30 de janeiro de 2022

O romance palestino após a era da revolta em massa

A história do romance palestino não pode ser separada do contexto político mais amplo da luta pela libertação. À medida que o horizonte emancipatório na Palestina diminuiu desde o início dos anos 1980, a literatura compartilhou o sentimento de derrota.

Bashir Abu Manneh


No contexto global da “guerra ao terror” em curso, os palestinos não são mais vistos como um povo descolonizador com direitos nacionais, mas como um grupo de terroristas e bombas-relógio. (Makbula Nassar / Wikimedia Commons)

Desde o nakba de 1948, o romance palestino tem estado na vanguarda da articulação da experiência de desapropriação nacional, bem como horizontes emancipatórios no mundo árabe. Ele mapeou as relações mutáveis entre forma literária e ação coletiva, entre estética e política.

Foi em 1948 que os palestinos perderam sua pátria e se tornaram refugiados espalhados em países árabes e além. A nakba marca, assim, um processo histórico de desapropriação e derrota no qual um movimento colonial de colonos expulsou um povo, expropriou suas terras e as substituiu por mão de obra colonizadora. Os palestinos levaram mais de uma década para reorganizar e rearticular seus movimentos políticos: primeiro sob o nacionalismo árabe (muitas vezes negligenciado como período de estudo) e logo, depois de 1967, dentro de um novo nacionalismo palestino.

O período de 1967 a 1982 constitui a ascensão e queda do nacionalismo palestino pós-48, tanto da possibilidade revolucionária popular em todo o mundo árabe quanto da luta secular de guerrilha armada. Após a derrota de Beirute para Israel em 1982, um declínio político generalizado se instalou. Isso foi rompido pela primeira intifada em 1987 - o último ato significativo de mobilização popular em massa - que por sua vez foi liquidada por Israel e explorada pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Oslo.

Desde 1993, não houve nenhuma revolta organizada em massa para se mencionar (embora pequenos bolsões importantes permaneçam). O que quer que exista foi distorcido por movimentos religiosos como o Hamas, que estão impregnados de categorias nacionalistas islâmicas (como a jihad) que restringem a potencialidade universal da história palestina.

O que define a longa conjuntura desde 1993 é o fracasso do projeto nacional, a ascensão da Autoridade Palestina colaboracionista (comandantes da ocupação israelense na Cisjordânia) e sua oposição por um movimento fundamentalista popular. Esse período também é marcado pela guerra contra os ocupados, pelo politicídio do povo palestino e pela expansão sem fim do projeto colonial de colonos nos territórios palestinos ocupados de 1967.

No contexto global da “guerra ao terror” em curso, os palestinos não são mais vistos como um povo descolonizador com direitos nacionais, mas como um grupo de terroristas e bombas-relógio – como representado pela série israelense da Netflix, Fauda. Alternativamente, eles são percebidos como um grupo de vítimas individuais a serem lamentadas, mas muito raramente como um povo cujos direitos foram violados por Israel ao longo de gerações. Essa história está ligada ao romance palestino de forma crucial.

Uma análise materialista do romance palestino pode nos ajudar a elucidar essa dinâmica de colonialismo, resistência e literatura. Tal análise ajuda a articular a relação entre as formas sociais, políticas e estéticas. Como a mobilização política pode constituir, restringir e moldar a cultura? Como a literatura incorpora a possibilidade histórica? O que explica as mudanças que ocorrem na forma romanesca?

Promessa universalista

Returning to Haifa, de Ghassan Kanafani, foi publicado em 1969 no auge da revolta, resistência e possibilidade revolucionária dos palestinos e árabes. A novela encena um confronto entre refugiados que voltam para sua casa em Haifa após a ocupação israelense da Cisjordânia e Gaza em 1967 e seu novo habitante - um sobrevivente do Holocausto que criou a criança palestina acidentalmente deixada para trás nas expulsões angustiantes da nakba.

Returning to Haifa encena um encontro humano entre israelenses e palestinos; narra de forma complexa os vários ferimentos que levaram ao entrelaçamento das histórias após 1948. A seguir, a troca mais significativa no romance entre o pai refugiado protagonista e seu filho agora israelense, deixado para trás em 48. O pai afirma:

Quando você vai parar de considerar que a fraqueza e os erros dos outros são endossados ​​por conta de suas próprias prerrogativas? ... Você deve entender as coisas como elas devem ser entendidas. Eu sei que um dia você vai perceber essas coisas, e que você vai perceber que o maior crime que qualquer ser humano pode cometer, seja ele quem for, é acreditar por um momento que a fraqueza e os erros dos outros lhe dão a direito de existir às suas custas e justificar seus próprios erros e crimes.

Tematicamente, muito depende desse “um dia você vai perceber”. Que forma de política poderia levar a tal percepção? Que estratégia? Kanafani não dá a resposta, mas enfatiza a pergunta: “O homem, em última análise, é uma causa. Foi o que você disse. E é verdade. Mas que causa? Essa é a questão." O certo é que a pátria é um futuro baseado em princípios de igualdade universal. Esse é o registro humanista de todo o romance e do futuro que ele antecipa.

A perseguição judaica e a expropriação palestina só podem ser resolvidas nesse registro universalista: não por meio de nacionalismos estreitos e expropriação possessiva, mas por meio de categorias que todos os humanos podem compartilhar e compreender. Nenhum ser humano deve ser despejado à força de sua casa, e nenhum ser humano tem o direito de forçar outro a uma vida de exílio e carência. Se ao menos todos mantivessem esses padrões.

Returning to Haifa é realista na forma. Todos os componentes historicizantes e democratizantes do realismo clássico estão aqui, incluindo o compromisso ético de dar voz aos impotentes como parte da história. Atos individuais são significativos como partes da agência coletiva. Para Kanafani, o presente é cognoscível e transformável, e o futuro exigirá luta organizada e autotransformação.

O fim da agência

Para avaliar o significado de Returning to Haifa e o momento histórico distinto de sua publicação, basta compará-lo com The Other Rooms, de Jabra Ibrahim Jabra, publicado em Bagdá em 1986. Jabra é o romancista e figura cultural proeminente da Palestina. Com sete romances e dezenas de estudos críticos e traduções para o árabe em seu nome, ele representa a voz do pobre refugiado palestino transformado em intelectual árabe na era da descolonização.

Mas neste romance curto e tardio, nenhum dos elementos que Kanafani mobilizou aparece. A narrativa é difícil de entender, o protagonista está confuso, alienado e em estado de declínio existencial, incapaz de descobrir coisas básicas sobre si mesmo e seu entorno – nem seu nome, nem sua localização, nem seu trabalho. O movimento é interminável, mas sem nenhum senso de direção, e assim o romance escapa a qualquer senso de coerência. A única coisa certa é que o pesadelo nunca vai acabar. A resistência não é apenas fútil em The Other Rooms, mas totalmente ausente; não é sequer uma opção a ser contemplada e rejeitada. A espiral de fracasso e derrota nunca termina.

Nos romances anteriores de Jabra, as ações de um indivíduo recebiam um papel mais significativo na tentativa de mudar o mundo. Em The Other Rooms, em contraste, a agência foi esmagada por um estado repressivo e perdida no delírio. Há uma ligação clara entre o fim da agência revolucionária coletiva e a sensação de incoerência e desesperança que caracteriza The Other Rooms.

Becos-sem-saída?

O último ponto de comparação em relação ao romance palestino é Detalhe Menor de Adania Shibli, publicado em 2016. Shibli pertence a uma nova geração de escritores pós-Oslo, e suas duas novelas anteriores eram narrativas estilizadas difíceis de situar. Seu último romance é emocionante e fala poderosamente sobre o momento contemporâneo de fechamento político, apagamento palestino e guerra. Também registra a atração do passado e o retorno à nakba como prisma central do entendimento, contado por meio do incidente do estupro de uma menina beduína – o chamado “pequeno detalhe” do título.

Desde os Acordos de Oslo, a nakba voltou à consciência política palestina, marcando não apenas o abandono político dos refugiados, mas um retorno às questões mais existenciais da identidade palestina: expulsão e dispensabilidade. Detalhe Menor, no entanto, difere de relatos anteriores de perda e derrota.

Em certo sentido, o romance continua o relato da perda de conexão e da busca incessante de sentido que o modernismo palestino aperfeiçoou. Há um incidente a ser investigado, conhecimento a ser obtido e uma busca pela verdade e coerência.

Mas o registro documental de Shibli nos afasta do peso existencial. A investigação não revela nada que já não soubéssemos. O romance é, portanto, de estrutura circular, e o final retorna o narrador palestino a uma situação semelhante à da menina beduína de 48 – cercada por soldados e ameaçada. Não mudou muito. A história não é desenvolvimento, mas repetição com ligeira variação de pequenos detalhes. A mulher ocupada é assombrada por um passado que se torna seu presente. Ela também é apenas mais um pequeno detalhe da história.

Até certo ponto, as escolhas estéticas de Shibli são bem-sucedidas em mostrar como a colonização não é apenas um evento, mas um processo contínuo. Mas é uma estética que tem um custo, que é a perda de detalhes históricos. Não há distinção real em Detalhe Menor entre períodos históricos, e há quase uma equação de sofrimento entre um investigador de classe média da Cisjordânia atual e uma pobre menina beduína estuprada e morta por soldados israelenses em 1948. Essas distinções são cruciais e devem ser mantidas.

Em Detalhe Menor, a garota estuprada não recebe nem voz nem nome. Ela é retratada como fedorenta, balbuciando e babando, e sua história é contada por outros (ou o perpetrador israelense ou o palestino de classe média, ambos psicologicamente instáveis). É a reportagem do jornal sobre o incidente que motiva o cisjordânio a viajar para Israel. Precisamos mesmo de um romance para reproduzir os silêncios do jornalismo e da história?

São escolhas preocupantes que correm o risco de replicar o apagamento que o romance procura criticar. De fato, a inclusão da menina beduína na narrativa parece ser pouco mais que um artifício. Um romance realista a teria representado de forma diferente, e o presente como transformável. Um romance modernista teria registrado e lamentado a perda do horizonte emancipatório. Mas Detalhe Nenor é diferente.

As escolhas estéticas de Shibli são uma resposta particular à lógica da intensificação da guerra colonial e do apagamento – uma em que a desumanização na verdade significa a eliminação de humanos, ou pelo menos uma seção específica de humanos. No entanto, uma frase repetida no romance resiste a essa lógica: “O homem, não o tanque, prevalecerá”.

No entanto, lendo o romance de Shibli, a sensação é de que é o tanque e não o homem que prevalece; a frase tão repetida está em hebraico e silencia a vítima palestina. Ao contrário da frase de Kanafani – “o homem é uma causa” – a de Shibli é um dispositivo de zombaria em vez de compromisso humanista. O que significa para os vencedores coloniais falar do homem universal? É uma ironia vazia e obsoleta.

Como no modernismo palestino anterior, a resistência coletiva está ausente de Detalhe Menor. Mas há um novo registro aqui. A forma do romance não resiste, não luta contra a história que conta. Não se protege da dura realidade. O futuro é concebido como uma repetição de lesões passadas. Isso soa como um compromisso com uma estética particular, independentemente de suas implicações éticas.

No entanto, uma estratégia de reumanização sempre foi uma forte tendência na literatura palestina. É exemplificado por escritores contemporâneos de Gaza como Atef Abu-Seif e Nayrouz Qarmout, cujas perspectivas ecoam um sentimento sucintamente articulado pelo filósofo moral antiguerra Jonathan Glover: “O respeito pela dignidade é uma das grandes barreiras contra a atrocidade e a crueldade. Reconhecer nosso status moral compartilhado torna mais difícil torturar ou matar uns aos outros”.

Kanafani teria aprovado.

Sobre o autor

Bashir Abu-Manneh é diretor da Escola de Inglês da Universidade de Kent e editor colaborador da Jacobin.

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