6 de julho de 2023

As múltiplas faces de Adam Smith

O autor real é muito mais interessante do que a caricatura mítica urdida pelos neoliberais

André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP


Foi no mestrado que ocorreu o meu despertar. Assistia a uma aula do professor Jorge Eduardo Soromenho. Ele escreveu no quadro a expressão "ordem espontânea" e passou a dissertar, de forma quase poética, sobre a "grande sociedade" que Adam Smith cultuava em seu pensamento.

Pequenos produtores independentes perseguiam seus interesses e, sem que o desejassem, cooperavam de forma impessoal pelo sustento material da coletividade. Consequências não intencionais de atos deliberadamente autointeressados formariam essa rede de conexões sociais, comerciais e financeiras.

Na falta de uma explicação mais coesa, Smith atribuiu a uma fantasmagórica "mão invisível" do mercado a regência dessa ordem espontânea. Desde então, os economistas tentaram, por décadas, formalizar e identificar os mecanismos de coordenação sintetizados pela curiosa expressão.

Ilustração de Adam Smith - João Montanaro

Em 2023, celebram-se os 300 anos do nascimento, em Glasgow (Escócia), do filósofo moral que racionalizaria o capitalismo. Sua anatomia da criação de riqueza foi detalhada na obra "A Riqueza das Nações", aos seus 53 anos de idade, em 1776. Esse ano marca a rebelião dos EUA contra a coroa britânica, que culmina na independência do país.

Em capítulos curtos e com farta ilustração histórica, Smith simplificou as "leis" dos mercados, ilustrou as engrenagens do progresso material, bem como destacou suas desigualdades e injustiças.

O famoso exemplo da fábrica de alfinetes didatizou o poder da divisão do trabalho. A especialização produtiva diversificava a produção e, via maior produtividade, preços mais baixos ampliavam o acesso a bens de consumo. O grau de prosperidade dependia da extensão do mercado: quanto maior a rede de interações, maior a complexidade da interdependência e mais sofisticado se tornava o padrão de vida.

A Riqueza das Nações se produzia em reforços cumulativos entre produtividade e inovação tecnológica. Ao dedicar mais recursos à produção de conhecimento, a economia transformaria a cultura, as sociedades, as relações sociais e as mentalidades.

Smith projetou sobre o futuro uma sociedade comercial de indivíduos livres, em que o Estado cuidaria de problemas coletivos, mas interferiria o mínimo possível na esfera privada. Smith atraiu a admiração dos poderosos de sua época e além. As ambiguidades de sua obra alimentaram o viés de confirmação que acompanha a ideologia.

Compreender o Adam Smith histórico, as contradições em seu pensamento e sua consagração como pai da Economia é objeto de incontáveis artigos e livros.

Vale a leitura da obra original de Adam Smith, e das várias revisões de sua vida e obra. Destaco algumas. "Sentimentos Econômicos", de Emma Rothschild, retrata o contexto histórico em que é concebida "A Riqueza das Nações". Em "Knowledge and the Wealth of Nations", David Warsh mostra como a ênfase dos economistas na noção de mão invisível deixou de lado, por dois séculos, os efeitos do conhecimento sobre a produção, encapsulados no exemplo da fábrica de alfinetes.

O livro "Private Governments", de Elizabeth Anderson, aponta sua rejeição das grandes corporações como mecanismo organizacional válido para promover a eficiência dos mercados.

O livro "Who Cooked Adam Smith’s Dinner", de Katrine Marçal —pobremente traduzido para "O lado invisível da economia"—, traz uma leitura feminista a partir da vida de Smith, um solteirão que morou grande parte da vida com sua mãe.

Finalmente, o recém-lançado "Free Market: The History of an Idea", de Jacob Soll, não apenas mostra que o livre mercado precisa de muito Estado para funcionar como revela um Smith ingênuo e apaniguado com os poderes políticos e econômicos de sua época, e que se tornou auditor fiscal aduaneiro ao final da vida.

O Adam Smith real é muito mais interessante do que a caricatura mítica urdida pelos neoliberais. Convido a leitora a conhecê-lo melhor.

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