15 de janeiro de 2022

A democracia de El Salvador foi duramente conquistada. Agora o presidente Nayib Bukele a ameaça.

Hoje faz 30 anos desde o fim da guerra civil de El Salvador, que custou mais de 75.000 vidas. Nidia Díaz, uma guerrilheira de esquerda torturada pelas forças do Estado durante o conflito, discute a guerra e como os ganhos democráticos dessa luta estão sendo prejudicados.

Uma entrevista com
Nidia Díaz

Entrevistada por
Hilary Goodfriend


Guerrilheiros em El Salvador durante a guerra civil do país, 1983. (Scott Wallace / Getty Images)

O dia 16 de janeiro de 2022 marca o trigésimo aniversário da assinatura dos acordos de paz que encerraram a guerra civil de El Salvador. O conflito de doze anos entre a ditadura militar de direita apoiada pelos EUA e a insurgência guerrilheira de esquerda deixou setenta e cinco mil mortos e oito mil desaparecidos, com centenas de milhares de deslocados. Em 1993, o relatório da Comissão da Verdade das Nações Unidas atribuiu pelo menos 85% dessa violência às forças de segurança do Estado e seus paramilitares associados.

Os acordos de paz não modificaram as estruturas de acumulação desiguais e dependentes de El Salvador, mas abriram uma nova arena de luta política pacífica. O acordo desmilitarizou o Estado salvadorenho, estabelecendo as bases constitucionais para as instituições democráticas liberais. Permitiu a desmobilização da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), frente de esquerda sob a qual a guerrilha atuava, e sua conversão em partido político legal, que, quase vinte anos depois, passou a governar o país por dois mandatos (2009-2019).

Hoje, esses ganhos democráticos estão sendo revertidos. O populista autoritário Nayib Bukele se tornou o primeiro presidente do pós-guerra a não comemorar a assinatura dos acordos de paz, que ele descartou como uma “farsa”. Em vez disso, ele enquadra a guerra e os acordos de paz como uma conspiração entre duas facções igualmente corruptas e de elite. Ao longo de seus dois anos e meio no poder, Bukele dedicou seu governo à remilitarização do Estado, à dissolução da separação dos poderes e à criminalização de sua oposição, ressuscitando os espectros da ditadura.

Em 16 de janeiro de 1992, Nidia Díaz estava entre os dez representantes da FMLN que negociaram e assinaram os acordos de paz no Castelo de Chapultepec, na Cidade do México. Díaz, nome de guerra adotado permanentemente por María Marta Valladares, representava o Partido Revolucionário dos Trabalhadores Centro-Americanos, uma das cinco organizações político-militares que constituíam a FMLN. A essa altura, ela era bem conhecida por I Was Never Alone, o relato publicado de sua captura, detenção e tortura pelo estado.

Díaz se tornaria a candidata a vice-presidente da FMLN em 1999. Ela atuou como representante da FMLN no Parlamento Centro-Americano e na Assembleia Legislativa salvadorenha, onde liderou o grupo legislativo da FMLN de 2018 a 2021.

Nesta entrevista com a editora colaboradora da Jacobin, Hilary Goodfriend, Díaz reflete sobre a guerra e o processo de negociação, as conquistas e limitações dos acordos e suas reversões atuais.

Hilary Goodfriend

Para abordar o processo de paz, provavelmente deveríamos começar com a guerra. Por que, naquele momento histórico, as pessoas pegaram em armas em El Salvador?

Nidia Díaz

Por que nós salvadorenhos nos confrontamos, como filhos da mesma nação? As causas têm origem estrutural, acumulada ao longo de dois séculos — para dar um ponto de partida, sobretudo a partir do ano de 1932, marco histórico que culminou em uma insurreição popular que foi reprimida pela ditadura que governou por sessenta anos. Essa insurreição fracassou, mas porque foi esmagada militarmente com um massacre de mais de trinta e dois mil camponeses indígenas.

Era um período de ociosidade; não havia trabalho. Houve uma depressão global que teve um impacto nacional. Havia exclusão e marginalização. A riqueza estava concentrada na terra, em poucas mãos. A oligarquia procurava manter seu poder.

Dez anos se passaram. Uma greve de 1944, a greve dos Brazos caídos, derrubou o ditador, mas as formas ditatoriais de dominação permaneceram. Houve esforços para legalizar a esquerda na década de 1960, mas eles falharam.

O contexto internacional também teve influência: a Revolução Cubana, os processos de luta armada na Colômbia e muito mais. A esquerda começou a repensar seu caminho para o poder. Não era mais apenas a participação legal nas eleições. Em vez disso, também poderia ser o caminho da luta armada. Houve um grande debate dentro do Partido Comunista, que travou enormes lutas, tanto legais quanto clandestinas. Todo o debate girava em torno da construção de um partido, da revolução, da estratégia e da tática de luta.

Em 1975, todas as cinco organizações que formariam a FMLN cinco anos depois já haviam sido formadas. Toda essa luta era clandestina – era guerrilha. Mas estávamos mais focados em empoderar o desenvolvimento da luta social e da organização popular porque realmente não queríamos uma guerra – queríamos uma luta social e política. Combinamos formas de luta.

O esgotamento da luta política foi demonstrado pelas fraudes eleitorais de 1972 e 1977. Começaram os massacres. As pessoas se reuniram em torno da União Nacional Opositora, que era uma aliança entre os social-democratas, os democratas-cristãos e a face legal do Partido Comunista – essa foi a forma que a esquerda assumiu. Os setores no poder moveram-se para frear esse avanço popular; a essa altura, eles formaram esquadrões da morte.

Em 1977, fizeram um grande massacre para impor outro ditador que havia perdido massivamente as eleições, o general Humberto Romero. Depois, eles estabeleceram um toque de recolher, a lei marcial. Todos condenaram esse massacre, até mesmo Monsenhor Óscar Romero, que acabara de ser nomeado arcebispo de San Salvador e que todos achavam conservador. Dias depois, mataram o padre Rutilio Grande — que estava prestes a ser beatificado.

Naquela época, o presidente Jimmy Carter governava nos Estados Unidos. Carter suspendeu a ajuda a El Salvador em 1979 por violações de direitos humanos. Em 15 de outubro, ocorreu o último golpe militar em El Salvador, para depor o ditador. Uma junta civil-militar revolucionária foi proposta, e muitos esquerdistas entraram no governo. Mas no final de dezembro, a esquerda começou a renunciar à junta. Os militares tradicionais começam a voltar.

A segunda junta então se comprometeu com o genocídio. Naquele ano [1980], foi fundado o Comitê Coordinadora Revolucionaria de Masas (CRM) e, em 22 de janeiro, oi reprimido, houve um massacre. Dias depois, o líder da Juventude Democrata Cristã é assassinado. Em 24 de março, matam São Óscar Romero, que havia se tornado não apenas a “voz dos sem voz”, mas também um facilitador da paz, porque tinha capacidade de dialogar com diversos setores e buscava uma solução política para o grande confronto que estava vindo.

Em 18 de abril, foi fundada a Frente Democrática Revolucionária (FDR), uma aliança entre os social-democratas, os democratas-cristãos, a face política do Partido Comunista, o CRM – uma grande aliança, uma ampla frente contra a ditadura. Ao mesmo tempo, o processo de unificação da FMLN estava em andamento. Já havia mais diálogo entre as cinco organizações, que vinham disputando a vanguarda do processo. Eles estavam convencidos de que nenhum grupo isolado teria tração. Tinha que haver unidade entre as forças revolucionárias.

Em 10 de outubro foi fundada a Frente Farabundo Martí. Imediatamente, formou-se uma aliança com o FDR, que propôs um programa de governo revolucionário e criou uma comissão diplomática para buscar uma solução política para o conflito.

Infelizmente, Ronald Reagan ganhou a eleição nos Estados Unidos e restaurou a ajuda militar [ao governo de direita salvadorenho] ​​imediatamente. A oligarquia então assassinou a liderança do FDR. O clima de confronto cresceu.

Isso nos levou a empreender um grande esforço insurrecional em 10 de janeiro de 1981. Embora houvesse um debate sobre se seria uma guerra popular prolongada, éramos acima de tudo guerreiros sociais, convencidos de que tudo isso acabaria em breve. Mas estávamos errados, porque o império se envolveu diretamente para não repetir o que aconteceu no Vietnã. Como eles viam a região da América Central como seu quintal, eles apostaram tudo.

O primeiro projeto de contrainsurgência foi esmagar totalmente a insurreição. Mas isso não aconteceu: recuamos, nos organizamos, resistimos e começamos a avançar. Então, quando muitas pessoas acreditaram que a FMLN não tinha mais capacidade para nada, ela ressurgiu com certas ações.

Foi a comunidade internacional que, em agosto de 1981, com a Declaração Franco-Mexicana, reconheceu a FMLN como força representativa da luta popular e legitimou as causas que provocaram a guerra civil: exclusão política, marginalização socioeconômica, desigualdade e intervenção. Quatro diferentes projetos de contra-insurgência dos EUA falharam, embora estivessem fornecendo US$ 2 milhões por dia em ajuda até o final da guerra.

Hilary Goodfriend

Como foi que, depois de planejar a tomada militar do poder, o conflito terminou com uma solução negociada?

Nidia Díaz

Tudo dependia do equilíbrio de poder. Ao derrotar quatro estratégias de contrainsurgência, tínhamos um programa revolucionário a alcançar: o governo revolucionário democrático. Em 1984, mudamos para um “governo provisório com ampla participação”. Em 1989, não esperávamos mais estar no poder para realizar eleições livres; fizemos uma proposta para participar de eleições em plena guerra. Mas a guerra continuou, e o fator que a prolongou foi a intervenção norte-americana. Se eles tivessem cortado a ajuda e não tivessem resgatado aquele exército, nós os teríamos derrotado militarmente, porque, em 1983, destruímos as posições das defesas civis, os grupos paramilitares. Então, sim, tínhamos nossas esperanças, mas a realidade era diferente.

Muitas pessoas dizem: “Por que você negociou em vez de tomar o poder?” Bem, quanto mais prolongada a guerra se tornava, menos as pessoas a desejavam. A guerra é um estado de exceção que destrói a vida humana. Há um alto custo social. Acabamos com oitenta mil mortos, oito mil desaparecidos, muitos exilados. Famílias foram dilaceradas; tivemos muitos presos políticos. Assim, aproveitamos o equilíbrio de forças em que estávamos situados como duas partes iguais para negociar uma solução política.

Mas quero dizer isto: se não tivéssemos continuado a luta armada até o último dia, não teríamos forçado a oligarquia e o exército a se reformarem, a ceder. Porque até uma vírgula foi decidida com balas. E por isso, essa luta de libertação nacional teve um alto preço em sangue. Nunca foi uma farsa, não para nada. Foi entre o estado salvadorenho e as forças representativas de um povo.

Nidia Díaz como uma jovem guerrilheira. (Cortesia do autor)

Após a Declaração Franco-Mexicana, enviamos uma carta à Assembléia Geral da ONU que foi lida por Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, na qual nos oferecemos para abrir conversações [em 4 de outubro de 1981]. Mas o primeiro diálogo só ocorreu em 1984. O projeto contrainsurgente estava em crise; os EUA estavam reavaliando sua ajuda, que naquele momento era de pouco mais de US$ 1 milhão por dia. Treinou todos os batalhões e legalizou imoralmente a presença de cinquenta e cinco conselheiros militares permanentes no país, embora na realidade fossem mais de trezentos — um deles era o americano que participou da minha captura: Félix Rodríguez, cubano americano. Neste contexto, o [Presidente José Napoleón] Duarte ofereceu-se para falar.

Em 15 de outubro de 1984, ocorreu o primeiro diálogo em La Palma, mediado pela Igreja Católica e todo o corpo diplomático. Duarte propôs depor as armas e aderir à nova constituição de 1983. Dissemos que não - porque eu também estava nesse primeiro diálogo - não fomos discutir nossas armas, fomos discutir as causas da guerra, e não podíamos aderir a essa constituição porque dava poder supremo ao militares e não reconheciam direitos e liberdades básicos. A reunião terminou ali. No mês seguinte, houve outro diálogo em Ayagualo; a FMLN propôs uma reforma constitucional para desmilitarizar o país, e Duarte a rejeitou em dez minutos. As conversas foram interrompidas.

Três anos depois, ocorreu outro diálogo: Esquipulas II. Queriam que depuséssemos as armas para conversar. não aceitamos. Por fim, cederam e Duarte concordou em conversar enquanto estávamos armados. Em meio a essas reuniões, mataram o presidente da Comissão de Direitos Humanos de El Salvador. A FMLN interrompeu as negociações, dizendo que não poderíammos dialogar enquanto eles estão matando pessoas. As três conversas com Duarte terminaram aí.

O Diálogo foi reaberto em 1989, agora com o [presidente Alfredo] Cristiani. As primeiras conversas foram sem mediação – apenas as duas delegações, cara a cara. Combinamos de nos encontrar novamente em outubro na Costa Rica. Lá estava a Igreja Católica de volta, com observadores da ONU e da Organização dos Estados Americanos, mas o exército não se sentava à mesa. Da primeira delegação de Cristiani, em setembro de 1989, à assinatura dos acordos de paz, o general [Mauricio] Vargas apareceu, mas ficava por trás. Ele não podia estar na mesma mesa que os insurgentes.

No nível global, estávamos sob muita pressão dos social-democratas para assinar os acordos à toa, porque o Muro de Berlim havia caído, tudo estava perdido no mundo socialista, etc. Eles acreditavam que nosso problema era um conflito Leste-Oeste, mas tínhamos problemas estruturais diferentes, e dissemos que não, mas que iríamos para outra reunião. A oligarquia e a direita disseram que era preciso haver um cessar-fogo para abrir as negociações. Dissemos que não, mas que iríamos para outra reunião.

Marcamos uma para novembro, mas, em 30 de outubro, eles colocaram uma bomba na Federação Sindical Nacional dos Trabalhadores Salvadorenhos [matando nove sindicalistas, incluindo a sindicalista Febe Elizabeth Velásquez]. Interrompemos as negociações e preparamos uma ofensiva para mudar o equilíbrio de forças. Naquele momento, procurávamos concentrar todos os nossos esforços para mudar o curso da história. Assim, em 11 de novembro de 1989, lançamos uma vasta ofensiva chamada “Febe Elizabeth Vive. Hasta el tope y punto.” Eles responderam com repressão, optando por bombardear a periferia da cidade; mataram os jesuítas, mataram muita gente.

Quatro meses depois, o equilíbrio foi realinhado e abriu-se a possibilidade de negociações reais, agora com a intervenção das Nações Unidas como terceira parte. Negociamos de 4 de abril de 1990 a janeiro de 1992, praticamente dois anos.

Hilary Goodfriend

Você pode comentar sobre o conteúdo dos acordos, seu alcance e seus limites?

Nidia Díaz

Para começar, foi estabelecido um formato de negociação de igualdade de condições das partes, com quatro objetivos: finalizar o conflito armado por meio de acordos políticos que abordassem as causas que iniciaram a guerra civil; que esses acordos impulsionassem a democratização do país; que incluíssem o pleno respeito aos direitos humanos; e, com essa base, alcançasse a convivência democrática e a reunificação da sociedade.

Com isso, estabeleceu-se uma agenda de dez pontos: a desmilitarização do país; direitos humanos; o sistema judiciário; o sistema eleitoral; reformas constitucionais; o problema socioeconômico — tudo isso abrangia toda a sociedade, aqueles seis acordos. Os outros eram o cessar-fogo, o processo de desmobilização da FMLN; o processo de redução do exército; e a conversão da FMLN em partido político. Também, verificação e observação eleitoral, e o calendário, o cronograma.

A FMLN concordou que para cada 20% dos acordos políticos cumpridos, haveria uma desmobilização de 20% das forças guerrilheiras, que seriam integradas em atividades econômicas ou políticas, ou na Polícia Nacional Civil. Nossas negociações ocorreram em guerra, não em tempo de paz. Procuramos que cada um dos acordos tivesse respaldo constitucional, pelo menos no que se refere aos elementos políticos. Não alcançamos o equilíbrio de poder necessário para fazer reformas constitucionais econômicas.

Estávamos reformando uma constituição contrainsurgente e de um estado burguês. Não estávamos fazendo uma nova constituição. Mas todos esses acordos foram na direção de um estado social, constitucional e democrático. A constituição já incluía direitos importantes a partir da década de 1950. De fato, na ordem socioeconômica, estabeleceu-se que a propriedade privada seria respeitada na medida em que tivesse uma função social. Quatro formas diferentes de propriedade foram reconhecidas.

Os pontos econômicos que queríamos incluir eram a redução da propriedade privada de 254 hectares para 100 hectares; o direito humano à alimentação e o direito humano à água, como bens públicos; o direito de greve para os trabalhadores do setor público; a liberdade de sindicalização para os camponeses. Mas isso nós perdemos. Fizemos um acordo para começar a democratizar um pouco a economia, relacionado à criação de um fórum socioeconômico para discutir questões como salários, aposentadorias, legalização de títulos de terras urbanas; a terra pública deveria ser dada aos camponeses, e todos os combatentes e pessoas que viviam em áreas de conflito receberiam terra e crédito.

Dois guerrilheiros não identificados posam com uma faixa em Santa Anita, El Salvador, em 23 de fevereiro de 1981. (Robert Nickelsberg / Getty Images)

A oligarquia e os militares resistiram às reformas. Depois que os acordos foram assinados, houve duas transições: a transição democrática dos acordos de paz, incluindo o respeito à participação, às liberdades, disputas eleitorais limpas – o projeto ou programa que alcançasse maior hegemonia entre o povo venceria, mas não mais fraudes, e nunca mais a militarização dos centros de votação — fortalecimento das instituições, separação de poderes, sistema de freios e contrapesos etc. E a outra parte: a transição econômica neoliberal, que tornou os pobres mais pobres e os ricos mais ricos.

Quando o FMLN venceu as eleições dezoito anos depois, descobrimos que a economia estava contraindo 3,6%. Era um país tremendamente desigual, vivendo de remessas; não cultivávamos mais grãos básicos, importávamos tudo. Era um país violento, porque um déficit dos acordos de paz era não ter praticado uma cultura de paz. O que veio foi uma cultura de violência. Ao não cumprir as recomendações da Comissão da Verdade, a impunidade continuou, o judiciário não foi devidamente higienizado e entrou o tráfico de drogas, assim como a venda de armas. As gangues vieram dos Estados Unidos.

Encontramos tudo isso quando entramos no escritório executivo – o que não é o mesmo que tomar o poder.

Hilary Goodfriend

O governo Nayib Bukele ignora os Acordos de Paz. Caracterizou-se por sua consolidação autoritária e, ao mesmo tempo, por seus altos índices de aprovação popular. Em sua opinião, como o momento atual em El Salvador é semelhante ao período autoritário anterior ao conflito armado e quais são as diferenças que você destacaria?

Nidia Díaz

Para começar, a principal diferença é o sistema socioeconômico, no sentido de que a oligarquia não baseia mais sua riqueza na terra, mas sim na especulação financeira e em algum comércio. Mas continua sendo uma oligarquia. Além disso, o alto nível de remessas agora sustenta a economia de consumo. Mas na forma do regime de dominação, é verdade que os militares não estão mais no poder, mas o poder tem uma forma autoritária quando um grupo econômico controla o poder político – um grupo que está estabelecido e outro que está surgindo.

Como comparamos isso com o passado? Quais foram as causas da exclusão política? A centralização do poder. Eles controlavam o legislativo, o executivo, o judiciário etc., e seus interesses prevaleciam, sem a preocupação de respeitar direitos, liberdades, institucionalidade. Não havia separação de poderes, freios e contrapesos, nenhum sistema de liberdades e direitos civis e políticos. Antes, por exemplo, quem criticasse seria desaparecido, morto. Até ter um selo de São Romero era crime. Todas as formas de luta social pacífica eram criminalizadas. O clima de perseguição era real.

Agora, comparando com hoje, o regime tentou controlar o pensamento das pessoas. Quem se opõe ou critica passa a ser visto como inimigo – não como adversário político, mas alguém a ser destruído. Nos acordos de paz, a detenção de presos políticos é proibida. Então ele usa lawfare, guerra judicial; ele usa o poder judiciário para forjar acusações contra políticos, mesmo que sejam injustificadas ou não definidas no código penal. Ele usurpou o poder judiciário, quando os acordos de paz garantiram sua independência.

O que aconteceu em 1º de maio de 2021, [quando Bukele assumiu o controle da Suprema Corte e outros altos funcionários judiciais] foi uma violação flagrante dos acordos de paz, uma ruptura. Agora, eles removeram um juiz por não concordar em ouvir um processo frívolo, ou removeram o juiz que supervisionou o julgamento de El Mozote. Depois, há o que aconteceu em 9 de fevereiro de 2020, quando o presidente quis forçar os legisladores a votar. Usar o exército como ele fez e como ele faz, quando não deveria mais ter essas funções, é grave. Ele também rompe com os acordos de paz quando quer dobrar o tamanho do exército, quando foi acordado que um exército em tempo de paz deveria diminuir, não aumentar, e não deveria se engajar em funções de segurança pública.

Ele não se importa em violar a constituição e essas reformas. Mais tarde, justifica-se, dizendo que não acredita neles, que foi um pacto corrupto, que só serviu para os enriquecer. Ele tenta justificar seu próprio roubo. Por exemplo, mudou as funções do Instituto de Acesso à Informação Pública; ele limpou o Tribunal de Ética do Governo. No final, ele está tentando obter recursos para facilitar a acumulação de seu grupo no poder.

Todas essas leis que fiscalizam as novas instituições que são produto dos acordos de paz foram feitas na COPAZ, a Comissão Nacional de Paz. Eles não eram um capricho. Na COPAZ, você tinha a FMLN e o governo como partidos, e, como observadores, a Igreja Católica e a ONU e os partidos que estavam na legislatura naquele momento. Todas as leis — a lei da Polícia Nacional Civil, do Exército, do Tribunal Superior Eleitoral, da Ouvidoria de Direitos Humanos etc. — foram feitas no COPAZ e enviadas ao Congresso. Houve um processo de debate. Agora vem Bukele e diz: “Não concordo com essas responsabilidades e poderes”, e tenta anular as leis e a constituição. Ele está desmantelando o processo democrático que permitiu sua própria eleição.

Vemos a perseguição da igreja hoje, dos jornalistas. Ele quer banir os verdadeiros partidos da oposição, a FMLN como a esquerda neste país, e também o partido que a oligarquia usou até agora. Hoje, a nova direita está se reconfigurando no partido Nuevas Ideas [de Bukele]. Sua [proposta] reeleição é um atropelamento da constituição que de uma forma ou de outra permitiu que o sistema funcionasse. “Qual sistema?” você pode perguntar. O sistema capitalista, é verdade. Mas é o que permite que você lute por agora.

O problema fundamental é: para que você quer poder? E para que Bukele quer poder? Estamos diante de uma situação de flagrante violação da institucionalidade e da lei, não com o objetivo de uma democracia mais revolucionária, mais transparente, mais participativa, mais justa, mas para se enriquecer, ter mais poder sobre a população.

A FMLN sempre lutou por uma democracia mais transparente e participativa. Somos a favor da implementação do referendo, por exemplo, mas não para centralizar o poder, e sim para democratizar o país. O que [o governo de Bukele] apresentou em sua proposta de reforma constitucional é mais centralização do poder a serviço dos interesses econômicos.

Hilary Goodfriend

Alguns observadores tentam classificar Bukele como um ator contra-hegemônico, especialmente porque ele adotou um discurso aparentemente antiimperialista em suas disputas com o governo Biden. Como você caracterizaria isso?

Nidia Díaz

Ele tem uma contradição secundária com o poder hegemônico. Trump tolerou que Bukele não cumprisse dois dos requisitos da Aliança para a Prosperidade no Triângulo Norte. Dos cinco pontos do plano – prosperidade, segurança, migração, transparência e institucionalidade – ele não cumpriu dois, mas Trump não se importou. Agora, enfrentando exigências de que seja responsabilizado, que não viole permanentemente suas instituições, ele diz: “Eles querem me dizer o que fazer”.

Existe a contradição, mas tem um limite. Os Estados Unidos nunca vão colocar um bloqueio em El Salvador como fizeram em Cuba, mas estão atentos por causa da pressão que sofre o governo de setores mais progressistas. Biden tem um eleitorado para agradar, assim como Trump. Mas nunca vi uma contradição central ou principal entre os Estados Unidos e Bukele.

A princípio, Bukele se apresentou como um homem de esquerda. Mas o que vimos em sua política externa? Rompeu relações com a República Saharaui e não permitiu a abertura de uma embaixada palestiniana; rompeu relações com a Venezuela, retirou os programas sociais cubanos. Ele viu aquele embaixador que Trump enviou a El Salvador como um amigo. Ele é conservador. Antes de assumir o cargo, quando foi para Israel, para o muro, ele – filho de palestinos – ficou do lado de Jerusalém e não do lado de Belém.

Toda a deslegitimação e rejeição da luta popular, dizendo que é uma farsa, e a rejeição das reformas e instituições constitucionais criadas pelos acordos de paz e pelas leis que os sustentam, é para justificar seu roubo ao Estado, e seu regime autoritário e messiânico. Ele diz que foi enviado por Deus, ele diz que é o homem mais legal do mundo, etc., mas no final ele não está trabalhando por mais democracia, justiça social ou direitos. Ele não quer ser questionado, e as instituições destinadas a questionar ou investigar, como a ouvidoria de direitos humanos, o Tribunal de Contas ou a Procuradoria Geral, foram neutralizadas, porque se disserem alguma coisa, estão fora.

Ele quer semear o medo, para que as pessoas não resistam. É uma forma de neutralizar a esquerda, neutralizar uma luta. Mas vivemos em um momento em que as pessoas também começaram a questionar. As pessoas sairão às ruas para defender os acordos de paz. Eles vão sair e se expressar, como fizeram em 7 de setembro, quando a lei Bitcoin entrou em vigor, em 15 de setembro, 17 de outubro, 12 de dezembro e agora 16 de janeiro. Setores mais democráticos estão se unindo. Bukele tem uma habilidade incrível em manipular, comunicar-se com as pessoas. Mas muitas pessoas estão começando a entender. As pessoas estão cansadas.

Precisamos defender a história, a memória histórica. Hoje ele está destruindo monumentos. Ele não reconhece a luta de libertação, nem os acordos entre o Estado e a FMLN como uma força representativa que foi reconhecida pela comunidade internacional. Ele não respeita a memória de nossos heróis e heroínas. Ele os vê como criminosos, vivos e mortos. Se o povo não tem memória histórica, por falta de um programa real de memória histórica e porque a FMLN não conseguiu criar uma cultura hegemônica entre o povo, então temos essa situação hoje.

Sobre a entrevistada

Nidia Díaz é advogada, política e signatária dos Acordos de Paz de Chapultepec como representante da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional.

Sobre a entrevistadora

Hilary Goodfriend é doutoranda em estudos latino-americanos na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). É editora colaboradora da Jacobin e da Jacobin América Latina.

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