1 de junho de 2023

A doença venezuelana e a crise humanitária

Estratégia de isolar o país e impor-lhe sanções fracassou

André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP


A reunião com todos os presidentes da América do Sul (exceto o do Peru, que enviou um representante), em 30 de maio, marcou a retomada dos trabalhos da Unasul e a reabilitação diplomática da Venezuela na região. A aproximação é o caminho escolhido por Lula para solucionar a crise humanitária no país. A estratégia é acertada. Vejamos.

O colapso socioeconômico da Venezuela resulta da complexa interação de uma estrutura econômica particular, tensões políticas internas e reações geopolíticas.

A íntima relação entre atuação do Estado e renda petroleira marca a trajetória econômica política e social do país há um século, quando foram descobertas vastas reservas petrolíferas. O país se especializou em fornecer petróleo aos EUA e gerou uma economia de enclave, em que o setor dinâmico ficou "ilhado" e não estimulou a expansão do mercado interno nem a diversificação produtiva da economia.

O presidente Lula e Nicolás Maduro - Gabriela Biló/Folhapress

Em seus "Ensaios sobre a Venezuela" (1957), Celso Furtado já descrevia o modelo como "subdesenvolvimento com abundância de divisas". A "doença venezuelana" antecedeu em algumas décadas, portanto, a descoberta de gás natural na Holanda (nos anos 1960) que consolidou, na literatura, a expressão "doença holandesa".

No caso da Venezuela, essa "maldição de recursos naturais" produziu uma pauta de exportações dominada pelo petróleo, de forma que os ciclos internacionais do preço da commodity determinam o espaço de política econômica no país. Converter esse "bilhete premiado" em desenvolvimento se tornou o eixo da disputa política que marca as tensões políticas internas.

A eleição de Hugo Chávez, em 1998, inaugura o "socialismo do século 21". A renda petroleira foi direcionada para a nacionalização de diversos setores da economia e para um amplo programa de políticas sociais (subsídios para alimentos e energia). A queda da pobreza e da desigualdade sustentou a base política do governo, mas a diversificação produtiva não se consolidou e, portanto, não gerou empregos de qualidade à população. A fragilidade externa estrutural se manteve.

A partir de 2016, a queda do preço do barril de petróleo abaixo de US$ 30 e o avanço de uma ampla variedade de sanções (ainda em vigor) por parte dos EUA e da Europa fecharam a torneira dos dólares ao país, agravando o conflito político interno. Em agosto de 2017, o governo Trump emitiu a ordem executiva 13.808, impedindo a estatal Petroleos de Venezuela S.A. (PDVSA) de acessar os mercados financeiros dos EUA. Em 2020, sanções secundárias puniram empresas que transportavam o petróleo venezuelano. Com efeito, quando os preços do petróleo se recuperaram, a Venezuela já não tinha produção.

O impacto das medidas foi rápido e desastroso, em especial sobre a produção de petróleo da Venezuela —de 2,4 milhões de barris por dia (bpd), antes da crise, para 400 mil, em 2020 (conforme estudo da CEPR). A queda de 72% no PIB per capita acompanhou o desmonte da assistência social, o aumento da frequência de apagões, a falta de acesso a vacinas, as taxas de pobreza (que chegaram a 93%), doenças e desnutrição.

Estudo de Mark Weisbrot e Jeffrey Sachs concluiu que as sanções econômicas contribuíram substancialmente para a morte de cerca de 40 mil venezuelanos, apenas em 2018. Apesar de não estarem um país em guerra, mais de 7,2 milhões de venezuelanos emigraram de sua terra, número comparável ao de refugiados sírios.

Em suma: a estratégia de isolar o país e impor-lhe sanções fracassou. Esse é o contexto que informa as falas de Lula a Maduro.

A crise humanitária na Venezuela exige uma solução regional e o fim das sanções que asfixiam sua economia. A sequência das viagens de Lula ao exterior indica uma costura para liderar a estabilização geopolítica da região. Sem isso, o esforço de integração não fechará as veias abertas da América Latina.

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