo de hegemonia cultural sobre o gênero fantástico também tem a ver, de acordo com Silvia Costantino, da editora italiana Effequ, com o confuso caldeirão de temas e influências da fantasia, que tende a colocar na mesma cesta Tolkien, Michael Ende (o encontro nacional do grupo Irmãos de Itália é chamado “Atreju” por causa do protagonista de História Sem Fim) e mitos nórdicos. Conforme demonstra Constantino, “há um elemento de tradição com os Acampamentos Hobbit, a revista Éowyn… É relativamente fácil entender a razão pela qual Giorgia Meloni acabou lendo O Senhor dos Anéis e interpretando daquela forma. E então há o elemento da figura feminina. O personagem de Éowyn apresente fortes componentes revolucionários”.

As obras de Tolkien podem ser vistas como telas em branco. Através de lentes internacionalistas é possível ver diferentes raças buscando união; para a extrema direita, Orcs e os homens do sul (Southrons) são os alvos ficcionais para o racismo vil e a xenofobia deles. Independentemente disso, a tomada de Tolkien pela extrema direita e a literatura fantástica já dura muito tempo. É hora da literatura fantástica trilhar uma jornada mais justa, mais verde e mais igualitária.

Colaborador

Angelo Boccato é um jornalista freelance que mora em Londres e seu trabalho apareceu em diferentes publicações, incluindo a Columbia Journalism Review, The Independent e o Open Democracy. Ele twitta em @Ang_Bok e é coapresentador do podcast Post Brexit News Explosion.

A liberdade de expressão é importante demais para ser confiada a Elon Musk

Os liberais que minimizam a importância da liberdade de expressão no Twitter estão completamente errados. Mas não devemos esperar que um bilionário com histórico de reprimir seus críticos cumpra sua retórica de liberdade de expressão.

Ben Burgis

Jacobin

O logotipo do Twitter e a conta do Twitter de Elon Musk exibidos em uma tela em 30 de outubro de 2022, após a compra da plataforma por Musk. (Jakub Porzycki / NurPhoto via Getty Images)

Agora que a tão esperada aquisição do Twitter por Elon Musk finalmente foi aprovada, muitos liberais estão com raiva pelos motivos errados. Eles parecem estar preocupados que Musk permita muita liberdade de expressão na plataforma e que isso permita intolerância e desinformação.

Como socialista democrata, rejeito essa visão na sua raiz. Capacitar pessoas comuns para administrar a sociedade em seus próprios interesses é o ponto principal do projeto socialista – e isso é totalmente incompatível com a visão tecnocrática liberal de que não se pode confiar nas pessoas comuns para decidir por si mesmas em que acreditar.

Os socialistas obviamente rejeitam a visão de que a liberdade de expressão se aplica apenas aos governos e que as empresas privadas devem poder fazer o que quiserem. Se eu não achasse que regimes privados de poder podem ser perigosos, eu não seria um socialista em primeiro lugar.

Uma preocupação maior sobre o Twitter se tornar propriedade pessoal de Musk é que ele não pode ser confiável para praticar o que prega. Musk tem um histórico de tentar calar seus próprios críticos. Ele também está profundamente conectado ao estado de segurança nacional, dando-lhe um interesse em habilitar o gigantesco regime de vigilância dos Estados Unidos – historicamente uma das maiores ameaças à liberdade de expressão no mundo.

Permitir que bilionários comprem e vendam fontes de informação de vital importância é ruim para a democracia. Também é uma aposta arriscada para as normas de liberdade de expressão que Musk afirma venerar. A maneira mais eficaz de proteger essas normas nas grandes empresas de rede social seria removê-las do controle de pessoas ricas cujas políticas de “moderação de conteúdo” não são restritas pela Primeira Emenda. Precisamos transformar nossa praça pública digital em propriedade pública.

A liberdade de expressão causou “morte e sofrimento incalculáveis”?

Aescritora e “analista de defesa” Brynn Tannehill passa muito tempo soando o alarme sobre o autoritarismo conservador. Isso é uma coisa razoável para se preocupar. A direita é perturbadoramente autoritária.

No entanto, quando se trata da aquisição do Twitter por Musk, a crítica de Tannehill é que ele não será autoritário o suficiente. Em um artigo na New Republic, Tannehill afirmou que “a ideia de liberdade de expressão de Musk” vai “ajudar a arruinar a América”. Essa “ideia de liberdade de expressão” parece ser simplesmente que as normas de liberdade de expressão são importantes nas redes sociais, e as pessoas devem ser livres para fazer afirmações controversas – incluindo aquelas que podem ser ofensivas ou imprecisas.

Ela afirma que “a liberdade de expressão causou morte e sofrimento incalculáveis quando usada para disseminar ódio ou espalhar desinformação” e cita a popularidade de Mein Kampf e The Protocols of the Elders of Zion em Weimar, Alemanha. De acordo com Tannehill, esses livros foram “principais contribuintes para a queda da democracia alemã, a ascensão do Terceiro Reich e o próprio Holocausto”.

A compreensão de alguns dos fatos históricos citados por Tannehill é, na melhor das hipóteses, instável. Por exemplo, Mein Kampf não estava nem perto de ser popular o suficiente na Alemanha de Weimar para ser um contribuinte “chave” para a ascensão de Adolf Hitler ao poder. Como observa William Shirer em A Ascensão e Queda do Terceiro Reich, o livro Mein Kampf foi tão mal escrito que até mesmo muitos nazistas admitiam em particular que, por mais que tentassem lê-lo, não conseguiam “chegar até o fim das suas 782 páginas túrgidas”. Os números de vendas foram minúsculos nos primeiros anos após a publicação, e só se tornou um best-seller depois que Hitler ascendeu ao poder, e possuir uma cópia – embora não necessariamente a leitura – era uma maneira de sinalizar entusiasmo pelo novo regime.

Devemos confiar em censores benevolentes para acabar com a “desinformação”?

Aparentemente desconhecendo a longa história de defesa da liberdade de expressão da esquerda, desde os dias de Karl Marx como editor de jornal, que trava uma verdadeira cruzada lutando contra os censores na Alemanha, até o “Movimento de Liberdade de Expressão” na Universidade Berkeley, que ajudou a dar origem à Nova Esquerda, Tannehill associa essa “ideia de liberdade de expressão” com o libertarianismo. Ela chama a visão de que “a verdade inevitavelmente conquistará narrativas comprovadamente falsas” de “fantasia libertária”.

É verdade que tais alegações de inevitabilidade são tolas. Mas, como os defensores da liberdade de expressão de esquerda sempre reconheceram, essa é uma questão muito diferente de saber se as consequências de confiar em censores benevolentes para determinar quais narrativas são falsas, serão melhores ou piores do que as consequências de deixar o resto de nós decidir por nós mesmos.

É fácil dizer, nas palavras de Tip O’Neill, que todos têm direito à sua “própria opinião”, mas não “aos seus próprios fatos”, mas na prática todo debate político é pelo menos parcialmente um debate sobre fatos. Pense nas divergências entre apoiadores e opositores de um salário mínimo mais alto, sobre se o aumento do salário mínimo levaria ao aumento do desemprego, ou as divergências entre apoiadores e opositores da invasão do Iraque, sobre armas de destruição em massa.

Se o Twitter existisse em 2002 e 2003 – e tivesse o tipo de política agressiva de “moderação de conteúdo” defendida por Tannehill – quem você acha que teria mais probabilidade de ser censurado por “difundir informações erradas”? Usuários que concordaram com o governo dos EUA (e com o New York Times) que o Iraque tinha armas de destruição em massa, ou usuários que acusaram funcionários do governo Bush de conspirar para enganar o público?

Ou imagine que em poucos anos algum equivalente do fundador do sindicato “Amazon Labor Union”, Chris Smalls, consiga organizar uma das fábricas Tesla, de Musk. Esta pessoa acusa Tesla de alguma prática de trabalho particularmente horripilante e perigosa. Tesla acusa o líder sindical de espalhar desinformação.

Você esperaria, nessa situação, que as políticas de “moderação de conteúdo” do Twitter dessem à Tesla ou aos sindicalistas o poder de reprimir duramente a “desinformação” – ou que o Twitter tivesse saído do negócio de tentar julgar quais narrativas eram verdadeiras e quais eram falsas?

Musk pode ser confiável para proteger a liberdade de expressão?

Uma quantidade deprimente de discurso de compra de Musk no Twitter consiste em fãs de Musk comemorando o retorno da liberdade de expressão à plataforma, por um lado, e por outro, detratores de Musk comparando a perspectiva dele em instituir normas mais flexíveis, como na cena do filme Ghostbusters, onde todos os fantasmas são libertados para causar estragos. O que fica de fora de tudo isso é que muito pouco sobre o histórico de Musk deve nos dar qualquer razão para ter certeza de que ele será fiel à sua palavra.

Por um lado, como Yasha Levine apontou, a reputação de Musk como um “forasteiro” da liberdade de expressão não sobrevive a uma olhada em suas atividades comerciais como empreiteiro militar. Este é um cara que tem “recebido centenas de milhões de dólares equipando as agências de inteligência mais secretas e ‘estrategicamente importantes’ da América”. Ele está sendo pago pela Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para equipar a Ucrânia com terminais da Starlink durante a guerra com a Rússia. Ele tentou passar por caridade, mas a USAID parece ter pago US$ 900 por peça acima do valor de mercado pelos terminais. Ele tem um “contrato militar de quase US$ 300 milhões para lançar um satélite espião norte-americano confidencial”. Ele “assinou um acordo de US$ 149 milhões para rastrear mísseis – também conhecido como espionar o céu”. E, claro, sua empresa SpaceX está fazendo bilhões em negócios com a NASA.

Se você confia em alguém na posição de Musk para dizer “não” quando o estado de segurança nacional o encoraja a censurar denunciantes, e jornalistas investigativos que os estão constrangendo, tudo o que posso dizer é que você tem um nível de confiança fofo sobre a moral do caráter de um oligarca.



Há a história pessoal de Musk de – para ser gentil – não lidar bem com as críticas. Ele pagou a um investigador particular US$ 50.000 para desenterrar sujeira de alguém que cometeu o “grave crime” de dizer que Musk estava envolvido em um “golpe de relações públicas” idiota. Ele demitiu ilegalmente organizadores sindicais – e demitiu, hackeou e espionou denunciantes corporativos que o confrontaram. Ele tentou enganar os críticos. Ele até pediu ao governo chinês que censurasse as postagens nas mídias sociais que criticam a Tesla.

Além de todas as razões para desconfiar desse oligarca em particular, há uma questão muito maior aqui sobre permitir que um único indivíduo rico tenha tanto controle sobre o fluxo de informações. Quando o Twitter aceitou a oferta de Musk pela primeira vez em abril, eu disse: “É um absurdo que vivamos no tipo de inferno capitalista onde a única esperança de normas razoáveis que protegem a liberdade de expressão online é que tenhamos sorte e o tipo certo de bilionário compre a nossa praça pública digital”.

A verdadeira solução é transformar nossa praça pública digital em propriedade pública. Isso não significaria que o Twitter seria livre para todos, onde você poderia postar literalmente qualquer coisa a qualquer momento – mais do que você pode se aproximar do microfone na reunião do conselho local e começar a gritar obscenidades a plenos pulmões. Mas isso significaria que os administradores do Twitter teriam a obrigação legal de provar que não estavam reprimindo o conteúdo político do discurso de maneiras que – no contexto de um Twitter de propriedade pública – violariam a Primeira Emenda.

Como Edward Snowden apontou, muitos problemas de moderação de conteúdo poderiam ser resolvidos pelos próprios usuários se empresas como o Twitter lhes dessem ferramentas melhores para filtrar o conteúdo que veem. Mas mesmo os críticos das empresas tão apaixonados pelo valor da liberdade de expressão quanto eu podem admitir que elaborar regras razoáveis para evitar assédio, doxing, abuso de crianças e assim por diante, pode representar desafios reais e complicados.

Em um futuro em que as grandes empresas de mídia social fossem colocadas sob propriedade pública, eu esperaria que batalhas confusas fossem travadas sobre essas questões, tanto nos tribunais quanto no “tribunal” da opinião pública. Mas, por mais confuso que seja, eu preferiria infinitamente isso a deixar essas questões para os caprichos de um único bilionário. A liberdade de expressão é muito importante para ser confiada à Elon Musk.

Colaborador

Ben Burgis é professor de filosofia e autor de Give Them An Argument: Logic for the Left. Ele faz um quadro semanal chamado "The Debunk", no The Michael Brooks Show.

Lula sacramenta vitória sobre Bolsonaro com avanço no Sudeste e fortaleza no Nordeste

Petista reduziu diferença em regiões que deram vitória em 2018 ao atual presidente, sobretudo em SP

Italo Nogueira
Júlia Barbon

Folha de S.Paulo

O avanço sobre o eleitorado do Sudeste e a manutenção de uma fortaleza no eleitorado nordestino foram os principais resultados, comparados à disputa de 2018, que garantiram a vitória no domingo (30) a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Jair Bolsonaro (PL).

A margem mais estreita na história da disputa presidencial, porém, mostrou que a obtenção de novos votos em outras regiões bolsonaristas, como Sul e Centro-Oeste, ainda que em menor quantidade, também foram essenciais para o retorno do petista à Presidência.

Caminhada de Lula (PT) com Geraldo Alckmin e o candidato derrotado a Governador por SP, Fernando Haddad, na avenida Paulista, na véspera do segundo turno - Mathilde Missioneiro - 29.out.2022 / Folhapress

Lula teve 2,1 milhões de votos a mais que Bolsonaro, que havia vencido Fernando Haddad (PT) há quatro anos com uma diferença de 10,7 milhões de votos. Mais da metade da virada de 12,8 milhões no resultado em favor do PT neste ano se deu no Sudeste.

Na região que concentra a maior parte do eleitorado, o presidente eleito conseguiu reduzir em 9,1 milhões de votos a diferença para Bolsonaro. Lula obteve 7,8 milhões a mais para o partido, enquanto o atual presidente reduziu em 1,3 milhão a votação em relação à disputa de quatro anos atrás.

Boa parte desse avanço se deu em São Paulo, onde Haddad nacionalizou a disputa estadual, tendo sido derrotado pelo ex-ministro bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos). No estado, a candidatura do PT teve 4,3 milhões de votos a mais que em 2018, enquanto o atual presidente perdeu 1,1 milhão de votos.

Foi no Sudeste também que Lula conseguiu avançar mais no percentual de votos válidos. Ele obteve 11,1 pontos percentuais a mais do que em 2018. Ainda assim foi derrotado por Bolsonaro na região por 53,3% a 45,7%.

Em menor intensidade, a redução na diferença também aconteceu no Sul e no Centro-Oeste, regiões em que Bolsonaro havia obtido 68,3% e 66,6% dos votos válidos, respectivamente.

No Sul, Bolsonaro teve uma redução de 144 mil votos, associada a uma ampliação de 1,6 milhões de votos na candidatura do PT, todos em comparação com 2018.

No maior eleitorado da região, Rio Grande do Sul, o governador eleito Eduardo Leite (PSDB) optou pela neutralidade na disputa contra o ex-ministro bolsonarista Onyx Lorenzoni (PL). O PT-RS defendeu voto crítico no tucano, fazendo um movimento de aproximação que pode ter contribuído para a melhoria na disputa presidencial para o PT.

Lula obteve 628 mil votos a mais entre os gaúchos que Haddad, enquanto Bolsonaro teve 160 mil a menos do que em 2018.

No Centro-Oeste, os dois ampliaram suas votações, com vantagem para o petista. Lula obteve 928 mil votos a mais para o PT, enquanto o atual presidente conseguiu 168 mil eleitores a mais que há quatro anos.

Um dos trunfos do petista na região foi a forte mobilização da senadora Simone Tebet (MDB-MS) na campanha ao longo do segundo turno. A campanha de Lula avalia que ela ajudou a reduzir resistência entre alguns empresários e trabalhadores do agronegócio.

Ainda assim, Bolsonaro manteve-se à frente de Lula na região, obtendo 60,2% dos votos válidos, uma queda de 6,3 pontos percentuais em relação a 2018.

Enquanto o atual presidente viu a candidatura do PT reduzir a diferença nos seus nichos regionais, Lula conseguiu manter a fortaleza petista no Nordeste.

O presidente eleito obteve 69,3% dos votos válidos na região, uma discreta queda em relação aos 69,7% obtidos por Haddad em 2018.

Bolsonaro investiu forte para tentar enfraquecer o domínio petista no Nordeste com o anúncio de benefícios sociais ao longo do segundo turno.

A votação indica que o presidente teve parcial sucesso na empreitada, pois conseguiu 1,1 milhão de votos a mais na região do que em 2018. Contudo, Lula também ampliou a votação obtida por Haddad em 2,2 milhões de votos, mantendo a distância percentual semelhante.

Bolsonaro teve dificuldades em obter palanques na região no segundo turno. Os candidatos que disputaram o cargo de governador no domingo optaram ou pela neutralidade ou pelo apoio a Lula, temendo desgaste com o eleitorado petista de seus estados.

No cômputo geral do país, Lula venceu o pleito em 13 estados. Já o candidato derrotado à reeleição ficou na frente em 14, contando o Distrito Federal. O presidente eleito teve 50,9% dos votos válidos, contra 49,1% do adversário.

Evangélicos podem ser fiel de balança que pesará contra esquerda no futuro

Parte dos pastores reforçou tese de que o mal venceu por ora, enquanto outros baixaram o tom

Anna Virginia Balloussier

Folha de S.Paulo

É provável que, em alguns anos, evangélicos sejam a maioria da população. José Eustáquio Alves, doutor em demografia aposentado do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), projetou que isso aconteceria em 2032.

Se a democracia passar bem depois desta eleição, sem golpismos prósperos, teremos mais dois pleitos presidenciais até lá. Não é preciso dizer que a já expressiva polpa eleitoral desse bloco vai dar mais suco daqui para frente. Um refresco, claro, para o bolsonarismo.

Lula se reúne com evangélicos em São Paulo - Marlene Bergamo - 19.out.22/Folhapress

Dá para cravar que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ganhou esta eleição apesar dos evangélicos, e não com eles. Todas as pesquisas às vésperas do segundo turno mostravam uma ampla preferência do grupo pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O peso da identidade religiosa fica mais evidente quando lembramos que a face média do crente é negra, pobre e feminina. Nichos que tendem a Lula, e mesmo assim a onda pró-Bolsonaro nos templos foi avassaladora. Neles, Lula é o demônio que vai trazer comunismo, aborto, drogas e toda a sorte de males aos olhos do povo evangélico. Não precisa ser verdade, precisa convencer. E a máquina bolsonarista é boa nisso.

Alguns dos pastores que assumiram a linha de frente contra o petismo reforçaram a tese da batalha espiritual, com um mal que por ora triunfou, após o anúncio da vitória lulista contra Bolsonaro.

André Valadão, o membro mais barulhento do clã à frente da Igreja Batista Lagoinha, postou uma montagem do rosto de Lula como dom Pedro 1º. "Dom Preso Primeiro –se for para roubar, diga ao povo que volto!"

Apontado como sucessor do bispo Edir Macedo na Igreja Universal, seu genro Renato Cardoso pediu numa live que seus seguidores orem por Bolsonaro e sugeriu que o momento é de provação. "Tudo isso aí simplesmente vai fortalecer aqueles que já são da fé. Vamos ver daqui pra frente uma distinção cada vez maior entre o bem e o mal."

De João Vitor Ota, pregador de 13 anos com 1 milhão de seguidores no Instagram: "Infelizmente a minha geração não pode definir o futuro, mas se prepare, daqui a quatro anos, chegará a nossa vez. Glória a Deus".

Outra parte expressiva da liderança abaixou o tom. O pastor Silas Malafaia diz que orou por Lula em culto noturno neste domingo (30), porque a Bíblia manda que todos orem pelas autoridades constituídas. Ele como pessoa física pode ser Bolsonaro, mas "a vontade soberana do povo se estabeleceu", afirma.

O deputado Marco Feliciano seguiu trilha parecida. "Vi o discurso de Lula. Começou agradecendo a Deus. Falou de Deus em vários momentos. Reafirmou compromisso pela liberdade religiosa, evitou temas que causam divergências com o segmento evangélico e terminou agradecendo a Deus. Aprendeu a nos respeitar? Tenho dúvidas. O tempo dirá", disse em rede social.

Depois de anos sob uma campanha bolsonarista intensa, com cismas internos que provocaram expurgo de pastores à esquerda e fuga de fiéis, as igrejas devem se reorientar para entender como marcharão sob o futuro governo Lula.

Uma coisa é certa: será muito difícil para futuros candidatos abrir mão da força política que se tornaram.

O sociólogo Paul Freston, que estuda essa parcela religiosa desde 1989, sintetizou assim o horizonte: "A cada eleição, o crescimento evangélico é um problema crônico para o campo, pois representa uma porcentagem maior do eleitorado. A dificuldade de se conectar com esse segmento implica um preço cada vez maior. Não vai ser fatal nesta eleição, mas, na próxima, volta a ser um problema, como quase foi em 2014, como foi em 2018." E como não foi por um triz em 2022, podemos agora acrescentar.

Seria um erro da esquerda, contudo, deixar que essa predileção por Bolsonaro a afaste de vez do segmento. Há muito ressentimento de ambos os lados, e em algum momento alguém vai ter que estender a mão em busca do diálogo. Se o campo progressista se acastelar no alto de sua torre de marfim, vendo apenas fundamentalismo no lado de lá, e não uma rede complexa de quereres, quem vai perder a médio e longo prazo é ele.

Os acenos até aqui são tímidos, até atabalhoados. Lula não colocou um pastor pentecostal para falar no dia em que lançou uma carta aos evangélicos. Aliás, só se decidiu pela missiva de última hora, o que foi explorado como oportunismo eleitoral por seus detratores.

A esquerda parece se apegar a poucas e legítimas lideranças progressistas que, no entanto, falam mais para uma bolha secular do que para as igrejas. Como vai fazer para alcançar as massas crentes?

O sequestro ideológico existe, mas é um erro promover uma versão às avessas da guerra entre o bem e o mal que Bolsonaro tentou vender ao longo da campanha, com ajuda dos pastores amigos. Mais importante é tentar entender como o projeto bolsonarista conseguiu cooptar num tempo relativamente curto uma fatia tão larga do evangelicalismo nacional.

E aqui há um tanto de viés de confirmação, que atinge fiéis e líderes. É quando a pessoa dá um peso desproporcionalmente alto a tudo o que confirma o que ela já acredita, e inconscientemente desdenha evidências que contrariam suas teses. Se eu creio que Bolsonaro é o melhor para o país, e todos em volta fazem o mesmo, acabo ignorando o que possa causar fissuras nessa aparente unanimidade.

A questão armamentista é um bom exemplo. Quase nenhum desses pastores de maior expressão se anima com ela, mas ninguém vê a necessidade de se contrapor abertamente à causa agora.

Uma pastora que não morre de amores pelo presidente, ex-católica convertida há quase 25 anos, viu o bolsonarismo aflorar em todo o seu entorno. É verdade que seus colegas nunca foram petistas roxos, diz. No máximo, deixaram-se contagiar pela empolgação que tomou o segmento quando Lula chegou ao poder em 2002, rodeado de pastores que hoje o espinafram.

Uma leitura possível para o fisiologismo que norteia boa parte desses líderes é o que ela chama de síndrome do cachorro correndo atrás do caminhão de mudança. Evangélicos se sentiam vira-latas em pleitos passados, ganhando quando muito alguns biscoitos eleitorais. Fechadas as urnas, voltavam a dormir ao relento, longe do aconchego do Palácio do Planalto.

Com Bolsonaro, isso mudou. Evangélicos entraram na Esplanada, até no STF (Supremo Tribunal Federal), representados pelo pastor presbiteriano André Mendonça. Pela primeira vez, um presidente inclui em seu calendário a Marcha para Jesus, evento que atravessou três décadas e seis mandatários. O simbolismo aqui é forte. Eles sentem que alguém se importa com eles agora e acabam cegos e surdos para excessos patentes do bolsonarismo, diz essa pastora.

Se a esquerda continuar demonstrando que não está nem aí para eles, evangélicos poderão ser o fiel da balança que devolverá o país à direita bolsonarista daqui a quatro anos. Não vai dar para dizer que ninguém a avisou.

30 de outubro de 2022

Bolsonarismo sem Bolsonaro já é palco de disputa

Forças liberadas pelo presidente desde 2018 se consolidam no cenário político nacional

Igor Gielow

Folha de S.Paulo

Rei morto, rei posto? Como tudo que se refere à ascensão e queda de Jair Bolsonaro (PL), previsões muito assertivas são sujeitas a escrutínio prévio inevitável. Isso dito, sua derrota apertada para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) gera duas certezas imediatas.

Bolsonaro na seção eleitoral em que votou, na Vila Militar do Rio, neste domingo (30) - Eduardo Anizelli/Folhapress

Primeiro, que serão dias, semanas ou talvez meses em que o golpismo decantado pelo presidente ao longo de seus quase quatro anos no cargo ganhará primazia no noticiário. Bolsonaro sempre teve como ídolo Donald Trump, sem esconder.

O ex-presidente americano, como se sabe, escreveu um roteiro pronto de sedição quando levou seus apoiadores a investir contra o Capitólio de Washington, em 6 de janeiro do ano passado, após um mês e meio de contestação da vitória de Joe Biden.

Como Bolsonaro nem disfarçou que iria na mesma linha, está certo que haverá confusão daqui para a frente. A primeira reação do presidente, de se recolher, não dá garantias de que o roteiro será diferente.

Mas como as chances institucionais de o país cair em alguma entropia devido a isso são baixas, em algum momento haverá um presidente resignado ou em surto —e aí estamos falando de território não coberto até aqui.

Fora do poder, Trump conseguiu manter o trumpismo bem vivo nos EUA. Não se sabe, contudo, se ele pessoalmente estará na disputa de 2024, como sua base defende. Mas é irrelevante: como força política, o ex-presidente segue em plena forma.

Como no Brasil, os EUA foram cindidos entre os apoiadores do republicano e de Biden, que enfrenta dura eleição congressual de meio de mandato agora em novembro. A evolução da rejeição inaudita da Bolsonaro, associada ao antipetismo que o ajudou a levar à Presidência em 2018, criou uma campanha eleitoral baseada na rejeição dos rivais.

Esse trato da antipolitica se mostrou forte neste ano, mas não como há quatro anos. Lá atrás, houve uma amálgama entre a rejeição ao PT e à política por ele encarnada devido ao tempo de serviço no Planalto com demandas que fervilhavam na sociedade desde o junho de 2013, passando pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016.

Assim, como a vigorosa votação da derrota de Bolsonaro mostra, esse é um eleitorado que não voltará a outras freguesias. O bolsonarismo se consolidou como opção popular de direita num país dividido, apesar de sua ficha corrida de má governança e todas as bizarrices ideológicas resumidas nas ações armadas de aliados nesta semana que passou.

Com o líder em modo Trump, resta pensar o futuro. Bolsonaro pode, tendo 67 anos, seguir em campanha constante até 2026. Mas agora ele gerou herdeiros potenciais, na forma de dois governadores.

Em São Paulo, houve a ascensão fulminante de Tarcísio de Freitas (Republicanos) ao governo. Matou o restante do tucanato paulista e agora está em condições de herdar o conservadorismo paulista. É candidato a liderança nacional de saída.

Vitória de Gilberto Kassab (PSD), que bancou a candidatura apadrinhada por um desafeto, Bolsonaro. Ficou com o melhor de dois mundos: voto bolsonarista em São Paulo para um proverbial forasteiro e grande influência.

Caberá saber qual Tarcísio adentrará o Palácio dos Bandeirantes. Tudo indica que, com Bolsonaro abatido, ele aderne para o PSD, talvez com uma filiação. Ocorrendo, será o grande distanciamento a marcar a disputa pelo espólio do presidente derrotado.

O outro líder a emergir nesse contexto se chama Romeu Zema (Novo), o governador reeleito de Minas Gerais. A seguir o padrão de seu primeiro governo, a separação do bolsonarismo mais raiz parece certa. É um candidato natural a tentar a Presidência em 2026.

Não se fala aqui de Cláudio Castro (PL), do Rio, porque a chance de projeção nacional do governador reeleito é próxima de zero, como ocorreu com seus antecessores. Ele tenderá a ser um porto para a máquina federal que será expulsa de Brasília com a saída de Bolsonaro, dadas as relações do clã presidencial com as minúcias do estado de onde saiu.

Ao fim, a derrota de Jair Messias Bolsonaro não altera o fato de que as forças sociais liberadas por ele em 2018 fazem parte do cenário político nacional. A composição do Congresso, que certamente comporá com Lula ao fim, mostra que há um caminho grande à frente desse campo. Quem herdará seu controle é algo ainda a ver.

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