19 de janeiro de 2022

Brasil rentista

O Partido dos Trabalhadores vai romper com as grandes finanças?

Guilherme Leite Gonçalves e Lena Lavinas



Embora o mercado de capitais em queda do Brasil tenha desencadeado a suspensão de inúmeras ofertas públicas iniciais (IPOs) planejadas ao longo de 2021, isso não desencorajou todos os investidores. A startup de logística Favela Brasil XPress, com sede na maior favela do país, Paraisópolis, abriu seu capital em novembro passado com a expectativa de arrecadar R$ 1,3 milhão em seis meses e o objetivo final de rivalizar com a Amazon. Nas comunidades pobres onde vivem cerca de 14 milhões de pessoas, muitas das quais são efetivamente controladas por narcotraficantes, as entregas do comércio eletrônico nem sempre chegam. Ao preencher essa lacuna, o Favela Brasil XPress pretende trazer grandes negócios para as favelas, onde se tornará um substituto para o estado viciado.

Mesmo que o Favela Brasil XPress não tenha sucesso (como parece provável, dado o aumento vertiginoso das taxas de juros), iniciativas financeiras semelhantes continuarão a varrer o país. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil – outrora uma campanha radical pela reforma agrária – começou recentemente a espelhar as atividades dos gigantes do agronegócio, emitindo títulos de renda fixa de cinco anos para investir na produção de alimentos orgânicos. Dois fatores explicam a prevalência de tais empreendimentos. Em primeiro lugar, oferecem provisões básicas que não podem mais ser esperadas do setor público. Após o golpe parlamentar de 2016 que destituiu a presidente Dilma Rousseff do cargo, uma série de reformas neoliberais foi implementada, sendo a mais danosa a adoção de um teto constitucional para os gastos públicos – agora travado até 2036. Com a austeridade legalmente consagrada, novos as formas de provisão privada tornaram-se cruciais para atender às necessidades essenciais das pessoas.

Em segundo lugar, tais iniciativas estão ligadas a uma mudança generalizada para a financeirização de massa, fomentada por ações estatais nas últimas duas décadas. A essa altura, os efeitos desse processo são fáceis de ser percebidos. Ao alimentar a demanda agregada, o acesso ampliado ao crédito prometia criar uma sociedade de consumo de massa inclusiva. No entanto, o boom do crédito veio com sérias desvantagens. A relação dívida/renda das famílias no Brasil subiu de 18% em 2004 para 60% no final de 2021, enquanto a massa salarial nunca ultrapassou 45% do PIB no mesmo período. Até o final de 2021, o endividamento das famílias atingiu 74% das famílias brasileiras e a inadimplência seguiu o mesmo passo, atingindo 64 milhões de adultos. Em vez de um passo em direção à propriedade de ativos, a dívida tornou-se um meio de sobrevivência. Com a taxa de desemprego em torno de 12,5%, os salários relativamente estagnados, as taxas de juros subindo e milhões de brasileiros vivendo na pobreza, é improvável que a dívida das famílias se contraia.

Acionistas de baixa renda correram para o mercado de ações na esperança de obter ganhos de capital de curto prazo. Desde 2003, seu número aumentou de 85.500 para mais de 4 milhões. A mentalidade do stakeholder infiltrou-se na sociedade em geral: um sinal seguro de que a redemocratização do Brasil rompeu com a sociedade assistencialista prevista pela Constituição de 1988. Assim, a questão mais urgente que o país enfrenta é esta: se eleito em novembro de 2022, o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula da Silva desafiará a hegemonia das grandes finanças e resgatará a economia do rentismo?

Para responder, devemos primeiro entender como e por que essa mudança radical ocorreu. Na década de 1980, quando as taxas de inflação começaram a disparar, o setor bancário e financeiro no Brasil desenvolveu mecanismos institucionais de ajuste monetário, oferecendo ganhos protegidos contra a inflação derivados da dívida pública. Apenas as empresas e os muito ricos, que eram a maior parte dos titulares de contas bancárias na época, se beneficiaram dessas medidas. Isso levou a uma crescente autonomia do setor financeiro, que passou a contestar a centralidade do Estado na elaboração da política macroeconômica, ao mesmo tempo em que estimulava a atividade rentista entre empresas não financeiras e famílias de alta renda. A crescente influência do setor bancário e financeiro moldou a liberalização comercial e financeira da década de 1990. Sob o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o Brasil foi integrado aos mercados financeiros globais e a indústria nacional foi devastada.

Com o Plano Real de 1994, que logrou a estabilização monetária, a dinâmica de acumulação financeira mudou de eixo. Os ganhos protegidos pela inflação foram substituídos por altas receitas de juros e outras formas de receitas financeiras, derivadas de um novo regime monetário que fixou a taxa básica de juros (Selic) em patamares estratosféricos – servindo de âncora para controlar a inflação. A corrida para comprar títulos do tesouro brasileiro vinculados à dívida pública interna sinalizou a abertura de uma nova via de acumulação financeira, ainda concentrada entre os mais ricos. Os lucros indexados à Selic consolidaram uma coalizão de interesses rentistas e financeiros à frente do Estado brasileiro. Paralelamente, uma ampla gama de regulamentações institucionais foi elaborada para uma nova etapa de expansão e consolidação do mercado de capitais.

A vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores em 2002 mudou o jogo. Por um lado, preservou o regime de metas de inflação implantado pelo governo anterior, concentrando efetivamente a riqueza. Também aprovou novas regulamentações para incentivar investimentos financeiros e não fez nenhuma tentativa de implementar uma reforma tributária para conter a desigualdade. Por outro, concedeu acesso ao crédito numa escala sem precedentes, promovendo um processo massivo de inclusão financeira através da criação de milhões de contas bancárias simplificadas (sem taxas) e empréstimos especiais (alguns deles subscritos pelo Estado). Ao falhar no fornecimento de bens e serviços públicos, também abriu o caminho para sua recommodificação pelo financiamento.

A presidência de Lula, portanto, viu a primeira grande expansão dos mercados financeiros no Brasil democrático. Ele conseguiu transformar o sistema previdenciário dos servidores públicos de repartição em um esquema híbrido com contas privadas individuais. Ele também tomou medidas para garantir a credibilidade daqueles sem histórico de crédito e estimulou o boom do mercado de ações de 2004-2008, que atraiu grandes investimentos estrangeiros, catalisando um número recorde de IPOs. Lula dialogou com o setor financeiro e preservou o arcabouço institucional neoliberal estabelecido por seu antecessor. Ele não verificou a integração do Brasil nos mercados financeiros globais, nem a autonomia de seu Banco Central. Em nenhum momento, nem mesmo após a reeleição de Lula com grande apoio popular em 2006, o governo petista tentou tributar consistentemente a riqueza financeira, ou colocar uma retenção na fonte sobre os dividendos. A contrapartida da implementação do programa de combate à pobreza Bolsa Família, que atingiu 14 milhões de famílias com apenas 0,5% do PIB, foi uma política de superávit primário que prejudicou ainda mais a provisão pública, permitindo a apropriação financeira da política social.

A financeirização da política social tem sido particularmente evidente nos setores de educação e saúde. O investimento do PT no Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) provocou uma corrida de IPOs que levou a uma onda de fusões e aquisições, gerando conglomerados educacionais entre os maiores do mundo, cujas cotações subiram paralelamente à expansão do crédito do FIES. Milhões de estudantes foram mergulhados em dívidas. Ao mesmo tempo, sob Dilma Rousseff, o setor de saúde foi aberto ao capital estrangeiro, superando uma norma constitucional. O sistema público de saúde do Brasil tornou-se cada vez mais dependente de provedores privados – corporações internacionais e fundos de investimento – cujo poder de ditar regulamentos cresceu rapidamente. Até 2020, as receitas dos planos privados de saúde que cobrem apenas 25% da população com capacidade de pagamento foram estimadas em R$ 229 bilhões – quase o dobro do orçamento global destinado ao Ministério da Saúde em 2022, responsável pelo atendimento dos outros 75%, ou 165 milhões de brasileiros. O mais preocupante é o fato de que até o setor público está preso a estratégias financeirizadas: estados e municípios agora investem parte do Fundo de Saúde Pública em mercados secundários para aumentar as receitas, por sua conta e risco, para financiar atividades que antes eram integralmente financiadas pelo sistema de taxas.

As empresas não financeiras também aumentaram a participação dos lucros financeiros em seus balanços, enquanto o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), responsável pela concessão de empréstimos subsidiados para o setor empresarial, sofreu um rebaixamento a partir de 2014. Embora os ativos financeiros tenham testemunhado um aumento extraordinário de valor, a taxa de investimento continuou a cair acentuadamente (caindo para 14% do PIB em 2021) e a quantidade de ativos produtivos estagnou. Mas com a Selic em alta novamente, fixada por um Banco Central independente, ninguém tem dúvidas de que a dívida pública pode recuperar seu protagonismo como propulsor da financeirização brasileira, desta vez em consonância com a recuperação das bolsas de valores.

A financeirização acelerou na esteira da recessão de 2015-2016. O governo Temer (2016-2018), que sucedeu Dilma Rousseff, aprovou reformas trabalhistas que extinguiram uma série de direitos trabalhistas. Eles enfatizaram a primazia dos acordos negociados sobre as regulamentações trabalhistas, aboliram a paridade salarial, permitiram maior terceirização e aprovaram jornadas de trabalho ininterruptas de 12 horas. Isso fez com que o setor informal crescesse, juntamente com a pobreza extrema. As transferências de renda do Bolsa Família foram desconectadas da crescente demanda para cumprir o novo teto constitucional de gastos federais. Com o objetivo de desmantelar a capacidade do Estado, Temer também empreendeu grandes reformas administrativas para reduzir o número de carreiras disponíveis no setor público de 300 para cerca de 30, e pressionou cortes salariais de até 25%.

No entanto, se a expropriação de cima para baixo depende de uma mistura de coerção e consentimento, o governo Temer não conseguia mais obter o último. Embora tenha preservado o amplo acesso ao crédito, o apoio popular foi erodido pelo aprofundamento da crise econômica, altas taxas de desemprego e, sobretudo, denúncias de corrupção. Suas reformas foram recebidas com grandes protestos e uma greve geral. Quando seus índices de aprovação caíram para 3%, Temer perdeu o capital político necessário para conduzir a transição para o governo neoliberal autocrático. Foi esse revés que Bolsonaro procurou corrigir, transformando o conservadorismo radical (anticomunismo, sexismo e racismo) na expressão dominante de descontentamento. Ao fazê-lo, ele isentou o capital financeiro da culpa pela deterioração das condições e apontou uma série de falsos culpados: esquerdistas, feministas, migrantes, indígenas.

Durante seu primeiro ano no cargo, Bolsonaro aprovou uma polêmica reforma da Previdência que elevou a idade de aposentadoria para as mulheres e o número de anos de contribuição. À medida que o valor médio dos benefícios previdenciários do regime de repartição diminuiu e o subsídio de sobrevivência foi reduzido a quase metade, o futuro do sistema público de pensões tornou-se cada vez mais incerto, provocando a sua deslegitimação e aumentando a atratividade dos fundos de capitalização-regime de pensões capitalizado. Bolsonaro também estripou os gastos públicos em várias áreas – saúde, ciência, previdência social, meio ambiente. Recentemente, ele aprovou uma nova lei que moderniza o arcabouço jurídico do mercado de câmbio e de capitais internacionais. Antiga demanda do setor financeiro, essa polêmica lei deve, entre outras coisas, facilitar a dolarização e a internacionalização das carteiras da elite brasileira, que atualmente estão alocadas em ativos denominados em moeda nacional.

Quando a Covid-19 chegou ao Brasil, no entanto, a presidência de Bolsonaro entrou em uma espiral descendente. Além de lidar mal com a crise de saúde pública, sua adoção de um Orçamento de Guerra marcou uma reviravolta em seu programa para desmantelar a esfera pública. Um Programa de Ajuda Emergencial aumentou a rede de segurança social e forneceu cobertura adequada a 67 milhões de beneficiários, enquanto transferências de dinheiro e regimes de licença mantiveram as famílias de baixa renda à tona, apesar do contínuo subfinanciamento do setor de saúde.

Ao mesmo tempo em que essas políticas reduziram a inadimplência e os atrasos das famílias endividadas com as grandes finanças, elas também impulsionaram um novo ciclo de endividamento das famílias. As famílias reduziram os saldos inadimplentes ao mesmo tempo em que aumentaram sua carga total de crédito, juntamente com os prazos médios de pagamento das carteiras de crédito. Isso aprofundou sua dependência dos mercados financeiros: novos empréstimos foram feitos, para serem pagos em prazos mais longos. O ciclo de acumulação financeira se ampliou, tanto pela redução da inadimplência quanto pelo aumento da oferta de crédito. Mas, fundamentalmente, essa nova sequência de reestruturação da dívida – suspensão, renegociação e expansão – não ocorreu dentro de um arcabouço institucional sólido, estabelecido pelo Estado brasileiro, para regular os níveis e mecanismos de expropriação financeira. O processo foi bastante liderado pelos bancos, que conseguiram manter as taxas de juros estratosféricas de contratos anteriores, apesar da queda da prime rate (2% em dezembro de 2020).

O surto de Covid teve, portanto, implicações complexas para o cenário político brasileiro. Em certo sentido, desacreditou o bolsonarismo ao colocar em primeiro plano os valores que buscava relegar – ciência, gestão estatal, provisão social – e minar os preceitos de seu conservadorismo radical. As pesquisas de opinião agora preveem a derrota de Bolsonaro nas eleições de outubro deste ano. No entanto, ao mesmo tempo, os problemas econômicos que a Covid consolidou provavelmente desestabilizarão uma nova administração do PT. Por mais autonomia que seja concedida ao capital financeiro, ele não poderá gerar uma recuperação econômica sem um aparato estatal forte – que deve ser reconstruído após anos de erosão gradual.

O PT reconhecerá que suas políticas anteriores produziram um modelo insustentável enraizado na expropriação financeira e tomará um rumo alternativo? Ou ele se mostrará relutante em desafiar a configuração econômica existente? O primeiro poderia ser feito resgatando políticas que foram descartadas pelos governos petistas anteriores: promover a desconcentração do sistema bancário; rompendo com a autonomia do Banco Central; ampliar a oferta de serviços públicos, em quantidade e qualidade necessárias para afastar a esfera da reprodução social do domínio do setor financeiro; aprovar uma reforma tributária progressiva capaz de enfrentar efetivamente a desigualdade no Brasil, a começar pelo imposto sobre dividendos e rendimentos financeiros.

Nos últimos anos, as consequências danosas da financeirização têm sido destacadas pelos movimentos sociais brasileiros. Em setembro passado, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto ocupou a Bolsa de Valores de São Paulo, protestando contra a concentração de riqueza em meio ao aumento da fome e da pobreza. Serão ouvidos? Isso ainda está para ser visto. No entanto, as posições da Fundação Perseu Abramo, think tank do Partido dos Trabalhadores, indicam que o crédito ainda terá um grande papel em seu projeto para a sociedade. O PT pode mais uma vez tentar combinar programas de combate à pobreza, de um lado, com mais crédito do outro, para compensar salários e políticas sociais insuficientes. Como tal, o Partido dos Trabalhadores sugere que os valores progressistas trazidos à tona pela pandemia não estão em contradição com a contínua expansão dos mercados, produtos e lógicas financeiras. Se a expropriação financeira continuar sendo o motor para o desenvolvimento dessa economia capitalista periférica, seus níveis de desigualdade já intoleráveis ​​podem piorar.

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