14 de janeiro de 2022

Mundo do trabalho e as reformas civilizatórias: os ventos da Espanha

Não resta dúvida sobre a incapacidade de a reforma trabalhista em cumprir sua principal promessa

Tereza Campello, Miguel Rossetto e André Calixtre

Folha de S.Paulo


A Espanha resolveu finalmente encerrar seu longo ciclo neoliberal de desestruturação do mercado de trabalho, onde o governo Pedro Sánchez, do PSOE (Partido Socialista Obrero Español), aprovou em dezembro de 2021 (na forma de Decreto Real a ser referendado pelo Congresso) uma reforma trabalhista civilizatória, após intensa participação social via negociação tripartite ao longo de todo o ano passado, envolvendo, portanto, trabalhadores, governo e empresários. O alto desemprego espanhol, especialmente entre jovens, uma das maiores desigualdades da Europa e a precarização das condições de trabalho motivaram essa virada.

No caso do Brasil, a reforma trabalhista é a última joia da coroa instituída pelo governo Temer em 2017 com a promessa, feita pelo então ministro da Fazenda Henrique Meirelles, de que ela traria 6 milhões de novos empregos. Além de ampliar o problema do emprego, cuja massa de desempregados está girando em 14 milhões de brasileiros, 1,5 milhões a mais do que no ano de aprovação da reforma, a dita "reforma modernizadora" ampliou a informalidade no mercado de trabalho, chegando hoje a incríveis 45 milhões de trabalhadores, quase metade da população ocupada, um ganho de mais de 3 milhões desde 2017 e ainda houve redução de um pouco mais de 1 milhão de trabalhadores formais, todos esses dados registrados pela Pnad Contínua, do IBGE.

Após a revisão dos dados do novo Caged em 2020, mostrando que a alardeada criação de empregos formais durante o governo Bolsonaro era na verdade uma subestimação brutal de demissões provocada pela mudança metodológica na base de dados, não resta dúvida sobre a incapacidade de a reforma trabalhista em cumprir sua principal promessa.

Isso sem mencionar os efeitos mais profundos da dita reforma para o mundo do trabalho, ao impedir o acesso à Justiça do Trabalho, igualar patrão e empregado quando todos sabemos que essa relação é assimétrica, e destruir as fontes de financiamento sindical, impedindo o fortalecimento das estruturas de negociação pela parte dos trabalhadores. A reforma de Temer foi aprovada sem negociação com os trabalhadores, sem discussão técnica adequada e por um governo que não discutiu seu programa nas urnas, ascendeu ao poder golpeando a presidenta eleita legitimamente pelo voto popular e destruiu as principais instituições reguladoras do trabalho, no Executivo e no Judiciário.

Governos democráticos não revogam autoritariamente leis. Ademais, a realidade é que precisamos pensar um futuro mais digno para os trabalhadores brasileiros, e esse novo mundo do trabalho –responsável sozinho por quase 50% da redução da desigualdade de renda que tivemos no último ciclo de desenvolvimento, segundo pesquisa do Ipea– deve incorporar e estruturar as novas condições de ocupação trazidas pelo avanço tecnológico. Os impactos da informalização do trabalho são graves e profundos.

Segundo pesquisa da Rede Penssan, é quatro vezes maior o risco de insegurança alimentar grave, leia-se fome, em famílias chefiadas por trabalhador informal que por assalariado, atingindo 15,7% desse grupo em 2020, contra 3,7% dos trabalhadores formais. O aumento da informalidade tem reduzido a massa salarial, retirando a classe trabalhadora do acesso à renda gerada pela economia. O que temos assistido é uma crise civilizatória no mercado de trabalho brasileiro, acelerada pelo desastre econômico do bolsonarismo, cujas consequências podem se tornar irreversíveis.

Sobre o exemplo da reforma civilizatória espanhola, esta consiste em três eixos principais: o fortalecimento dos gastos sociais em educação e saúde e criação de um programa de renda mínima de mesma inspiração do Bolsa Família brasileiro; o aumento real do salário mínimo, hoje fixado em 1.125,00 euros e cuja meta é atingir 60% da média de salários até 2023 (atualmente, esse nível já chegou a 57% da média); e atacar o desemprego e a precarização do trabalho, limitando o uso dos contratos de curta duração e estimulando os contratos por tempo indefinido, taxando em 27 euros os contratos inferiores a 30 dias de duração, diminuindo as demissões como variável de ajuste no mercado de trabalho, investindo pesadamente em um programa de qualificação profissional, em especial as médias ocupações (nível técnico), e ampliando o acesso aos programas de preservação de emprego especificamente criados para o combate à pandemia.

A experiência espanhola mostra que a negociação tripartite pode ser um caminho viável, mas, para isso funcionar no Brasil, é preciso um novo modelo de desenvolvimento e o resgate das instituições democráticas de negociação tripartite e participação social, depredadas por sucessivos movimentos autoritários. Evidentemente, a realidade brasileira é muito mais desafiadora, temos uma sociedade desigual, dualizada entre mercados de trabalho formal e informal e cujo Estado está capturado por inconfessáveis desejos de autodestruição.

É possível, no entanto, apontar novos caminhos. Com a retomada de políticas públicas para o crescimento econômico, a atuação do Estado é fundamental, reativando o motor de geração e distribuição de renda do mundo do trabalho e aprimorando o desenho do Estado de bem-estar para as profundas mudanças tecnológicas, ambientais e demográficas que se avizinham, garantindo renda mínima a uma parcela maior da população que agora ficou desassistida com a desestruturação provocada pelos erros do governo Bolsonaro no combate à pandemia e na introdução do Auxílio Brasil.

No mercado de trabalho, o Estado precisa agir direta e ativamente na gestão da massa de desempregados, garantindo empregos sociais temporários em setores estratégicos, como cuidados pessoais, melhorias da infraestrutura pública e cultural, e redirecionando a capacitação técnica dos trabalhadores atingidos pela intensa reestruturação produtiva acelerada pela pandemia.

É preciso ousar uma nova política de valorização do salário mínimo e um novo contrato social centrado em um estatuto único do trabalhador, seja ele formal ou informal, que permita acesso a direitos trabalhistas mínimos a toda a população economicamente ativa. Recuperar direitos perdidos, reduzir as profundas disparidades de gênero e raça no mercado de trabalho, que restabeleça as condições de acesso à Justiça do Trabalho e que retome a primazia da organização sindical sobre a individual no mercado de trabalho.

No entanto, a nossa reforma civilizatória precisa atuar como um poderoso instrumento de inclusão do mundo informal, reconhecendo direitos de trabalhadores por aplicativo e atuando fortemente na regulação dos contas-próprias, que é a categoria informal que mais cresce atualmente, incluindo com acesso aos fundos públicos tradicionalmente constituídos pelo setor formal da economia como o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e ampliando o seguro-desemprego para o mundo informal.

A Espanha não é um caso isolado no mundo, diversos países têm revisto suas normas trabalhistas após o duro enfrentamento da pandemia e seus efeitos sobre o emprego, dentre eles os Estados Unidos e a Coreia do Sul, esta até reduziu sua jornada de trabalho, pauta hoje considerada utópica para o Brasil. A disputa política maior é sobre o padrão do ciclo de recuperação econômica que virá após a imunização produzida pela vacinação em massa e a aguardada mudança de comportamento do vírus para uma doença endêmica.

Os efeitos da pandemia já são comparáveis a uma grande guerra mundial, mas os caminhos para uma recuperação mais ou menos civilizada continuam plenamente abertos para as nações. O Brasil precisa definir se escolhe permanecer nesse estranho lugar de negacionismo, autoritarismo e precarização do trabalho ou se prefere investir em um projeto econômico-social e ambientalmente sustentável.

Sobre os autores

Tereza Campello

Economista, titular da Cátedra Josué de Castro/USP. Foi ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-2016)

Miguel Rossetto

Sociólogo, mestre em Políticas Públicas. Foi ministro do Trabalho e da Previdência Social (2015/2016)

André Calixtre

Economista, doutorando em economia pela UnB. Foi Diretor de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2015/2016)

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