8 de janeiro de 2022

Como os alemães lidaram com o passado nazista

A compreensão alemã da era nazista é muitas vezes vista como um modelo de como um país lida com seu passado. Mas os limites dessa experiência também têm muito a nos ensinar sobre a construção de uma cultura da memória pública baseada em um universalismo radical.

Mário Kessler

Jacobin

Berlim, Alemanha durante a abertura dos Jogos Olímpicos de 1936. (Biblioteca do Congresso / Photo12 / Universal Images Group via Getty Images)

Resenha do livro Learning From the Germans: Race and the Memory of Evil (New York, Picador) da autora Susan Neiman.

Tradução / Pouco depois da guerra árabe-israelense de 1967, o ativista pelos direitos civis Julius Lester escreveu que a memória dos seis milhões de judeus assassinados não deveria minimizar os crimes dos Estados Unidos no Vietnam e a opressão aos negros na América do Norte. A sociedade norte-americana, ele disse, estava doente — e incapaz de lidar com o seu legado racista.

Trinta e seis anos depois, eu era um professor visitante na Universidade de Massachusetts, em Amherst, e lembrei de Lester, que havia ensinado ali, e seu ensaio. Nesse meio tempo, ele havia se convertido ao judaísmo, obtido treinamento como rabino e em estudos avançados em religião e se tornado professor. Ele me disse que ele não mudaria uma vírgula do que tinha escrito, mas que ele havia compreendido a universalidade do Holocausto: nenhum outro crime, nem mesmo a escravidão, é comparável.

O racismo é, em todas as suas formas, o mal nuclear da humanidade. Contudo, o ódio aos judeus e a escravatura de povos inteiros na África e no continente americano são mais antigas do que o racismo “moderno”, operando em termos pseudo-biológicos. Este último invoca uma suposta ameaça à saúde pública para eliminar pessoas “inferiores”, marcadas como pragas. Na Alemanha nazista, elas foram exterminadas — e a condução do pior legado da história alemã também definiria as décadas posteriores ao fim da inglória era Hitler. A “legislação racial” nos Estados Unidos precede o império nazista e persistiu por muito tempo depois de 1945. “Entendo isso”, disse um soldado negro norte-americano durante a libertação dos prisioneiros de Buchenwald, “porque vi pessoas serem linchadas simplesmente por serem negras”.

Portanto, como a Alemanha, após sua conturbada unificação, e os Estados Unidos de hoje em dia encaram essa herança — algo que ambas sociedades compartilham de diferentes maneiras, mas que também as separa? Essas questões estão no coração do livro de Susan Neiman, uma aula de esclarecimento aplicado.

Em defesa do universalismo

Nascida em 1955, a autora judia cresceu em Atlanta, Georgia. Ela deixou a escola aos 14 e ingressou em uma comuna na Califórnia. Mas sua sede por conhecimento a fez voltar para a sala de aula, sem nunca abandonar o envolvimento com movimentos antiguerra. Ela foi admitida na New York City College, depois estudou filosofia em Harvard e, durante algum tempo, na Universidade Livre de Berlin.

Em 1986, ela conquistou o seu doutorado em Harvard sob orientação de John Rawls, a quem manteve-se acadêmica e pessoalmente conectada até a morte dele. Depois de ter iniciado como professora assistente e depois associada em Yale, tornou-se docente em Tel Aviv. De lá, ela veio para Einstein Forum, em Potsdam, Alemanha, um ambiente de encontro intelectual que ela dirige desde então.

Os antepassados de Neiman imigraram para os Estados Unidos a tempo de serem poupados pelas máquinas de guerra nazista e da memória assombrosa delas. Contudo, ela cresceu em um Estado no sul dos Estado Unidos onde pessoas negras eram consideradas cidadãos de terceira classe e — visto que ela teve sua infância marcada por isso — os judeus de segunda classe. A autora monta um quadro surpreendente de como ela inicialmente tentou descartar essas experiências como irrelevantes, antes de aprender a lidar com elas.

O livro é uma combinação de relato pessoal e análise sociológica, refletida através dos olhos de uma filósofa que pensa historicamente. A estrela guia de Neiman é Immanuel Kant. Com o “filósofo do esclarecimento” ela busca pensadores independentes que usam o seu intelecto para ultrapassar as fronteiras da imaturidade.

Outro pensador mencionado por Neiman, o historiador Isaac Deutscher, também estava interessado na transgressão de fronteiras. Deutscher via a si mesmo como um judeu não-judeu (ele cunhou esse termo) que continuou em conexão com a herança do judaismo que guia os judeus a sairem do gueto rumo à emancipação. Ainda que tal emancipação tivesse que transcender as fronteiras do judaísmo, foi a resistência judia à opressão e exclusão que os permitiu contribuir com a liberação de todas as pessoas. O pré-requisito para isso, segundo Neiman, é um internacionalismo sem reservas. Ela chama essa atitude de “universalismo” e com isso ela constrói a ponte de Deutscher ao esclarecimento kantiano, cujo legado ela defende com afinco.

Esse elementos caracterizam o pensamento e o processo de trabalho da autora. “Esse livro mostra”, escreve Neiman, “como o povo alemão trabalhou, aos poucos e intermitentemente, para reconhecer os males que sua nação cometeu. Muitos livros foram escritos apelando para que tirássemos lições do Holocausto, algumas delas duvidosas. O meu interesse é naquilo que podemos aprender com a Alemanha depois que a catástrofe terminou. É algo que deveria dar esperança particularmente aos norte-americanos que nesse momento se esforçam para enfrentar e aprender com sua própria história cindida”.

Neiman pergunta sobre quem tem o direito de fazer comparações. Os nazistas foram os primeiros a comparar suas próprias políticas raciais com os Estados Unidos e bem antes de terem ascendido ao poder, se inspiraram na eugenia norte-americana para alicerçar sua “teoria racial”. A autora cita Tzvetan Todorov, para quem “os alemães devem falar sobre a singularidade do Holocausto, os judeus, de sua universalidade. [...] Um alemão que fala da singularidade do Holocausto assume responsabilidade; um alemão que fala de sua universalidade, a nega”. Este último está apenas em busca de absolvição; se todos têm, de alguma maneira, algum tipo de culpa pelo assassinato em massa, como poderiam os alemães tê-lo evitado?

Mas após um doloroso processo de reflexão, essa atitude desembocou em Vergangenheitsaufarbeitung (aprender a lidar com o passado), uma palavra que significou mais do que um mero desafio fonético para a autora. Na Alemanha, o interesse em todos os aspectos do passado nazista — especialmente a responsabilidade de alemães comuns — tem crescido, como evidenciado pelo grande número de memoriais. Nos Estados Unidos também tem se multiplicado os memoriais em alusão ao Holocausto, mas apesar do progresso nos últimos dois anos, há poucos dedicados à escravidão (o mesmo poderia ser dito do Reino Unido). Um memorial em Washington para o genocídio dos norte-americanos nativos, quem sabe próximo ao Museu do Holocausto, é quase inconcebível.

O Holocausto como o mal em estado puro permitiu que a América do Norte desviasse a atenção de seus próprios delitos. Portanto, a muitos norte-americanos falta (pelo menos até recentemente) uma compreensão da Guerra Civil Americana, bem como da sociedade do período Jim Crow. A política cultural dos Estados Unidos se beneficiaria enormemente caso aprendesse a lidar com seu próprio passado, assim como a sociedade Alemã tem feito.

Theodor W. Adorno escreveu que a reconsideração do passado influencia o consciente, mas mais ainda o inconsciente. Neiman cita o pensador frankfurtiano da seguinte maneira: “É simplesmente como somos feitos: nos ataque do exterior, rapidamente defenderemos nosso terreno”. Ela deixa claro a razão pela qual os nazistas — assassinos em massa como Adolf Eichmann, predecessores e sucessores ideológicos como Martin Heidegger e Carl Schmitt — conseguiam dormir mais em paz do que suas vítimas sobreviventes e o porquê das poucas personalidades que tentaram relembrar o que viveram experimentaram rejeição e, mais tarde, tiveram nada mais que um reconhecimento paternalista.

Nas décadas de 1950 e 1960, o ex-soldado da resistência Wolfgang Abendroth foi o único professor universitário na Alemanha Ocidental a iniciar pesquisas a respeito da resistência de trabalhadores antifascistas. Para além disso, não havia menções ao antifascismo na Alemanha Ocidental; a palavra em si mesmo era uma anátema. Do contrário, estratégias de absolvição dominavam: os tópicos mais frequentes eram o bombardeio de cidades alemãs pelos Aliados e a expulsão de alemães dos hoje ex-territórios orientais.

Alemanha pós-guerra

Susan Neiman tenta entender por que isso foi provavelmente inevitável após o fim da guerra, nos anos do “milagre econômico” quando os alemães se anestesiaram com atividade frenética — uma oblação para perdoar e para fazer esquecer. Ela presta tributo aos esforços feitos pelo chanceler social democrata Willy Brandt e à geração de 1960 em rasgar esse véu de esquecimento intencional e por perguntarem questões incisivas aos seus próprios pais. Ela justifica a razão de seu julgamento em geral positivo da coalizão de governo Verde/Social Democrata (1998–2005) primeiramente em termos da orientação que forneceu à política de memória, algo impensável sob o governo predecessor do chanceler conservador Helmut Kohl.

Em certa parte, Neiman descreve Jan Philipp Reemtsma, o diretor do Instituto Hamburgo de Pesquisa Social, como uma figura chave na relação adequada com o passado, acima de tudo como o pivô da exibição sobre os crimes de Wehrmacht em 1955. Essa exibição foi uma reversão contundente nas tentativas de reabilitar o exército de guerra alemão. “Os heróis de Wehrmacht se tornaram perdedores e vítimas de bombas e de campos de concentração… agora eles tinham que se acostumar a ser criminosos.” Ataques à exibição fizeram com que as contradições na discussão da história emergissem com ainda mais força do que tinha acontecido no famoso Historikerstreit (Debate de Historiadores) nove anos antes.

Quanto à República Democrática Alemã (RDA), a autora apresenta

uma tese simples e translúcida: a Alemanha Oriental se saiu melhor em lidar com o passado nazista do que a Alemanha Ocidental. Como qualquer tentativa de realizar julgamentos normativos sobre a história, essa pode ser, e será, complicada. Ainda assim, o julgamento será uma surpresa para a maioria dos leitores anglo-americanos. Para muitos dos alemães, essa afirmação é o equivalente filosófico a jogar a luva ao chão em um duelo à moda antiga.

A autora nunca considera o antifascismo patrocinado pelo Estado de forma superficial, mostrando como lentamente ele se tornou ritualizado e instrumentalizado. Independentemente, é importante lembrar que a RDA estava à frente da Alemanha Ocidental de várias formas. Neiman cita Hans Otto Bräutigam, o ex-representante ocidental permanente na RDA, na medida que “uma das grandes forças da Alemanha Oriental” foi sua pronta condenação do fascismo.

Alemães orientais entrevistados pela autora — o pastor protestante e ativista pelos direitos civis Friedrich Schorlemmer, o biólogo molecular Jens Reich, o diretor do Centrum Judaicum em Berlin Oriental, Hermann Simon, o cantor folk yiddish, Jalda Rebling e o escritor Ingo Schulze — também enfatizaram que o antifascismo da RDA não era apenas uma retórica vazia. Desde o início havia filmes, livros, peças e toda criança em idade escolar visitava Buchenwald.

O livro Learning from the Germans é também um apelo aos alemães orientais para que não permitam que melhor parte de sua herança lhes seja retirada — e uma demanda à Alemanha Ocidental em honrar essa herança como parte de sua cultura de memória democrática.

Mas por que os judeus na RDA, que sofreram perseguições, exílio e os campos de concentração, falavam tão pouco sobre o seu judaísmo? Teria sido, talvez, também porque a solidariedade com seus camaradas não-judeus do movimento dos trabalhadores fosse o vínculo mais forte deles? Contudo, é igualmente verdade que o comprometimento da RDA com o antifascismo ajudou muitas pessoas a inocentarem a si mesmas. De acordo com uma pesquisa da revista Spiegel, após 45 anos de educação antifascista, em 1990, 4% da população da Alemanha Oriental demonstrava atitudes antissemitas extremas, um quarto a mais do que na Alemanha Ocidental. Nos 30 anos desde a reunificação, eles alcançaram e ultrapassaram os números da Alemanha Ocidental.

Em 1945, a maior parte dos alemães orientais era tão desinteressada quanto os alemães ocidentais em avançar numa direção antifascista — o que é precisamente a razão pela qual isso tinha que ser decidido por eles. Entretanto, na Guerra Fria, a Alemanha Ocidental precisava da expertise daqueles que haviam trabalhado contra a União Soviética sob Hitler. Portanto, o anticomunismo, apenas provisoriamente depurado de seus elementos anti-judaicos, foi testado para reuso e considerado adequado, conforme Neiman demonstra claramente.

Pagamentos financeiros à Israel, os quais foram “chamados de compensações ao invés de reparações, uma palavra que lembrava muitas pessoas do detestado Tratado de Versalhes”, foram a partir de então vistos como álibi para a integração da República Federal em uma comunidade anticomunista ocidental. Porém, como uma das passagens mais assombrosas do livro de Neiman pontua, a equação política entre fascismo e comunismo serviu a um “propósito sombrio” ainda maior:

Poucos soldados da Wehrmacht foram mobilizados para conduzir os civis judeus, embora poucos desobedeceram ordens para fazê-lo uma vez que estivessem atrás das linhas de frente. [...] Mas nenhuma ditadura segue adiante meramente pelo comando das tropas; é necessário inspirá-las. O ethos heróico que os nazistas cultivavam não teria progredido pela expulsão de recrutas a atirar em homens velhos com barbas longas ou a usar suas baionetas em bebês; esses atos aconteceram, mas eles não foram anunciados. O chamado para defender a Europa da ameaça do comunismo foi alto, claro e muito mais efetivo.

Entre os alemães ocidentais, isso permitiu que sentimentos persistentes de culpa fossem amenizados e que o anticomunismo fosse justificado: “quanto pior os bolcheviques hoje aparentam, melhor parecem os nazistas do passado”. Mas a repressão do passado também teve espaço na RDA — um silêncio sobre os crimes do stalinismo, incluindo seu anti-semitismo. Poderia a RDA ter sobrevivido, pergunta Neiman, se não tivesse também utilizado o antifascismo para dissimular injustiça e opressão? Mas, conforme explicita a autora, a RDA não foi condenada por ter abusado do antifascismo, mas porque ela queria combinar antifascismo com socialismo e acabar com aqueles responsáveis pela guerra e assassinato em massa.

Lições alemãs?

Neiman afirma que o ímpeto para o livro surgiu quando o ex-presidente Barack Obama realizou um discurso memorial, em 26 de junho de 2015, para 9 afro-americanos assassinados em Charleston, Carolina do Norte, conclamando por uma fundamental reconsideração do racismo nos Estados Unidos e em sua história. Ela foi ao Mississipi em 2016 e, após a eleição de Donald Trump, passou parte de 2017 em um período sabático em uma universidade daquele estado.

Lá, Neiman escrutinou o Movimento pelos Direitos Civis e questionou quanto racismo institucional e estrutural ainda estava presente nos Estados Unidos — mais abertamente no sul. Ela vê o começo do Movimento pelos Direitos Civis em 1955, quando os assassinos brancos do adolescente afro-americano de 14 anos, Emmett Till, foram absolvidos. No mesmo ano, o boicote aos ônibus em Montgomery, Alabama, foi o primeiro sinal de uma rebelião de massas contra o racismo de Estado. A demora para julgar os assassinos de Till e o modo como o crime foi tratado não serão facilmente esquecidos por quem vir a ler a discussão de Neiman sobre os cristãos afro-americanos rezando por misericórdia para os assassinos de Till:

A capacidade de retribuir ódio com amor apaga a razão do mapa, pelo menos por um tempo. Eu não consigo entender isso, assim como não consigo entender como, sabendo da história, as igrejas negras em toda a América continuam abrindo suas portas e seus corações para estranhos brancos, incessantemente. Quanto amor e coragem. Quanta coragem e amor.

Nos Estados Unidos, mais ainda do que na Alemanha, Neiman se baseia em entrevistas com homens e mulheres de mais diversas origens e profissões. Ela retrata, com respeito e compreensão, pessoas a quem sequer era permitido sonhar com um caminho educacional como o dela. Ela descreve as condições no Mississippi, o Estado mais pobre dos Estados Unidos, onde os negros pobres carentes de educação (e também brancos!) têm poucas chances de quebrar o ciclo vicioso de pobreza, desvantagem educacional e profissional, cuidados de saúde indignos e morte precoce.

Mas ela também reconhece os grandes esforços de homens e mulheres para remediar isso, ainda que em pequenos gestos. Incansavelmente, ela descobre iniciativas de autoajuda e solidariedade mútua, mesmo em situações onde parece que não há nada a ser feito. Esses trechos do livro são particularmente tocantes pela sua humanidade. Em nenhum momento Neiman cede ao pathos; em nenhum momento ela parece estar dando uma lição. Sua linguagem, como Jan Plamper observa em uma resenha, é “frequentemente leve, isto é, sem dedos em riste apontando o tempo todo para todo mundo”.

Hoje, nenhum sulista justifica a escravidão, assim como o antisemitismo explícito não é mais socialmente aceitável na Alemanha. No entanto, as celebrações ritualizadas em homenagem aos exércitos confederados, lembram à autora de uma glorificação cristã do sofrimento, assim como o fundamentalismo religioso em geral se tornou um substituto para as “causas perdida”. Em contraste, os “monumentos mais comoventes… as próprias palavras dos escravos, coletadas de depoimentos da Administração de Projetos de Trabalho e gravadas em lajes de granito colocadas em fileiras compridas”, estão pouco presentes na consciência das pessoas. A ignorância a respeito dos contextos sociais, incluindo a necessidade de lidar com o próprio passado das pessoas, tornou Trump possível, reitera a autora.

Vale a pena lembrar que a carreira política de Trump começou com uma teoria conspiratória sobre a cidadania de Barack Obama, espalhando mentiras de que ele não havia nascido nos Estados Unidos e que sua presidência era ilegítima. Mas esse é apenas um dos aspectos imundos de um discurso desonesto que diz que negros, quando estes falam sobre igualdade, estão se referindo apenas a possuir mulheres brancas. Para Neiman, a fantasia de homens negros estuprando mulheres brancas é “uma espécie de projeção”; ela alimenta a culpa dos brancos porque eles sabem “que seus ancestrais violavam mulheres negras quando bem entendiam”, e agora acreditam “que homens negros farão o mesmo”.

Foi vantajoso ter feito elogios aos exércitos da Confederação a partir do início do século XX — sem mencionar a verdadeira razão pela qual eles lutaram — para reconciliar os membros brancos dos exércitos inimigos? É uma coincidência que o filme Nascimento de uma Nação foi glorificado em 1915 — o mesmo que a Ku Klux Klan celebrou o seu renascimento em uma cerimônia noturna em Atlanta, e que Jew Leo Frank tenha sido linchado nesse mesmo Estado? As sombras daquela época realmente se tornaram sombras do passado?

Neiman relembra os três trabalhadores civis assassinados em 1964, James Earl Chaney, Andrew Goodman, e Michael Schwerner, homenageados no filme de 1988, Mississippi Burning, bem como Edgar Ray Killen, quem planejou a morte deles e seguiu vivendo em liberdade por 40 anos. Ela ouve até mesmo racistas que tentam explicá-la que negros são inerentemente criminosos e que é disso que você tem que se proteger. Finalmente, como na Alemanha Ocidental da década de 1950, o anticomunismo funciona como um narcótico, aqui combinado com racismo militante. As universidades são os celeiros do comunismo, a autora ouviu mais de uma vez.

Quer dizer que quem quer que detenha poder pode escrever a história? Eles o fazem, se os meios de produção e de informação estão em suas mãos — mas eles também têm sido obrigados a fazer concessões, tanto nas universidades quanto em outros lugares. “Tivemos um brilhante movimento pelos direitos civis, mas não vencemos a guerra narrativa”, comenta Bryan Stevenson, advogado afro-americano fundador do Memorial Nacional pela Paz e Justiça em Montgomery, Alabama, que honram vitimas de linchamento racial.

Otimismo desafiador

Olivro é um marco literário sobre cultura de memória. Pela primeira vez, a autora conectou as culturas de memórias separadas dos norte-americanos e alemães, dos alemães ocidentais e orientais, dos judeus e não e não judeus, de norte-americanos negros e brancos. Ela deixa claro que as respectivas reconsiderações do passado podem ser pensadas juntas, que são multidimensionais e que são necessárias várias gerações antes que a história encontre-se consigo mesma.

Mas o livro oferece mais do que isso: com potentes pinceladas, Neiman pinta um quadro impressionante de diferentes épocas, capturando os problemas de ambas as sociedades. Ela remove as fronteiras entre filosofia e política, historiografia e literatura, escrevendo de forma brilhante para uma audiência ampla, sem abrir mão de nenhuma partícula de sua erudição. Learning From the Germans dirige-se a uma audiência liberal e evita, com sabedoria, quaisquer terminologias que possam ser “desagradáveis” para ela. Mas qualquer um que leia o livro com uma consciência política perceberá que ele não se sustenta apenas pela solidariedade com os perdedores da história, mas também por um espírito socialista e um otimismo quase desafiador.

Podemos concluir deixando que Neiman fale por si mesma mais uma vez. Por ser judia, ela aprendeu em Israel que “eu nunca poderia me sentir mais próxima a um traficante de armas que compartilhe comigo minha origem étnica do que a um amigo do Chile ou da África do Sul ou do Cazaquistão que compartilhe meus valores básicos. Meus laços são com pessoas, não genealogias. Eu escolho amigos e amores por motivos racionais.”

Essa é uma versão resumida da resenha publicada na revista Sozialismus. A tradução para o inglês foi feita pelo próprio autor.

Colaborador

Mário Kessler é membro sênior do Centro Leibniz de História Contemporânea em Potsdam, Alemanha.

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