28 de setembro de 2025

Leia a íntegra do discurso de Sergey Lavrov na 80ª Assembleia Geral da ONU

Em seu discurso, o Ministro das Relações Exterioores russo criticou a hegemonia ocidental e as violações da Carta da ONU, defendeu a multipolaridade e a necessidade de reformar o Conselho de Segurança.

Sergey Lavrov
Ministro das Relações Exteriores


Ministro das Relações Exteriores da Rússia, discursa no debate geral da octogésima sessão da Assembleia Geral. UN Photo/Loey Felipe Sergey Lavrov

Teses do discurso de S.V. Lavrov no debate de política geral da 80ª Sessão da Assembleia Geral da ONU (Nova York, 27 de setembro de 2025)

Estimado Senhor Presidente, Estimadas Senhoras e Senhores,

Há 80 anos, a guerra mais terrível da história da humanidade chegou ao fim: mais de 70 milhões de pessoas foram vítimas de hostilidades, fome e doenças. Em 1945, o curso da história mundial mudou para sempre. O triunfo sobre o nazismo alemão, sob cujas bandeiras se uniu a maior parte da Europa, e o militarismo japonês abriu o caminho para a paz, a reconstrução e a prosperidade.

Este ano, ocorreram solenidades em Moscou e Pequim, por ocasião das datas comemorativas de 9 de maio e 3 de setembro, em homenagem à Vitória na Grande Guerra Patriótica e na Segunda Guerra Mundial. O mundo viu grandiosos desfiles militares – para celebrar a contribuição decisiva do meu povo na destruição da Alemanha Nazista e o papel especial do povo da China na derrota do Japão militarista. Honramos com reverência a memória da irmandade em armas com todos os aliados que, naquela época, estavam do lado da verdade na luta contra as forças do mal.

Um dos resultados duradouros dessa guerra foi a criação das Nações Unidas. Os princípios de sua Carta, acordados pelos pais fundadores de nossa organização, servem até hoje como um farol brilhante para a cooperação internacional. Eles incorporam a experiência secular de coexistência de Estados e mantêm totalmente sua importância na era da multipolaridade. A única condição é que todos os Estados-membros, sem exceção, observem esses princípios – em sua totalidade, conjunto e interconexão.

Na prática, no entanto, a situação é diferente. Violações grosseiras e generalizadas do princípio da igualdade soberana dos Estados minam a própria fé na justiça e levam a crises e conflitos. A raiz dos problemas reside nas incessantes tentativas de dividir o mundo em "nossos" e "deles", em "democracias" e "autocracias", em "jardim florescente" e "selva", em aqueles que estão "à mesa" e aqueles que estão "no menu". Em uma elite à qual tudo é permitido e no resto, que por alguma razão é obrigado a servir aos interesses do "bilhão de ouro". Defendemos o cumprimento inquestionável do princípio da igualdade: nele reside a garantia de que todos os países poderão ocupar seu devido lugar na ordem mundial – independentemente de seu poder militar, número de habitantes, tamanho do território e da economia.

O princípio da não utilização da força e da ameaça de força também foi repetidamente desrespeitado pelo Ocidente. Os bombardeios da OTAN na Iugoslávia, a invasão do Iraque pela "coalizão liderada pelos EUA" e a operação militar da OTAN para a "mudança de regime" na Líbia transformaram-se em tragédias. Hoje, o uso ilegal da força por Israel contra os palestinos e as ações agressivas contra Irã, Catar, Iêmen, Líbano, Síria e Iraque ameaçam explodir todo o Oriente Médio.

A Rússia condenou o ataque dos militantes do Hamas contra civis israelenses em 7 de outubro de 2023. No entanto, não há justificativa para os assassinatos brutais de civis palestinos, assim como não há para os ataques terroristas. Não há justificativa para o castigo coletivo dos palestinos na Faixa de Gaza, onde crianças palestinas morrem sob os bombardeios e de fome, hospitais e escolas são destruídos, e centenas de milhares de pessoas ficam desabrigadas. Não há justificativa para os planos de anexação da Cisjordânia. Na verdade, estamos lidando com uma tentativa de um tipo de golpe de Estado com o objetivo de enterrar as decisões da ONU sobre a criação de um Estado palestino. Recentemente, vários governos ocidentais anunciaram o reconhecimento do Estado da Palestina. Eles já haviam anunciado sua intenção de fazê-lo há alguns meses. Surge a pergunta: por que esperaram tanto tempo? Aparentemente, esperavam que em breve não houvesse mais nada para reconhecer. A situação exige ações urgentes para impedir tal cenário, a favor do que os participantes da Conferência Internacional de Alto Nível sobre a Questão da Palestina se manifestaram firmemente.

São condenáveis os ataques a instalações iranianas sob garantias da AIEA, e subsequentemente à capital do Catar, no momento em que negociações estavam sendo realizadas ali com o Hamas, incluindo a participação de mediadores americanos.

Ontem, no Conselho de Segurança, o Ocidente rejeitou a proposta racional da China e da Rússia de prorrogar o prazo do acordo de 2015 sobre o programa nuclear iraniano para dar tempo à diplomacia. Isso expôs definitivamente o curso do Ocidente de sabotar a busca por soluções construtivas no CS da ONU e sua aspiração de obter concessões unilaterais de Teerã através de chantagem e pressão. Consideramos tal política inaceitável, e todas as manipulações do Ocidente para restaurar as sanções anti-iranianas da ONU, assim como essas sanções em si, são ilegais.

O Ocidente também não está acostumado a observar o princípio da não intervenção em assuntos internos. As "revoluções coloridas" tornaram-se um fenômeno triste do nosso tempo, e as sanções unilaterais ilegais há muito se transformaram no principal instrumento da diplomacia ocidental. Não importa com quais pretextos elas sejam justificadas, a essência de tais sanções é uma só: suprimir e intimidar concorrentes na economia e na política mundiais.

A Rússia, junto com a maioria absoluta dos membros da ONU, é a favor do levantamento imediato e incondicional do bloqueio comercial a Cuba, que perdura há mais de 60 anos, e da sua remoção da infame lista de países patrocinadores do terrorismo. Expressamos solidariedade ao povo da Venezuela em face da pressão externa de sanções e ameaças. Defendemos a manutenção da América Latina e do Caribe como uma zona de paz e cooperação.

Um exemplo flagrante de subversão da soberania e de interferência grosseira em assuntos internos são as ações do Ocidente nos Bálcãs, onde é desrespeitado um princípio estatutário, como a necessidade de todos os membros da ONU cumprirem as decisões do Conselho de Segurança. O reconhecimento unilateral da independência do Kosovo, em desacordo com a Resolução 1244, foi essencialmente um atentado contra a estrutura estatal da Sérvia. Agora, o Ocidente também está em curso para desmantelar a soberania da Bósnia e Herzegovina, sabotando o Acordo de Paz de Dayton. Tanto no Kosovo quanto na Bósnia, está em curso um ataque aos interesses vitais do povo sérvio, incluindo os direitos ancestrais da Ortodoxia Sérvia.

Da mesma forma, o regime de Kiev, que tomou o poder como resultado de um golpe inconstitucional organizado pelo Ocidente em 2014, embarcou no caminho da liquidação da Igreja Ortodoxa Ucraniana canônica e da destruição legislativa da língua russa em todas as esferas – educação, cultura, mídia. A Ucrânia é o único país do mundo que proibiu legalmente o uso da língua materna de quase metade da sua população. O árabe não é proibido em Israel, e o hebraico não é proibido nos países árabes e no Irã. Mas o russo é proibido na Ucrânia. Lembro que o Artigo 1 da Carta da ONU fala da necessidade de "respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião".

A Europa permanece em silêncio sobre isso, obcecada pelo objetivo utópico de infligir uma derrota estratégica à Rússia. Por causa disso, tudo é permitido ao regime ucraniano, incluindo ataques terroristas contra políticos e jornalistas, tortura e execuções extrajudiciais, bombardeios indiscriminados de alvos civis e sabotagens imprudentes contra usinas nucleares.

A Rússia, como o Presidente V.V. Putin tem repetidamente enfatizado, esteve e continua aberta a negociações para eliminar as causas profundas do conflito desde o início. A segurança da Rússia e seus interesses vitais devem ser garantidos de forma confiável. Os direitos dos russos e falantes de russo nos territórios que permanecem sob o controle do regime de Kiev devem ser restaurados e observados integralmente. Com base nisso, também estamos prontos para discutir garantias de segurança para a Ucrânia.

Até agora, nem Kiev nem seus patrocinadores europeus demonstram consciência da gravidade do momento e prontidão para negociar de forma justa. A Aliança do Atlântico Norte continua a se expandir bem próximo às nossas fronteiras – apesar das garantias dadas aos líderes soviéticos de não avançar "nem uma polegada" para o Leste. Isso contraria os compromissos assumidos pelos membros da OTAN na OSCE de respeitar o princípio da indivisibilidade da segurança, não fortalecer a própria segurança à custa de outros e não reivindicar o domínio.

Propusemos repetidamente às capitais da OTAN que respeitassem seus compromissos e concordassem com garantias de segurança juridicamente vinculativas. Nossas propostas foram ignoradas e continuam sendo ignoradas até hoje. Além disso, crescem as ameaças de uso da força contra a Rússia, que é acusada de planejar atacar os países da OTAN e da União Europeia. O Presidente V.V. Putin desmascarou repetidamente tais provocações. A Rússia não tinha nem tem tais intenções. No entanto, qualquer agressão contra o meu país receberá uma resposta decisiva. Não deve haver dúvidas sobre isso para aqueles na OTAN e na UE que não apenas convencem seus eleitores da inevitabilidade de uma guerra com a Rússia e os forçam a apertar os cintos, mas também declaram abertamente a preparação para atacar nossa região de Kaliningrado e outros territórios russos.

Depositamos certas esperanças na continuação do diálogo russo-americano, especialmente após a cúpula no Alasca. Nas abordagens da atual administração dos EUA, vemos a intenção não apenas de facilitar a busca por caminhos realistas para a solução da crise ucraniana, mas também o desejo de desenvolver uma cooperação pragmática, sem adotar uma postura ideológica.

A Rússia e os EUA têm uma responsabilidade especial pela situação mundial, por evitar riscos capazes de lançar a humanidade em uma nova guerra. A nova iniciativa da Federação Russa, proposta pelo Presidente V.V. Putin em 22 de setembro, visa contribuir para a manutenção da estabilidade estratégica: a prontidão para aderir aos limites quantitativos centrais do tratado START por um ano após sua expiração em 5 de fevereiro de 2026 – sob a condição de que os EUA ajam de maneira semelhante e não tomem medidas que violem o equilíbrio existente de potenciais de dissuasão. Acreditamos que a implementação da nossa proposta permitirá criar as condições necessárias para evitar uma corrida armamentista estratégica, manter um nível aceitável de previsibilidade na esfera nuclear de mísseis e melhorar a atmosfera geral nas relações russo-americanas.

Prezados colegas,

Em dezembro deste ano, celebraremos o 65º aniversário da adoção pela Assembleia Geral da Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais. O processo de descolonização, com a liderança da União Soviética, foi uma consequência direta da realização do direito das nações à autodeterminação. Os povos da África e da Ásia se recusaram a viver sob o jugo dos colonizadores – da mesma forma que, após o golpe de Estado de 2014, a Crimeia, o Donbass e a Novorrússia se recusaram a se submeter ao regime neonazista de Kiev, que tomou o poder ilegalmente e que não apenas não representa os interesses de sua população, mas desencadeou uma guerra contra ela.

Em ambos os casos, foi implementado o princípio, consagrado em 1776 na Declaração de Independência e subsequentemente confirmado repetidas vezes por presidentes americanos: "Os governos derivam sua justa (just) legitimidade do consentimento dos governados (consent of the governed)". Nem os colonizadores nem o regime de Kiev tinham qualquer consentimento dos povos que tentavam governar. Este princípio foi unanimemente confirmado na Declaração da ONU de 1970, que afirma claramente: todos devem respeitar a integridade territorial daqueles países cujos governos representam todo o povo que reside no território correspondente.

Hoje, a África e todo o Sul Global estão vivendo um novo despertar, buscando a plena independência, e a ONU não deve ficar de lado. Em dezembro do ano passado, foi aprovada a resolução da Assembleia Geral "Erradicação do Colonialismo em Todas as Suas Formas e Manifestações". Convocamos, como próximo passo, a decisão de declarar 14 de dezembro como o Dia Internacional da Luta contra o Colonialismo. Saudamos o papel do Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU na consolidação dos esforços para combater práticas neocoloniais e outras práticas discriminatórias contra a Maioria Global, e convidamos todos os Estados independentes a se juntarem aos seus membros.

O equilíbrio de poder existente no mundo difere fundamentalmente daquele estabelecido há 80 anos. O processo de descolonização e outros abalos em larga escala mudaram o mapa político do planeta. A Maioria Global está afirmando seus direitos em voz alta. A SCO e o BRICS desempenham um papel especial como mecanismos para coordenar os interesses dos países do Sul e do Leste Global. A influência da UA, da CELAC e de outras associações regionais está se fortalecendo.

Essas novas realidades ainda não encontraram o devido reflexo no sistema de instituições da nossa Organização. A questão da reforma do Conselho de Segurança é particularmente importante. A Rússia defende a sua democratização exclusivamente através da expansão da representação da Ásia, África e América Latina. Apoiamos as candidaturas do Brasil e da Índia para um assento permanente no Conselho, ao mesmo tempo que corrigimos a injustiça histórica em relação à África nos parâmetros acordados pelos próprios países do continente.

Recentemente, o Secretário-Geral A. Guterres propôs uma reforma abrangente da ONU. Não somos contra uma discussão aberta dessa iniciativa. O objetivo deve ser o retorno da ONU aos princípios fundamentais consagrados na sua Carta, que o Ocidente tem tentado substituir pela sua "ordem baseada em regras" por muitos anos. É crucial que o trabalho seja conduzido de forma transparente, com a participação e levando em consideração os interesses de todos os Estados-membros.

Exortamos o Secretário-Geral e todos os funcionários do Secretariado a seguir rigorosamente os princípios de imparcialidade e igual distância (equidistância) de acordo com o Artigo 100 da Carta. Tentativas de um "golpe palaciano" no Secretariado, a sua privatização por um pequeno grupo de países, não podem ser permitidas. A composição do Secretariado deve refletir as novas realidades, garantindo uma representação justa dos países da Maioria Global.

Contamos com uma discussão construtiva sobre o desenvolvimento da Organização na sessão especial do Conselho de Segurança que a Rússia, como presidente, planeia organizar no Dia da ONU, 24 de outubro deste ano.

A reforma da ONU é apenas uma parte da tarefa abrangente de transformar todo o sistema de governança global, incluindo a genuína democratização do FMI, do Banco Mundial e da OMC – em proporção ao peso e papel do Sul e Leste Globais na economia, comércio e finanças mundiais.

Nas discussões sobre reformas globais, não se pode ignorar o fato de que a situação no domínio da segurança internacional está se deteriorando. Já mencionei as causas. A principal delas é o desejo de manter a hegemonia com base na força militar. Mais e mais países e regiões estão sendo arrastados para esquemas de confrontação.

A OTAN já se sente apertada na Europa e está penetrando no Oceano Pacífico, no Mar da China Meridional e no Estreito de Taiwan, minando os mecanismos universais da ASEAN e criando ameaças não só para a República Popular da China e a Rússia, mas também para outros países localizados na região. A liderança da OTAN justifica esta nova fase de expansão com a "indivisibilidade da segurança do Euro-Atlântico e da Região Indo-Pacífica" e, sob este slogan, tenta cercar militarmente toda a Eurásia.

A Rússia, junto com seus parceiros, propõe uma alternativa construtiva para esse curso perigoso: construir na Eurásia uma arquitetura de segurança igualitária e indivisível não apenas para os membros da OTAN e seus aliados, mas para todos os países e associações do continente sem exceção, incluindo a SCO, CEI, ASEAN, EAEU, OTSC, e o CCG. Com esse objetivo, Belarus e Rússia propõem o desenvolvimento de uma Carta Eurasiática de Diversidade e Multipolaridade no Século XXI.

Um processo verdadeiramente pan-continental é inevitável depois que o comportamento do Ocidente tornou sem sentido o modelo de segurança euro-atlântico baseado na OTAN, na UE e na OSCE. Não vemos perspectivas para as ideias de restaurar esse modelo na Europa em sua forma anterior, sobre as quais algumas capitais europeias começaram a refletir: "Bem, vamos pensar nisso depois que o conflito ucraniano terminar".

Ao falar sobre o futuro, não podemos esquecer as lições do passado, especialmente em uma situação em que o nazismo está novamente a levantar a cabeça na Europa e a militarização está a ganhar impulso – sob os mesmos slogans antirussos.

Isso é ainda mais preocupante porque vários líderes políticos que chegaram ao poder em Bruxelas e em algumas capitais da UE e da OTAN começam a falar seriamente sobre uma Terceira Guerra Mundial como um cenário provável. Esses líderes minam quaisquer esforços para encontrar um equilíbrio honesto de interesses de todos os membros da comunidade internacional, tentando impor suas abordagens unilaterais a todos os outros, violando grosseiramente o requisito fundamental do Estatuto de respeito à igualdade soberana dos Estados. Essa igualdade é o alicerce da multipolaridade que se forma objetivamente.

A Rússia não está a fazer campanha por uma revolução contra quem quer que seja. O nosso país sofreu mais com revoluções do que qualquer outro. Apenas apelamos aos Estados-membros e à liderança do Secretariado para que sigam rigorosamente todos os princípios da Carta da ONU, sem padrões duplos. Só então o legado dos pais fundadores da ONU não será desperdiçado.

Obrigado pela vossa atenção.

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