Os NFTs são emblemáticos do crescente recuo do capitalismo da atividade produtiva – e do desejo dos ricos de estender seu domínio para o éter digital. Eles são piores do que inúteis.
Luke Savage
People walk by a Bored Ape Yacht Club NFT billboard in Times Square in New York City. (Noam Galai / Getty Images) |
Tradução / Às vezes, uma única imagem ou episódio que captura uma vitória, uma tragédia ou um desastre resume melhor o espírito de um momento do que qualquer prosa seria capaz. Ao refletir sobre as imagens mais icônicas da história norte-americana, vários cenas vêm à mente: o hasteamento da bandeira em Iwo Jima; a face radiante e tranquila de John F. Kennedy segundos antes de ser atingido pela bala de seu assassino; a emoção de Neil Armstrong, que foi às lágrimas na cabine de comando da Apollo 11 após a comunhão com o infinito na superfície da lua. Embora não possa ser alçado ao mesmo patamar, é difícil pensar em algo tão evocativo ou emblemático dos nossos tempos formidavelmente estúpidos do que o quadro extraordinariamente bizarro do programa The Tonight Show Starring Jimmy Fallon com Paris Hilton, exibido semana passada.
Fiel ao estilo, a maior parte da conversa entre Hilton e Falon segue a fórmula do clássico entretenimento dos programas de entrevista, um tipo de gracejo inócuo e bobo que você dá uma olhada desinteressada quando está indo dormir ou que acaba esbarrando após cansar de assistir Netflix. Do nada, contudo, as coisas tomam um rumo estranho quando Fallon pergunta sobre o hobby de Hilton em colecionar NFTs (ela, aliás, é uma pioneira da mercantilização pós-moderna de self, atualmente na sétima posição no ranking de proprietários de NFTs da Forbes) e então os dois realizam o que pode ser descrito como um “infomercial” roteirizado, algo entre uma celebridade lendo um anúncio sem nenhum empenho e um vídeo de uma vítima de sequestro.
Com a mesma densidade vagamente distópica que os liberais mais enlouquecidos apresentam seus produtos, o “Paris Hilton Bored Ape Yacht Club NFT” já é o emblema de 2022. Entretanto, conduzida através da interação hilariamente tensa entre Hilton e Fallon — assista a parte do vídeo por sua conta risco e você vai ver que é bem fácil imaginar homens mascarados e armados segurando cartazes atrás das câmeras — a coisa toda se transforma rapidamente em um novo reino de bizarrices. Um curto exemplo:
FALLON: [Desde a última vez que esteve aqui] A Forbes te nomeou uma das 50 pessoas mais influentes na área do NFT, parabéns.HILTON: Obrigada, estou muito orgulhosa. Amo ser parte dessa comunidade, ser uma voz, e compartilhar a minha plataforma, divulgando para todos. Porque eu acho que é uma coisa incrível de se fazer parte.FALLON: Sim, eu entrei nessa.HILTON: Eu sei, fiquei sabendo. Estou muito feliz por ter te ensinado o que eles são.FALLON: Ensinou mesmo, me fez ficar a par e depois disso eu comprei um macaco.HILTON: Comprei um macaco também justamente porque eu vi você no programa com o Beeple e ele disse que você entrou para o MoonPay e aí entrei também, copiei você e fiz a mesma coisa.
Há muito outros exemplos dessa seara, como os dois exibindo seus respectivos JPEGs de macacos e anunciando, num estilo Oprah-da-era-do-blockchain, que todos no auditório ganhariam de presente o último NFT dela, declarando o momento como “icônico” antes de chamarem o intervalo.
Besteira inescapável
Tudo começou em algum momento de 2021, os Non-Fungible Token — a última febre em criptomoedas que tomou os EUA — de repente estavam por toda parte. Como se fosse o resultado de algum processo químico desconhecido, ou ao menos assim parece, as pessoas estavam de alguma maneira lucrando com a comercialização de figurinhas completamente banais enquanto outras inexplicavelmente desembolsavam grandes valores para declarar que possuíam os títulos de propriedades delas.
Tudo começou em algum momento de 2021, os Non-Fungible Token — a última febre em criptomoedas que tomou os EUA — de repente estavam por toda parte. Como se fosse o resultado de algum processo químico desconhecido, ou ao menos assim parece, as pessoas estavam de alguma maneira lucrando com a comercialização de figurinhas completamente banais enquanto outras inexplicavelmente desembolsavam grandes valores para declarar que possuíam os títulos de propriedades delas.
Celebridades e influenciadores de redes sociais também não conseguiram parar de falar deles. De Serena Williams e Logan Paul a Matt Damon e William Shatner, o burburinho sobre NFT logo transcendeu gerações e chegou aos círculos dos ricos e famosos. (Jimmy Fallon, a propósito, gastou mais de 200 mil dólares em um NFT dos Macacos Entediados que hoje enfeita o seu perfil no Twitter). Beeple, mencionado por Paris Hilton durante a entrevista à Fallon, conseguiu mais de 3,5 milhões em um leilão de NFT. Os NFT dos Macacos têm sido “roubados” em assaltos digitais. Uma subcelebridade chegou a ser pega em ação ao monetizar seus próprios gases (esses NFTs, por falar nisso, vem com o slogan: “Faça parte da história com a primeira coleção de Pote de Gases em NFT já produzido — Imagine o cheiro!”).
Se você ainda não está imerso nesse esquema pirâmide, tudo é meio chocante e você pode estar se perguntando o que essas coisas significam de fato. Em essência, um NFT te dá a posse exclusiva de um objeto digital (imagens, sons, tweets e virtualmente qualquer coisa pode ser transformada em NFT).
À primeira vista, comprar um NFT pode parecer com o ato para adquirir uma obra de arte original, mas com direitos de uso digital e armazenagem em blockchain. Você não pode, em outras palavras, segurar nas suas mãos como uma pintura ou um pôster. Sendo o mercado de NFT um tipo de velho oeste de direitos de propriedade, alguns deles foram convertidos em tokens sem o conhecimento ou consentimento de seus autores. Mais inacreditável ainda, o objeto digital quase sempre permanece totalmente acessível para todos online — o que torna, no fundo, toda a premissa da exclusividade discutível (exceto no senso abstrato de um “direito de se gabar”).
Em uma só palavra, NFTs são besteira. E, como a maioria das besteiras nos Estados Unidos — pense no WeWork, no Fyre Festival ou em qualquer outra dentre várias algazarras disruptivas germinadas pelo capital de risco — eles vêm embrulhados em uma linguagem populista de araque sobre comunidade e uma pretensa retórica de inovação.
Assim como as criptomoedas, é difícil argumentar sobre o seu real valor de uso e, de forma parecida com as startups mais idiotas do Vale de Silício, eles podem ser melhor compreendidos como investimentos especulativos nos quais alguns poucos privilegiados podem tirar dinheiro de algo que não tem nenhum benefício social que o compense. A maioria, de fato, é apenas lixo inútil. Conforme Rebecca Alter, jornalista da Vulture, a maioria dos NFTs “valem tanto quanto um código QR em uma tampa de garrafa de coca-cola que te direciona para um link morto de download de um mp3”.
Se você ainda não está imerso nesse esquema pirâmide, tudo é meio chocante e você pode estar se perguntando o que essas coisas significam de fato. Em essência, um NFT te dá a posse exclusiva de um objeto digital (imagens, sons, tweets e virtualmente qualquer coisa pode ser transformada em NFT).
À primeira vista, comprar um NFT pode parecer com o ato para adquirir uma obra de arte original, mas com direitos de uso digital e armazenagem em blockchain. Você não pode, em outras palavras, segurar nas suas mãos como uma pintura ou um pôster. Sendo o mercado de NFT um tipo de velho oeste de direitos de propriedade, alguns deles foram convertidos em tokens sem o conhecimento ou consentimento de seus autores. Mais inacreditável ainda, o objeto digital quase sempre permanece totalmente acessível para todos online — o que torna, no fundo, toda a premissa da exclusividade discutível (exceto no senso abstrato de um “direito de se gabar”).
Em uma só palavra, NFTs são besteira. E, como a maioria das besteiras nos Estados Unidos — pense no WeWork, no Fyre Festival ou em qualquer outra dentre várias algazarras disruptivas germinadas pelo capital de risco — eles vêm embrulhados em uma linguagem populista de araque sobre comunidade e uma pretensa retórica de inovação.
Assim como as criptomoedas, é difícil argumentar sobre o seu real valor de uso e, de forma parecida com as startups mais idiotas do Vale de Silício, eles podem ser melhor compreendidos como investimentos especulativos nos quais alguns poucos privilegiados podem tirar dinheiro de algo que não tem nenhum benefício social que o compense. A maioria, de fato, é apenas lixo inútil. Conforme Rebecca Alter, jornalista da Vulture, a maioria dos NFTs “valem tanto quanto um código QR em uma tampa de garrafa de coca-cola que te direciona para um link morto de download de um mp3”.
É suficiente dizer que o valor, em qualquer sentido reconhecível, não é realmente a questão aqui.
Decadência e mercantilização sem limites
O boom do NFT, convenientemente, coincidiu com um período particularmente grotesco de dificuldades coletivas e aumento de desigualdades. A era da COVID, ao mesmo tempo uma ameaça à saúde pública e uma crise econômica histórica, tem sido extraordinariamente difícil para a classe trabalhadora e para a classe média, mas uma verdadeira terra de leite e mel para os senhores corporativos e para a burguesia lumpen.
Os últimos acontecimentos têm representado a melhor ocasião em décadas para reimaginar os fundamentos da sociedade e transformar a economia em alguma outra coisa que não um punhado de fundos de multimercado e monopólios de tecnologias empilhados uns sobre os outros. Ao invés disso, a classe dominante bipartidária do país optou por dar boas-vindas à morte em massa, concedendo uma série de proteções sociais inadequadas e temporárias, enquanto os criminalmente subtributados ultra-ricos ficam livres para buscar novas maneiras de lucrar com seu próprio dinheiro e adquirem novos totens para massagear seu status entre a elite.
Nada é mais simbólico dessa trajetória do que os NFTs, o mais novo sintoma de um consenso decadente e cada vez mais pós-democrático, fiado sobre nada mais do que a busca predatória de renda e mercantilização ilimitada. Como disse Jacob Silverman, da New Republic, ano passado:
O boom do NFT, convenientemente, coincidiu com um período particularmente grotesco de dificuldades coletivas e aumento de desigualdades. A era da COVID, ao mesmo tempo uma ameaça à saúde pública e uma crise econômica histórica, tem sido extraordinariamente difícil para a classe trabalhadora e para a classe média, mas uma verdadeira terra de leite e mel para os senhores corporativos e para a burguesia lumpen.
Os últimos acontecimentos têm representado a melhor ocasião em décadas para reimaginar os fundamentos da sociedade e transformar a economia em alguma outra coisa que não um punhado de fundos de multimercado e monopólios de tecnologias empilhados uns sobre os outros. Ao invés disso, a classe dominante bipartidária do país optou por dar boas-vindas à morte em massa, concedendo uma série de proteções sociais inadequadas e temporárias, enquanto os criminalmente subtributados ultra-ricos ficam livres para buscar novas maneiras de lucrar com seu próprio dinheiro e adquirem novos totens para massagear seu status entre a elite.
Nada é mais simbólico dessa trajetória do que os NFTs, o mais novo sintoma de um consenso decadente e cada vez mais pós-democrático, fiado sobre nada mais do que a busca predatória de renda e mercantilização ilimitada. Como disse Jacob Silverman, da New Republic, ano passado:
Os NFTs refletem uma visão do mundo na qual qualquer coisa pode ser monetizada, mesmo que seu valor seja puramente ilusório. Ao esgotar os investimentos tradicionais em ações e propriedades — assim como os serviços de butique como “médicos concierges” ou acesso privilegiado à vacina contra a COVID-19 — a elite ociosa do país agora busca expandir sua pegada financeira para dar cobertura a qualquer coisa que eles desejem reivindicar… É a financeirização de tudo, sendo praticamente qualquer coisa elegível para ser tokenizada, dividida em contratos, convertida em títulos para que os intrépidos day traders possam comprar e vender.
Com efeito, uma economia política que, em sua ascensão ao mercado, se esquivou até mesmo das noções mais tênues de contrato social ou de bem público — junto com uma base manufatureira que já construiu coisas de verdade — está lançando as bases de um novo, mais amplo e mais caro tipo de mercantilização pós-materialista.
Nesta mais recente encarnação da nossa segunda era de ouro, bolhas especulativas baseadas em éter digital vão ajudar a estabelecer uma versão fajuta de inovação e de progresso para uma economia sobrecarregada e estruturalmente incapaz de entregar coisas reais. Como mercadorias digitais, os NFTs sinalizam, portanto, a contínua decadência do capitalismo em puro simulacro e da crescente remoção dos seus maiores beneficiários de qualquer coisa que se assemelhe a uma atividade produtiva.
Por outro lado, como uma metáfora civilizacional, eles talvez sejam o símbolo perfeito de uma ordem política tão tristemente injusta e de uma cultura regressiva tão mortificada que até mesmo os ricos que os ostentam em programas de entrevista de TV tem dificuldade em defende-lo com alguma convicção.
Sobre o autor
Luke Savage é colunista da Jacobin.
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