21 de novembro de 2025

O problema das analogias com o fascismo

Nas décadas entre as duas guerras mundiais, muitos observadores da ascensão do fascismo não conseguiram entender o que havia de novo nessa ameaça. Apegar-se à palavra fascismo para definir as crescentes forças reacionárias de hoje corre o risco de cair na mesma armadilha.

Stefanie Prezioso

Jacobin

O fascismo se baseava na violência e no terror, mas também na doutrinação, para impor uma nova hierarquia. (Keystone-France / Gamma-Rapho via Getty Images)

Há mais de três décadas, o historiador britânico Tim Mason soou o alarme. Ele falou sobre um “desaparecimento de teorias ou conceitos articulados sobre o fascismo na pesquisa e na literatura acadêmica”. Examinando a relação entre o fascismo italiano e o nazismo alemão, Mason instou os estudiosos a identificarem as semelhanças “específicas” e os contrastes entre esses regimes, mantendo, ao mesmo tempo, um “estrito agnosticismo” quanto à singularidade radical de cada um deles. À primeira vista, tais debates podem parecer distantes do clima político atual, em que a discussão sobre o fascismo parece onipresente. No entanto, as questões levantadas por Mason ressoam fortemente também hoje.

À medida que a extrema-direita avança, da América Latina à Índia, dos Estados Unidos à Rússia e por toda a Europa, há uma necessidade urgente de analisar esse ressurgimento com rigor intelectual e profundidade histórica. Para além do choque inicial com a ascensão de tais forças, surge uma questão urgente: como reagir? Como alertar e mobilizar as forças sociais necessárias para contrariar a sua agenda? Compreender as raízes deste aparente “retorno do fascismo” está longe de ser simples. E será este o termo correto? O uso de “fascismo” para descrever as correntes políticas atuais continua a ser alvo de intenso debate. Para alguns, o rótulo é crucial, oferecendo uma estrutura para prever o que está por vir. Contudo, se a história certamente pode iluminar o presente, não pode predizer o futuro.

A crescente proliferação de variações da palavra “fascismo” continua a gerar debates. Fascismo tardio, fascismo preventivo, fascismo do fim dos tempos, fascismo fossilizado, fascismo trumpista — juntamente com “neo-”, “pós-”, “para-”, “semi-”, “micro-” e até mesmo “tecnofascismo” — não faltam rótulos para descrever um inimigo visto como avançando implacavelmente. Mas essa avalanche de terminologia mal disfarça a luta mais profunda para compreender uma realidade que, embora ecoe os capítulos mais sombrios do século XX, permanece, em muitos aspectos, radicalmente nova.

Como observou o historiador Eric Hobsbawm, “Quando as pessoas se deparam com aquilo para o qual nada em seu passado as preparou, elas tateiam em busca de palavras para nomear o desconhecido, mesmo quando não conseguem defini-lo nem compreendê-lo”. A analogia parece oferecer um caminho a seguir. Ela oferece um ponto de partida familiar para o desconhecido, ao mesmo tempo que fornece uma estrutura para a mobilização urgente da resistência.

Mas o debate vacila quando se trata de identificar esse inimigo. Lutar, sim — mas contra o quê? O imperativo de confrontar o perigo diretamente parece exigir o uso do termo “fascismo”. Contudo, tal palavra pode correr o risco de nos ancorar firmemente demais em interpretações do passado, dificultando uma análise rigorosa das realidades atuais e o desenvolvimento de respostas eficazes. Como observa o historiador Daniel Bessner, “As coisas podem ser assustadoras — as coisas são assustadoras — sem serem fascistas. Aliás, podem até ser mais assustadoras”.

O apelo de Mason por uma comparação sóbria, por uma análise atenta tanto às semelhanças quanto às diferenças, ainda oferece um caminho a seguir. Compreender a extrema-direita atual exige não nostalgia por categorias antigas nem analogias movidas pelo medo, mas o trabalho paciente da investigação crítica — sem a qual a resistência corre o risco de ser cega, fragmentada ou tardia. Nas décadas de 1920 e 1930, a grande maioria daqueles que definiam o fascismo não reconheceu sua novidade. Essa é a mesma armadilha que devemos evitar hoje.

O que é o fascismo?

A questão da persistência — ou ressurgimento — do fascismo surge em intervalos regulares na vida política, como tem sido particularmente evidente na Itália nos últimos trinta anos. Desde o retorno de Donald Trump ao poder, a questão tornou-se mais aguda nos Estados Unidos, à medida que ele expandiu suas prerrogativas e desafiou os fundamentos da Constituição. Livros que alertam para a (nova) ameaça fascista estão lotando as prateleiras. O papel central do fascismo na história do século XX — e em seu “território mental” — explica em parte sua contínua proeminência.

Igualmente importante é o esforço para situar o ressurgimento da extrema-direita contemporânea em um contexto histórico mais amplo. Os historiadores são frequentemente chamados, como “especialistas”, para dizer se um determinado líder mundial ou movimento pode ser rotulado como fascista. No entanto, eles rapidamente encontram dificuldades. Como escreveu o historiador Emilio Gentile, trata-se de um objeto misterioso. O termo “fascismo” permanece, possivelmente, o mais vago do léxico político. Com muita frequência, porém, esse alerta se torna uma desculpa para propor mais uma definição.

Desde seu surgimento após a Primeira Guerra Mundial, esse novo fenômeno — que combina sociedade de massas e autoritarismo — inspirou uma série de interpretações, cada uma enfatizando algum aspecto histórico, político, econômico, social ou mesmo moral supostamente fundamental. A maioria dessas definições contém alguma verdade, ainda que relegue a um segundo plano os elementos que não correspondem a uma determinada situação.

Se fosse para oferecer uma “fórmula concisa”, o fascismo poderia ser descrito como um movimento político de extrema direita que atingiu sua plena expressão na Itália e na Alemanha durante as décadas de 1920, 1930 e 1940. Era violentamente antimarxista, racista, antissemita, imperialista, construído sobre a destruição dos direitos e liberdades democráticas, a rejeição da igualdade, a estigmatização daqueles considerados fracos ou vulneráveis ​​e a subjugação das mulheres.

No início do século XX, o fascismo só pôde se espalhar quando o movimento operário deixou de representar uma ameaça iminente. Sua ascensão foi inseparável das crises políticas, sociais e econômicas que afligiram as sociedades europeias nas décadas de 1920 e 1930. Um movimento autônomo — “um partido organizado para seus próprios objetivos, visando tomar o poder para seus próprios fins” — o fascismo tinha um ímpeto subversivo inerente: revolucionário e restauracionista ao mesmo tempo, uma expressão moderna da rejeição à democracia e ao Iluminismo.

A extrema-direita atual é ultraliberalista em sua orientação econômica interna, enquanto busca expandir massivamente as funções repressivas do Estado.

Seu triunfo dependeu da ação combinada da violência paramilitar e da repressão estatal, e do desenvolvimento de um verdadeiro movimento de massas. Não conseguiu conquistar as mentes das pessoas sem essa fusão sem precedentes de elementos aparentemente díspares de conservadorismo e modernidade, apropriadamente descrita por Joseph Goebbels como “romantismo de aço”. O fascismo se baseava na violência e no terror, mas também na doutrinação, para impor uma nova hierarquia entre os seres humanos.

Existem claros elementos de continuidade histórica com a extrema-direita atual, assim como o próprio fascismo histórico apresentava ligações óbvias com a direita nacionalista reacionária do século XIX. Os movimentos radicais de direita contemporâneos são igualmente nacionalistas, racistas, imperialistas, homofóbicos, ultramachistas, autoritários e antimarxistas, rejeitando a luta de classes em nome de uma unidade nacional e popular. Esses movimentos buscam desmantelar direitos e liberdades fundamentais, bem como movimentos sociais que estejam fora de seu controle. Atacam os direitos das mulheres e designam bodes expiatórios — judeus, muçulmanos e outros. Qualquer pessoa que não se encaixe em sua visão de nação, sejam minorias ou oponentes políticos, é estigmatizada, criminalizada e usada para mobilização eleitoral.

Hoje, isso é particularmente evidente na perseguição a migrantes e muçulmanos, sustentada pela disseminação do medo da “grande substituição”. Essa rejeição do outro é acompanhada por um discurso excludente em torno da identidade, concebido para legitimar políticas autoritárias sob o pretexto de defender uma nação “ameaçada”. Nesse aspecto, as estratégias discursivas e eleitorais de figuras como Trump, Giorgia Meloni, Viktor Orbán e Javier Milei apresentam semelhanças notáveis ​​com as empregadas por Benito Mussolini e Adolf Hitler.

O fascismo histórico e os movimentos de extrema-direita contemporâneos emergem, em alguns aspectos, em contextos semelhantes: crises econômicas e sociais prolongadas; desafios às formas de representação, incluindo a legitimidade dos partidos políticos tradicionais; perda de referências sociais; e crises culturais e morais mais amplas, incluindo o questionamento da racionalidade científica. Contudo, em outros aspectos importantes, o contexto é marcadamente diferente e as crises sociais e políticas não são as mesmas.

O fascismo histórico surgiu no período pós-Primeira Guerra Mundial e da Revolução de Outubro, quando a União Soviética representava um horizonte de esperança para milhões de trabalhadores. Nada comparável existe hoje. O fascismo histórico defendia um sistema totalitário, que a filósofa Hannah Arendt descreveu como uma fusão sem precedentes de doutrinação e terror.

Em contraste, a extrema-direita atual é ultraliberalista em sua orientação econômica interna, enquanto busca expandir massivamente as funções repressivas do Estado. Figuras como Milei e Elon Musk brandem uma motosserra como símbolo do desmantelamento da “burocracia” — na realidade, a previdência social e os serviços públicos, por mais frágeis que sejam — radicalizando as políticas neoliberais das décadas anteriores, que retratavam o Estado como um obstáculo ao desenvolvimento econômico. Isso ecoa a declaração de Ronald Reagan em 1981 de que “o governo não é a solução, mas o problema”.

O fascismo histórico se baseava em movimentos de massa organizados em torno de uma ideologia coesa e estruturados por grupos paramilitares — como a SA na Alemanha ou os Camisas Negras na Itália — que contavam com centenas de milhares de membros uniformizados. Seu principal objetivo era desmantelar sindicatos, partidos políticos e associações de trabalhadores com milhões de membros que defendiam uma agenda socialista. Hoje, esse tipo de organização operária não existe na mesma escala, e os movimentos contemporâneos de extrema-direita não dependem mais de mobilizações de massa comparáveis. Embora existam grupos de extrema-direita ativos e, por vezes, violentos, seus números são insignificantes em comparação com o período entre guerras, e eles não estão centralizados como o braço armado de um único partido — pelo menos por enquanto.

O núcleo de alguns dos movimentos de extrema-direita atuais é composto por pessoas que se identificam abertamente com o nazismo e o fascismo históricos.

A influência desses movimentos é em grande parte eleitoral. É verdade que, em 6 de janeiro de 2021, o ataque ao Capitólio por apoiadores de Trump gerou temores de uma tentativa de golpe. O evento chegou a ser comparado ao fracassado Putsch da Cervejaria de Hitler, em 1923. Hoje, alguns alertam que o Serviço de Imigração e Alfândega (ICE) poderia servir como uma espécie de força armada organizada à disposição de Trump. Na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi conta com o apoio do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), uma organização paramilitar de rua com profundas raízes ideológicas. E na Itália, os ataques violentos perpetrados por membros do grupo neofascista Forza Nuova — incluindo o saque da sede da Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL) em outubro de 2021 — sugerem possibilidades preocupantes para futuras mobilizações.

Ainda assim, se falarmos de fascismo hoje, trata-se de um fascismo em grande parte desprovido de seu componente de movimento de massas, mas que, como observa Alberto Toscano, conserva a visão de renascimento nacional e a defesa de um interesse “produtivista”, alinhando trabalhadores e líderes empresariais lado a lado. No início do século XX, as referências ao fascismo apontavam para um novo fenômeno político cujos contornos, potencial transformador e adaptabilidade a outros contextos nacionais ainda estavam sendo definidos. Mas e agora?

Besta imunda

O que torna a situação ainda mais preocupante é que o núcleo de alguns desses movimentos é composto por pessoas que se identificam abertamente com o nazismo e o fascismo históricos — por meio de seus símbolos, gestos, vestimentas e retórica. As recentes manifestações neofascistas em Paris e Milão são apenas a ponta visível do iceberg. Há alguns anos, tais manifestações poderiam ter sido descartadas como marginais, uma forma vaga de postura nostálgica. Hoje, elas carregam um peso completamente diferente, cujo significado precisa ser plenamente compreendido. Sua importância reside menos no que revelam sobre os próprios organizadores do que no que dizem sobre a relação de nossas sociedades com o passado.

Trinta anos atrás, Umberto Eco observou: “Seria tão confortável para nós se alguém aparecesse no cenário mundial e dissesse: ‘Quero reabrir Auschwitz, quero que os Camisas Negras marchem novamente nas praças da Itália.’ Infelizmente, a vida não é tão simples.” Hoje, essas manifestações não se apresentam mais apenas como a face grotesca daquilo que a cientista política Nadia Urbinati certa vez chamou de “a máscara fascista da Europa”. Elas também refletem — e sobretudo refletem — três décadas de apagamento da história, banalização do horror e promoção de falsas equivalências: entre aqueles que lutaram por direitos democráticos, liberdades, igualdade e emancipação, muitas vezes alheios à realidade da Rússia stalinista, e aqueles que defendiam exatamente o oposto desses valores.

Já não existem testemunhas vivas desse passado; parafraseando Pier Paolo Pasolini, os vagalumes desapareceram. A fluidez das referências históricas transformou a história numa espécie de reservatório que “contém tudo e o seu oposto”. Como resultado, aqueles no Ocidente que acreditam que invocar o espectro do fascismo continua a ser a melhor ferramenta de mobilização deparam-se cada vez mais com a indiferença — ou, pior, com um público já condicionado pelo vocabulário e pelos modos de pensar da extrema-direita. Desde a saudação "Olá, ditador", proferida certa vez por Jean-Claude Juncker, então presidente da Comissão Europeia, a Orbán, até a normalização das raízes políticas de Giorgia Meloni, que ela própria não esconde, a inversão dos valores sobre os quais as sociedades ocidentais afirmavam se basear desde 1945 dificilmente poderia ser mais evidente.

Aqueles no Ocidente que acreditam que invocar o espectro do fascismo continua sendo a melhor ferramenta de mobilização se deparam cada vez mais com a indiferença.

Hoje, esse campo político trabalha para assegurar a hegemonia cultural por meio do revisionismo histórico, do anti-intelectualismo, da desinformação e da censura. Faz isso apoiando-se em uma vasta rede de comunicação — que abrange sites, mídias sociais, podcasts, canais de televisão, jornais e think tanks — enquanto trava o que tem sido chamado de “campanha algorítmica permanente”, uma nova e onipresente forma de poder que molda a vida cotidiana com ainda mais eficácia por se dirigir a uma sociedade profundamente atomizada.

O filósofo e historiador italiano Enzo Traverso argumenta que o conceito de fascismo é, ao mesmo tempo, indispensável e inadequado, enfatizando — seguindo Reinhart Koselleck — a tensão entre os fatos históricos e sua transcrição na linguagem. Desde a década de 1930, o fascismo tornou-se sinônimo de todas as formas de reação obscurantista, conservadorismo e autoritarismo, mesmo quando suas “características distintivas” estão ausentes.

Alguns estudiosos vão além, aplicando o termo para além do fascismo histórico. Nessa perspectiva, o fascismo representa “um conjunto mais geral de hábitos culturais, instintos e impulsos obscuros que se manifestaram — e poderiam se manifestar novamente — nos mais diversos contextos históricos e nacionais, mesmo na ausência de um movimento ou regime fascista”. Dessa perspectiva, o conceito de fascismo corre o risco de se tornar uma abstração, incapaz de capturar fenômenos concretos enraizados em seu próprio tempo, especialmente durante períodos de rápidas mudanças. O historiador Robert Paxton ecoou essa preocupação recentemente em uma entrevista ao New York Times, observando que o termo frequentemente “gera mais calor do que luz”, já que “a palavra fascismo foi reduzida a um epíteto, tornando-se uma ferramenta cada vez menos útil para analisar os movimentos políticos de nossa época”.

As condições econômicas muitas vezes mudam mais rapidamente do que a consciência humana, criando a persistência de formas morais e sociais cujos fundamentos materiais há muito desapareceram. Nesse contexto, debater se figuras como Trump, Milei, Orbán, Meloni, Vladimir Putin ou Marine Le Pen se qualificam como fascistas pouco contribui para esclarecer as condições políticas, econômicas e sociais que lhes permitiram prosperar.

O século XXI é definido pela impotência política de governos e parlamentos, incapazes de influenciar políticas supostamente ditadas “pelos mercados”, mas que, na realidade, servem aos interesses de uma camarilha de elites super-ricas nas principais economias do mundo. No Sul Global, essas políticas produzem conflitos intermináveis, destruição generalizada e pobreza endêmica. No Norte Global, impulsionam duras medidas de austeridade, desigualdade crescente e o desmantelamento acelerado do Estado de bem-estar social — ou o que resta dele —, criando terreno fértil para o autoritarismo, a erosão das conquistas democráticas e a normalização de um clima de violência.

O relatório mais recente da União das Liberdades Civis para a Europa (CLUE) classifica o governo de Meloni entre aqueles que “minam sistematicamente e intencionalmente o Estado de Direito”, visando o judiciário, as liberdades democráticas e os direitos fundamentais — incluindo a liberdade de imprensa e de mídia, o direito de protestar e o direito de greve — além de cometer o que descreve como “violações graves e sistemáticas dos direitos humanos”. O relatório destaca ainda a crescente concentração de poder nas mãos do executivo. Nos Estados Unidos, para citar apenas outro exemplo, os primeiros meses do segundo mandato de Trump deixaram poucas dúvidas sobre o contínuo estrangulamento da democracia: deportações em massa de imigrantes, demissões em larga escala no funcionalismo público, ataques à Lei dos Direitos de Voto, censura e cortes na pesquisa, militarização das cidades americanas e repressão à esquerda, com a designação do grupo “Antifa” como organização terrorista.

A atual onda de autoritarismo reacionário não surgiu do nada. Foi impulsionado pela radicalização das políticas e do discurso neoliberal na sequência da crise financeira de 2008: um aumento acentuado da desigualdade, o desmantelamento acelerado do que restava do Estado de bem-estar social e a relegacão de milhões de trabalhadores a empregos precários.

Debater se figuras como Trump, Milei, Orbán, Putin, Meloni ou Le Pen se qualificam como fascistas pouco contribui para esclarecer as condições políticas, econômicas e sociais que lhes permitiram prosperar.

A consequente insegurança, o medo, a frustração, a alienação e a incapacidade de planejar o futuro geraram o que Wendy Brown descreveu como “ressentimento de classe sem consciência de classe”. Essa desigualdade só se aprofundou nos últimos anos. De acordo com o último relatório "Takers, Not Makers" (Aproveitadores, Não Criadores), a riqueza dos bilionários cresceu três vezes mais rápido em 2024 do que em 2023, enquanto o 1% mais rico acumulou coletivamente mais de US$ 33,9 trilhões em ativos desde 2015. No outro extremo, 3,6 bilhões de pessoas — 44% da humanidade — vivem agora abaixo da linha da pobreza do Banco Mundial.

Esse abismo crescente acelerou o que o ensaísta Richard Seymour chama de "nacionalismo do desastre", uma política que prospera em meio a crises, enquanto leva as sociedades cada vez mais perto da catástrofe social e climática. A negação só agrava o perigo. "Os ataques furiosos de Trump a todas as estruturas criadas para proteger o público de doenças, alimentos perigosos e desastres", escrevem Naomi Klein e Astra Taylor, criam "uma infinidade de novas oportunidades de privatização e lucro para os oligarcas que estão alimentando essa rápida destruição do Estado de bem-estar social e de suas leis".

A necessidade de compreender essas convulsões políticas e econômicas globais motivou diversos estudos sobre as transformações em curso do capitalismo e seus impactos políticos, sociais e ecológicos. Dylan Riley e Robert Brenner falaram de um novo “capitalismo político”, caracterizado pela penetração das esferas de poder com dinâmicas autoritárias por grandes grupos privados, o que agora lhes permite obter lucros consideráveis ​​em um período de crescimento econômico lento.

A presença na posse de Trump dos chefes da Meta, Amazon e Google, que o economista Cédric Durand chama de “senhores tecnofeudas”, é apenas a ponta do iceberg. Se o autoritarismo também pode representar, em parte, uma expropriação política da burguesia, então precisamos também analisar as falhas, fraquezas e divisões dentro da burguesia, como evidenciado recentemente pela entrevista do bilionário dos fundos de hedge, Ray Dalio, ao Financial Times.

Diante do desastre iminente, um novo e importante campo de pesquisa se abre neste momento crucial que estamos vivenciando. Precisamos ir além da obsessão com o debate sobre o “fascismo” — esse oponente cuja mera menção parece garantir a moralidade e a legitimidade dos partidos e sistemas existentes — e analisar historicamente como chegamos a esta situação. Este é o desafio que temos pela frente. Temos muito trabalho pela frente.

Esta é uma tradução abreviada de um artigo publicado originalmente na AOC.

Colaborador

Stefanie Prezioso é professora associada da Universidade de Lausanne e autora de diversas obras sobre o antifascismo europeu.

Os holandeses enfrentaram a China. E não se deram bem.

A tomada de controle da fabricante chinesa de semicondutores Nexperia foi uma jogada ousada do governo holandês. Isso ocorreu sob pressão dos EUA, mas o governo recuou imediatamente assim que a administração Trump mudou de posição.

Ben Wray

O ministro da Economia holandês, Vincent Karremans, negociou com a Wingtech sobre como a Nexperia poderia se tornar independente de sua controladora para garantir a continuidade de suas operações e, ao mesmo tempo, atender aos requisitos da lista negra dos EUA. (Koen van Weel / ANP / AFP via Getty Images)

A tomada de controle de uma empresa de tecnologia de propriedade chinesa foi uma jogada ousada do governo holandês, tensionando as relações da União Europeia com Pequim. O Ministro da Economia, Vincent Karremans, chocou o mundo empresarial em setembro ao invocar poderes nunca antes utilizados para assumir o comando da empresa de semicondutores Nexperia, subsidiária da chinesa Wingtech.

Na época, seu ministério alertou para as ameaças à “segurança econômica holandesa e europeia” decorrentes das “deficiências” da Wingtech na gestão da Nexperia, cuja sede fica na cidade holandesa de Nijmegen. O governo queria “evitar uma situação em que os produtos fabricados pela Nexperia (produtos acabados e semiacabados) se tornassem indisponíveis em uma emergência”.

No entanto, em uma reviravolta surpreendente nesta quarta-feira, Karremans suspendeu a intervenção. O que mudou?

Nas sete semanas entre a intervenção e a mudança de posição, a Europa se deparou com a realidade de sua própria fragilidade econômica e geopolítica. A China respondeu com uma demonstração de força, revelando sua capacidade de cortar cadeias de suprimentos vitais para a indústria europeia.

A humilhação da Nexperia é um estudo de caso sobre a profunda dependência da Europa em relação a tecnologias críticas e a consequente perda de soberania política que essa dependência econômica acarreta. Mas também nos revela algo sobre a armadilha geopolítica em que o continente caiu. A verdade sobre a história da Nexperia é que os holandeses sequer teriam considerado o risco de enfrentar a China se a empresa não estivesse na mira do imperialismo americano.

Pressão americana

"Não fomos absolutamente pressionados ou coagidos pelos americanos a tomar qualquer medida nesse sentido", afirmou Karremans em uma entrevista recente sobre a crise da Nexperia, uma negação que contradiz tudo o que sabemos sobre o ocorrido.

O fato é que as autoridades americanas anunciaram em 30 de setembro que estavam reprimindo as subsidiárias que a China utilizava para contornar a proibição americana de venda de chips e equipamentos para fabricação de chips à China. Uma dessas subsidiárias na “lista de entidades”, uma lista negra de Washington para o comércio com os EUA, era a Nexperia. A empresa matriz, Wingtech, estava na lista desde dezembro de 2024.

A Nexperia está sediada na Holanda, não nos Estados Unidos, então, em teoria, os holandeses poderiam ignorar a lista de entidades. No entanto, a realidade das sanções secundárias dos EUA contra aqueles que negociam com países considerados inimigos é que as empresas europeias que não se alinham à política de Washington correm o risco de serem excluídas dos mercados americanos e do dólar, uma ameaça existencial para a maioria das grandes empresas.

Segundo Karremans, os Países Baixos tomaram conhecimento de que a Wingtech era alvo de Washington em 2023. Como qualquer ministro de um estado vassalo faria, Karremans começou então a negociar com a Wingtech sobre como a Nexperia poderia se tornar independente de sua empresa matriz para garantir a continuidade de suas operações e, ao mesmo tempo, atender aos requisitos da lista negra dos EUA.

Durante o andamento das negociações com a Wingtech, Karremans afirma que encontraram evidências de que a empresa estava transferindo propriedade intelectual e parte de sua capacidade produtiva para a China. Em 30 de setembro, no mesmo dia em que a lista negra de subsidiárias dos EUA foi divulgada, o governo holandês invocou a Lei de Disponibilidade de Bens (Disponibility of Goods Act), da época da Guerra Fria, para confiscar a Nexperia.

O governo holandês alegou que a coincidência entre o confisco e o anúncio da lista negra dos EUA foi “pura coincidência”. No entanto, um processo judicial relacionado à disputa da Nexperia deixa absolutamente claro que isso não é verdade. Os documentos judiciais descrevem uma reunião em 12 de junho entre autoridades holandesas e americanas, durante a qual o lado americano expressou sua insatisfação com o fato de “nenhuma medida externa visível ter sido tomada”.

O documento prossegue citando o funcionário americano, que afirma: “É compreensível que um desinvestimento leve tempo... mas o fato de o CEO da empresa ainda ser o mesmo proprietário chinês é problemático... É quase certo que o CEO terá que ser substituído para que a empresa se qualifique para a isenção da lista de entidades.”

Os documentos também destacam um e-mail de 5 de junho do governo holandês para a Nexperia, que afirma que, caso a Nexperia solicite uma isenção da proibição de exportação, “os EUA indicaram que considerarão especificamente medidas de mitigação para limitar a transferência de propriedade intelectual, tecnologia, conhecimento e capacidades americanas para o país em questão.”

Essa evidência nada mais é do que a confirmação do óbvio: a Holanda foi forçada pelos Estados Unidos a escolher entre o desinvestimento chinês na Nexperia ou a Nexperia ser tratada como lixo tóxico pelo governo americano e pelas grandes empresas americanas. Os holandeses, como sempre fazem, optaram por seguir a linha de Washington, mas, ao tentarem agradar ao Tio Sam, cutucaram a cauda do dragão chinês e provocaram uma reação negativa.

Escassez de semicondutores

Os semicondutores são os motores da economia digital. Quase todos os produtos são digitais hoje em dia, de geladeiras a relógios e assentos, o que significa que os chips estão presentes em praticamente tudo. A Europa responde por menos de 10% da produção global de chips e importa muito mais do que exporta.

Portanto, quando a Wingtech respondeu à tomada de controle da Nexperia pelo governo holandês, cortando o acesso da subsidiária às suas instalações de produção em Guangdong, na China — paralisando 70% da produção da Nexperia —, os problemas começaram a surgir para os fabricantes europeus. A situação se agravou quando o governo chinês proibiu a Wingtech de vender seus chips em qualquer lugar que não fosse a China.

As montadoras, em particular, entraram em pânico repentinamente. Os chips da Nexperia, fabricados em Manchester, Inglaterra, e Hamburgo, Alemanha, e enviados para Guangdong para montagem e reexportação, são amplamente utilizados na fabricação de automóveis na Europa. No final de outubro, as montadoras europeias estavam, segundo relatos, a "dias" de fechar linhas de produção devido à escassez de chips.

“Nosso apelo é para que a Nexperia China e a Nexperia UE se unam e retomem as operações normais, porque o que está acontecendo é inexplicável e devastador para centenas de setores”, disse um executivo da indústria automobilística ao Financial Times.

Quando a indústria automobilística alemã enfrenta problemas, políticos em Berlim e Bruxelas agem rapidamente. A Alemanha e a União Europeia pressionaram o governo holandês a negociar com a China e resolver a crise. Uma delegação holandesa viajou a Pequim para as negociações, mas logo ficou claro que a China buscava uma submissão completa, não um acordo de compromisso.

“A China espera que a Alemanha desempenhe um papel ativo, instando o governo holandês a tomar medidas práticas o mais rápido possível para corrigir suas práticas errôneas, revogar as medidas relevantes e promover uma resolução rápida do problema”, disse a ministra do Comércio da China em uma ligação com seu homólogo alemão.

No fim, a ameaça às montadoras europeias foi resolvida não por políticos europeus, mas por Donald Trump. Isso aconteceu depois que o presidente americano firmou um acordo com o presidente chinês Xi Jinping no início de novembro, que suspendeu as sanções contra empresas na lista de entidades. Em contrapartida, a Wingtech voltou a exportar seus chips para montadoras ocidentais.

Depois de pressionar os holandeses a entrarem em uma disputa comercial com a China sobre o Nexperia, que não tinham como vencer, os EUA simplesmente descartaram toda a lista de entidades quando lhes foi conveniente. Os Países Baixos, e de fato a Europa, foram usados ​​como peões nos jogos de poder de Trump com Pequim.

Impenitente

Com a ameaça de inclusão na lista negra dos Estados Unidos dissipada, o governo holandês estava livre para se reconciliar com a China, devolvendo o controle da Nexperia à Wingtech. Tudo o que o espetáculo da Nexperia conseguiu foi demonstrar o quão submissa a Europa é aos Estados Unidos e o quão dependente é da China.

Apesar da farsa, Karremans não demonstra arrependimento, insistindo que não faria nada diferente se tivesse outra chance.

“Se eu estivesse na mesma posição, com o conhecimento que tenho agora, teria feito a mesma coisa novamente”, disse ele ao The Guardian.

Essa teimosia é típica da classe política europeia, cuja arrogância é inversamente proporcional à sua perspicácia. Ninguém parece disposto sequer a levantar as questões difíceis que a crise da Nexperia expôs, muito menos a respondê-las.

A principal dessas questões é se a submissão da Europa aos Estados Unidos se tornou um grande problema no contexto da ascensão da China. Enquanto antes o resto do mundo teria que engolir os ditames de Washington, o acordo entre Trump e Xi Jinping — aceito pelo presidente americano somente depois que a China ameaçou cortar o fornecimento de matérias-primas essenciais para a economia dos Estados Unidos — demonstra que a China é capaz de reagir, alterando os cálculos para todos os países.

Presa entre o martelo do imperialismo americano e a bigorna da força industrial chinesa, a Europa está sendo pressionada econômica e politicamente. A reviravolta no caso Nexperia mostra que o "velho mundo" não só perdeu soberania para Washington, mas também para Pequim.

Acostumada a mandar na maior parte do mundo por séculos, a Europa declinou tanto e tão rapidamente que negar sua nova posição na ordem global se tornou a resposta padrão da classe política. Mas com o desastroso acordo comercial UE-EUA assinado em julho e agora com a humilhação do caso Nexperia, 2025 pode ser o ano em que a realidade comece a se impor.

Colaborador

Ben Wray é autor, juntamente com Neil Davidson e James Foley, de Scotland After Britain: The Two Souls of Scottish Independence (Verso Books, 2022).

Cumplicidades

Sobre o assassinato de Lumumba.

Anton Jäger



Quem matou Patrice Lumumba? Mais de seis décadas depois de o primeiro-ministro de um Estado congolês independente ter sido executado por um pelotão de fuzilamento noturno, seu fantasma continua a assombrar a política belga. Oficialmente, claro, uma resposta concisa já existe há muito tempo: Lumumba foi executado em janeiro de 1961 por um pelotão de soldados coloniais e policiais, sob o olhar atento do secessionista de Katanga, Moïse Tshombe, após o que um membro do esquadrão dissolveu seu corpo em um banho de ácido, revelando seus dentes a um jornalista da televisão belga décadas depois. A questão de quem forneceu ao pelotão suas instruções e armamentos, no entanto, não pode ser respondida com a mesma concisão.

Desde o início, em Kinshasa e Bruxelas, as suspeitas recaíram sobre figuras importantes: a família real belga; As camadas superiores da classe capitalista belga, particularmente a Union Minière du Haut-Katanga – uma subsidiária da infame Socièté Générale, emblema do capital financeiro europeu e predecessora da mineradora Umicore – estavam ansiosas para garantir suas propriedades na era pós-colonial; assim como os serviços de segurança americanos, preocupados com a estabilidade no cinturão mineral africano entre os núcleos da Guerra Fria, Angola e Rodésia, e com a infiltração comunista no novo governo congolês. A questão está longe de ser resolvida. Muitas vezes, porém, parece ter apenas interesse histórico – mais um caso arquivado do tumulto da era decolonial. Nas últimas décadas, os laços residuais mantidos entre a RDC e a Bélgica na era Mobutu foram rompidos, com ambos os países cada vez mais alienados um do outro, econômica e politicamente. O distanciamento é ainda maior devido ao pequeno tamanho da diáspora pós-colonial belga, dificilmente comparável à de outros ex-impérios, como a França ou o Reino Unido.

A possível acusação de Étienne Davignon – um ex-diplomata de 93 anos, magnata da indústria e genro de Paul-Henri Spaak, pai fundador da aliança atlântica europeia – forçou recentemente a reabertura do caso Lumumba. Agora existe uma chance significativa de que Davignon seja julgado por sua cumplicidade no assassinato. Durante a turbulência política que assolou o Congo após a independência, ele trabalhou como estagiário no Ministério das Relações Exteriores da Bélgica. O ministério é suspeito há muito tempo de ter auxiliado e instigado o assassinato. Davignon agora enfrenta uma série de acusações de crimes de guerra – que não prescrevem – incluindo “detenção e transferência ilegais de um civil ou prisioneiro de guerra”, ausência de “julgamento justo e imparcial” e “tratamento humilhante e degradante”. Os advogados que representam os descendentes de Lumumba negam veementemente que Davignon tenha sido apenas um personagem secundário. Na época, ele também atuava como enviado diplomático ao vizinho Burundi, onde supervisionou o processo de descolonização. Apesar de sua juventude, Davignon operava no ápice da elite estatal belga.

Por muito tempo, as evidências da cumplicidade do Estado belga foram em grande parte fragmentárias. Em 1999, no entanto – após a morte do sucessor autoritário de Lumumba, Mobutu, e a saída dos democratas-cristãos do governo belga, pilares do domínio colonial antes da independência – o historiador Ludo De Witte pôde demonstrar a profundidade do envolvimento de Bruxelas no assassinato em sua renomada obra "O Assassinato de Lumumba". Segundo ele, esse envolvimento ia desde o apoio aos movimentos independentistas regionais que levaram à prisão de Lumumba até o transporte do mesmo até o local do assassinato. Em resposta, foi instaurada uma investigação parlamentar para esclarecer o papel da Bélgica no caso.

A investigação rapidamente enfrentou uma onda de críticas – incluindo do próprio De Witte, que acusou os investigadores de não aprofundarem o suficiente o caso e de se inclinarem para a apologética colonial. Em 2011, descendentes do antigo líder congolês apresentaram sua própria denúncia contra dez supostos cúmplices belgas, incluindo Davignon, o único ainda vivo. Uma prova inesperada promete acelerar o processo: uma série de conversas com o político belga realizadas sob a supervisão da investigação. O acesso público à transcrição é uma esperança vã, mas jornalistas tiveram acesso após um vazamento anônimo. Um relatório recente investigou as meias-verdades apresentadas por Davignon nas conversas e reuniu relatos de outros diplomatas belgas envolvidos na crise. Entre eles, o ex-ministro Mark Eyskens – filho do então primeiro-ministro belga Gaston Eyskens, ele próprio um crítico declarado da Lumbispa – que afirmou que ainda há muito a ser investigado no caso, especialmente por parte dos americanos: "o papel dos americanos em toda a questão é subestimado".

De fato, na esfera anglo-saxônica, uma atenção significativa tem sido dada ao envolvimento de Washington. Veja, por exemplo, o livro de Stuart Reid, "The Lumumba Plot: The Secret History of the CIA and a Cold War" (2023). Reid, pesquisador sênior do Conselho de Relações Exteriores, investiga arquivos americanos recentemente abertos, apontando para o envolvimento precoce de agentes da CIA e do presidente Eisenhower no assassinato. Uma das revelações do livro é um relatório de reunião de 1960, no qual, durante uma plenária na Casa Branca sobre a crise, o presidente desenhou um "X" ao lado do nome de Lumumba. Reid também apresenta novos depoimentos de agentes americanos atuantes na África Central desde a década de 1940, em parte devido aos depósitos de urânio da região, cruciais para a corrida armamentista nuclear em rápida escalada.

Reid não consultou extensivamente testemunhas belgas e o país frequentemente aparece como de interesse secundário em seu livro. O resultado é que sua lente analítica é progressivamente deslocada da Bélgica para os Estados Unidos na sequência de eventos que levaram ao assassinato. Em suas aparições públicas, isso por vezes gerou especulações improváveis ​​por parte de Reid. Em sua visão, os EUA poderiam ter chegado a uma solução menos sangrenta se seus quadros imperiais tivessem sido menos cegados pela paranoia da Guerra Fria. Uma atmosfera semelhante à de Dr. Strangelove pairava sobre o aparato de segurança, o que acabou se mostrando contraproducente: segundo Reid, Lumumba permaneceu pró-americano até o último momento, quando ficou claro que os Estados Unidos se manteriam distantes do vácuo de poder congolês – após o que ele lançou uma tentativa desesperada de obter ajuda soviética, sempre improvável de ter sucesso com um establishment de política externa conservador em Moscou.

As lições que Reid extrai do caso têm um quê de previsibilidade. Os formuladores de políticas em Washington não devem descartar precipitadamente um amigo hesitante como inimigo. Com a China supostamente empenhada em se tornar o avatar do comunismo soviético no século XXI, as forças não alinhadas na África ou na Ásia não devem enfrentar acusações prematuras de traição. Reid chega a sugerir que os EUA, na verdade, não correram nenhum risco econômico significativo com a independência do Congo, e que um cinturão mineral com autonomia política poderia muito bem ser tolerável para os Estados Unidos. Como historiadores apontaram, embora a mina de Shinkolobwe, em Katanga, tenha fornecido o minério de urânio usado na fabricação das bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, ela foi fechada quando a independência foi conquistada. Os americanos exploraram outras fontes, pegando de surpresa as autoridades belgas no final da década de 1950, quando se considerava uma renegociação dos tratados comerciais anteriores. A hipótese de que a crise do Congo tenha encontrado pelo menos uma causa próxima na corrida por matérias-primas no pós-guerra – como Lumumba sugeriu ao New York Times um mês antes de sua morte – parece profundamente improvável para Reid.

O dossiê Lumumba foi alvo de duras críticas por parte de De Witte, que o considerou culpado por negligenciar as variáveis ​​belgas na crise. A visão míope da influência dos EUA não só é autoengrandecedora – como se os belgas fossem atores de terceira categoria no Congo na época – como também apoia indiretamente a posição daqueles na Bélgica que estão empenhados em encerrar o dossiê Lumumba de uma vez por todas. Afinal, os motivos da Bélgica na crise iam muito além do ressentimento pelo discurso de independência de Lumumba. A democratização do antigo exército colonial, proposta por Lumumba no final de 1960, já era considerada uma provocação imperdoável. Na sequência, diversas figuras da satrapia belga previram uma nacionalização dos recursos de Katanga, nos moldes da de Suez, como ocorrera em 1956. Somado ao receio de um cenário semelhante ao da Argélia – no qual colonos belgas locais criariam Comitês de Salvação Pública para salvaguardar seu status de superiores colonos e iniciar uma guerra civil – a rapidez da retirada belga de sua antiga colônia começa a fazer sentido. As provas do fluxo de fundos da Union Minière para os diversos sabotadores indígenas do processo de independência também estão disponíveis há muito tempo. Isso demonstra que matérias-primas além do urânio empobrecido (cobre e cobalto, sobretudo) pesavam muito na balança congolesa – fatos que recebem apenas uma menção superficial no debate transatlântico.

A amnésia característica da relação da Bélgica com sua antiga dependência persiste no atual debate midiático sobre o julgamento. Entre o apologético evasivo de Eyskens e o exclusivismo americano de Reid, um conjunto de questões importantes permanece sem resposta, longe de ser irrelevante para a conjuntura atual. Em 2025, um Congo assolado por conflitos continua sendo uma das fronteiras de commodities mais mortais do mundo, ainda mais no que diz respeito aos recursos extrativos necessários para a transição verde global; a Umicore é uma empresa de capital aberto com lucros astronômicos. Quase não é preciso argumentar sobre a importância do alinhamento da Europa no iminente confronto sino-americano – com todas as suas limitações ideológicas, extrativismo, partilha da África e políticas de aliança. Visto sob essa perspectiva, o caso Lumumba parece tudo, menos história antiga.

20 de novembro de 2025

Bunda de ferro

Dick Cheney (1941-2025).

Grey Anderson



Em janeiro de 2022, Richard Bruce Cheney fez uma aparição surpresa no plenário do Congresso. Seu retorno ao Capitólio marcou o aniversário da confusão que atrasou brevemente a certificação dos resultados eleitorais do ano anterior. Cheney, acostumado com as palavras duras de seus oponentes, se viu em uma fila improvisada de cumprimentos. "Nenhum republicano apareceu", relatou o New York Times.

Mas os democratas na Câmara, incluindo a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, estavam eufóricos. Após 13 anos de aposentadoria e de mudanças quase inimagináveis ​​na vida americana provocadas pela ascensão e queda do presidente Trump, Cheney e Liz Cheney foram recebidos por uma multidão de simpatizantes democratas, muitos dos quais já haviam chamado o ex-vice-presidente de criminoso de guerra. Os democratas apertaram a mão do Sr. Cheney, e alguns abraçaram a Sra. Cheney, que o apresentou aos seus antigos colegas, dizendo: “Este é meu pai. Este é o papai.” Foi um momento impressionante e um símbolo de quanta coisa havia mudado na era Trump.

Pelosi elogiou a presença dele, declarando que, quaisquer que fossem as desavenças do passado, eles nunca divergiram quanto ao compromisso de “honrar o juramento de posse de apoiar e defender a Constituição”; Steny Hoyer saudou Liz Cheney “por ter a coragem de defender a verdade”; Adam Schiff relembrou com nostalgia “uma época em que havia grandes diferenças políticas, mas não havia diferenças quando se tratava da devoção de ambos os partidos à ideia de democracia”. “É um evento histórico importante”, explicou Cheney quando questionado sobre o que o levou a Washington para comemorar a “insurreição” de 6 de janeiro: “Senti-me honrado e orgulhoso… em reconhecer este aniversário, em elogiar as ações heroicas das forças da lei naquele dia e em reafirmar nossa dedicação à Constituição”. Os elogios da mídia não impediram que sua filha conquistasse uma cadeira no Congresso e fosse desafiada nas primárias do MAGA, embora o circuito da Resistência oferecesse uma alternativa lucrativa. Quando apoiou Kamala Harris em setembro passado, Cheney disse sobre Trump: “Nunca houve um indivíduo que representasse uma ameaça maior à nossa república”.

Vinte e cinco anos atrás, Cheney demonstrava uma atitude diferente em relação aos ritos sagrados da transição democrática. Enquanto advogados contestavam a margem apertada de George W. Bush na Flórida, sua companheira de chapa assumiu o comando de uma operação de transição financiada com recursos privados, sediada em sua residência em McLean, preparando uma equipe presidencial antes mesmo da declaração oficial de um vencedor. A recontagem de votos estava paralisada em Miami-Dade e os tribunais deliberavam sobre as “cédulas perfuradas”; Apesar disso, Cheney prosseguiu, nomeando Ari Fleischer como porta-voz e analisando os indicados para o gabinete, enquanto a Administração de Serviços Gerais se recusava a liberar recursos federais. Ele declarou a certificação da Flórida como definitiva, descartou os desafios legais de Gore como um exercício de negação e alertou que qualquer hesitação na formação de um governo colocaria em risco a segurança nacional. Seguiram-se reuniões com líderes do Congresso em Austin, sinalizando que o governo em formação pretendia agir como se a questão estivesse resolvida. A pressa não foi improvisada. Na verdade, o vice-presidente eleito havia dedicado boa parte de sua longa carreira à reflexão sobre a transferência do poder.

Ele não nasceu para isso. Criado no Wyoming por pais defensores do New Deal, Cheney conseguiu entrar em Yale graças às conexões de sua futura esposa, Lynne, mas foi reprovado duas vezes. Um período de deriva e pequenos problemas relacionados ao álcool no Oeste terminou quando ela insistiu em um caminho mais disciplinado. Cinco adiamentos do serviço militar depois, aos trinta e poucos anos, ele trabalhava no Escritório de Oportunidades Econômicas como adjunto de Donald Rumsfeld, a quem seguiu para o governo Ford e eventualmente substituiu como chefe de gabinete do presidente. Sobrevivente do Watergate, ele aprendeu a lição do colapso de Nixon: "Don e eu sobrevivemos e prosperamos naquele ambiente porque não deixamos muita papelada por aí", observou. Na Casa Branca, ele provou ser um virtuoso da manobra burocrática. Ele e Rumsfeld afastaram Rockefeller da chapa de 1976, marginalizaram Kissinger e conspiraram para extinguir a détente. Discreto e implacável, Cheney raramente levava o crédito por seus feitos; Ele demonstrava apetite por detalhes e resistência para trabalhos pouco glamorosos, como garantir que o encanamento da Ala Oeste fosse consertado e que os saleiros fossem substituídos na mesa presidencial. Colegas se lembravam de um homem discreto, de meia-idade precoce, com traços marcantes como um sorriso malicioso e "olhos frios como os de uma serpente, como os de um jogador Cheyenne", como recordou outro assessor de Ford.

De meados da década de 1970 em diante, a maior preocupação de Cheney passou a ser o equilíbrio de poder dentro do Estado americano, que ele interpretava através de uma lente presidencialista abrangente. A reafirmação da autoridade do Congresso após a Guerra do Vietnã – a Lei de Poderes de Guerra, as restrições às atividades de inteligência, a supervisão intensificada – lhe pareceu uma usurpação ilegítima do domínio constitucional do Executivo. A eleição para a única vaga do Wyoming na Câmara dos Representantes, em 1978, ofereceu-lhe uma plataforma que se prestava a essas preocupações. Sob a administração Ford, ele colaborou com o escritório legislativo da CIA (um de seus funcionários era o jovem William Barr) para determinar quais documentos deveriam ser entregues à investigação do Senado conduzida por Church; nomeado para o Comitê de Inteligência da Câmara, ele cultivou um gosto por informações brutas e serviu como elo entre Langley e a liderança republicana. Operações subterrâneas combinavam com o temperamento inexpressivo de Cheney. Ele trouxe para sua equipe outro jovem advogado da CIA, David Addington, que permaneceria ao seu lado pelo resto de sua carreira. Juntos, eles trabalharam para neutralizar os esforços dos democratas para examinar as operações secretas. O relatório minoritário de Cheney sobre o escândalo Irã-Contras, de 1987, cristalizou essa posição, concluindo que a culpa não era da Casa Branca, mas de um legislativo que extrapolou seu mandato. O documento concluía que, se os poderes da presidência fossem interpretados de forma muito restritiva, “o Chefe do Executivo, ocasionalmente, sentir-se-ia obrigado a exercer noções monárquicas de prerrogativa que lhe permitiriam exceder a lei”.

Como secretário de Defesa durante o governo de George H. W. Bush, Cheney supervisionou as operações militares no Panamá e no Golfo Pérsico num momento em que a autoconfiança do Pentágono atingiu o seu auge. Ele pressionou consistentemente por opções mais enérgicas – propondo planos de contingência para o uso de armas nucleares em campo de batalha, caso o Iraque recorresse à guerra química e, sozinho entre os altos funcionários, apoiando o desejo de Israel de retaliar durante os ataques com mísseis de janeiro de 1991. O resultado da Operação Tempestade no Deserto confirmou uma visão que ele mantinha desde a década de 1970: a supremacia americana exigia prontidão para agir com decisão e dissuadir potenciais adversários, demonstrando uma capacidade esmagadora. Desse ponto de vista, a desintegração da União Soviética abriu caminho para um projeto mais ambicioso. Baseando-se no estudo de Zalmay Khalilzad sobre a Iugoslávia, Cheney considerou a fragmentação da própria Rússia como uma garantia essencial contra uma renovada ambição hegemônica. Essa linha de pensamento influenciou as Diretrizes de Planejamento de Defesa de 1992, elaboradas por Khalilzad no escritório de Paul Wolfowitz no Pentágono, que postulavam um mundo moldado por uma única potência, determinada a impedir a ascensão de concorrentes e preparada para atacar preventivamente. Quando um rascunho vazado, contundente em sua afirmação da supremacia americana e desconsideração pelas sensibilidades dos aliados, provocou reações negativas, Cheney elogiou o autor por ter "descoberto uma nova justificativa para o nosso papel no mundo" e publicou a versão final sob seu próprio nome. Apesar de ter sido expurgada para apaziguar as críticas, a estrutura original sobreviveu: a equipe de Clinton manteve suas premissas centrais, garantindo que, ao final da década, a suposição da indispensabilidade americana se tornasse rotina bipartidária.

O conservadorismo inabalável de Cheney, típico do Oeste americano, não excluía mudanças por conveniência ou por cálculo. Seu aprendizado com o congressista do Wisconsin, William Steiger, o expôs a um tipo de republicanismo que prezava o pragmatismo e a bipartidariedade, reflexos que ele levou para os anos Ford, quando, segundo ele próprio, moderou suas opiniões para preservar espaço para atuação. No Congresso, ele acumulou um histórico de votações à direita de Gingrich, mesmo que seus colegas o considerassem o mais conciliador dos dois, e se uniu a Bush e Powell na oposição a qualquer marcha sobre Bagdá em 1991 – o que levou Clinton a repreender o governo por não ter derrubado Saddam e por deixar “os pobres curdos e xiitas se debaterem”. A passagem de Cheney pela Halliburton na segunda metade da década de 1990 trouxe novos ajustes: ele criticou duramente a política americana de sanções excessivas em relação a Teerã e Trípoli, refletindo que "Deus não achou conveniente colocar recursos de petróleo e gás onde há governos democráticos", e se esquivou dos apelos por uma ofensiva americana no Iraque.

Apesar de sua colaboração duradoura com neoconservadores como Wolfowitz, Khalilzad e Lewis Libby – homens que ele considerava úteis e cujo compromisso com a supremacia americana incontestável ele compartilhava – Cheney jamais adotou o discurso missionário deles sobre exportar instituições liberais ou remodelar sociedades estrangeiras. Sua visão refletia um nacionalismo inflexível adaptado à escala do poder americano pós-Guerra Fria, reforçado por laços com o aparato de segurança de Israel e pela admiração por aqueles dentro dele que rejeitavam o compromisso e desconfiavam da diplomacia. Observadores como William Burns notaram que essa afinidade não exigia nenhuma simpatia especial pelo Estado judeu. Cheney, por natureza, favorecia aqueles dispostos a usar a força e era cético em relação à contenção multilateral. Ele emprestou seu nome ao Projeto para um Novo Século Americano e contou com sua equipe, mas, na visão de Scowcroft, permaneceu nem doutrinário nem movido por cruzadas morais, aproximando-se em espírito do "meta-realismo" de Dean Acheson. Victor Davis Hanson, com quem Cheney conversou na preparação para a segunda guerra do Iraque, o descreveu como

um realista à moda antiga que mudou por causa de sua experiência. Ele revisitou e reexaminou tudo o que fez e chegou a um novo realismo. Ele não está lidando com um mundo da maneira como ele sempre teve que ser. Ele está lidando com um mundo que pode ser mudado.

Após uma breve iniciativa exploratória em 1996, Cheney abandonou a ideia de se candidatar à presidência. Convidado pelo jovem Bush para avaliar candidatos a vice-presidente quatro anos depois, ele encontrou uma tarefa mais adequada aos seus talentos: o trabalho nos bastidores, que lhe permitiu compilar dossiês incriminatórios volumosos sobre potenciais indicados. As alegações de que Cheney arquitetou sua própria vaga na chapa não têm fundamento mais sólido do que a caricatura de um mestre de marionetes manipulando o infeliz "W"; segundo todos os relatos, a atração era mútua. Mas a vice-presidência ofereceu a Cheney um papel institucional sem precedentes. Nos domínios que mais lhe importavam – inteligência e segurança nacional – ele exercia uma influência que muitas vezes excedia a dos ministros. Operando por meio de nomeações de nível médio e uma rede de subordinados de confiança infiltrados em toda a burocracia, ele deixou sua marca nas primeiras decisões, abrangendo tudo, desde impostos e regulamentações ambientais até preparação para emergências, tudo sob um regime de opacidade que se tornou sua marca registrada. Ele dissimulava mesmo quando a verdade lhe seria útil. A transparência atraía escrutínio; o escrutínio impunha limites; os limites colocavam o cargo em risco. Relações públicas pouco importavam. "Ele não dava a mínima para a política", disse uma fonte interna.

Com os ataques de 11 de setembro de 2001, a predileção de Cheney por autoridade irrestrita e pelo exercício do poder coercitivo encontrou novas dimensões. Ao longo da década de 1980, ele se retirava da vista do público por vários dias seguidos, juntando-se a Rumsfeld e a alguns funcionários selecionados em ensaios clandestinos destinados a preservar um núcleo governamental após um ataque termonuclear. Os contornos gerais de tais planos existiam desde o início da Guerra Fria, mas o governo Reagan lhes deu novo fôlego, alinhando o planejamento de "continuidade do governo" (COG) a uma doutrina estratégica que previa uma guerra nuclear prolongada. Antigos bunkers foram reformados, redes de comunicação criptografadas foram expandidas e cadeias de comando alternativas foram mapeadas para contornar a ordem estatutária de sucessão. Esses exercícios partiam do pressuposto de que o legislativo poderia ser incapaz de se reunir novamente e que mesmo tentar fazê-lo poderia criar reivindicações rivais ao poder. Cheney prosperou nesse ambiente. Ele mergulhou no programa, que operava sob um escritório anônimo com um orçamento secreto, estimado em US$ 1 bilhão por ano em 1984. Seus planos de contingência mais controversos, elaborados por Oliver North e figuras herdadas dos anos de Reagan na Califórnia, previam a suspensão das liberdades civis, a instalação de administradores militares em nível estadual e local e detenções em massa autorizadas sem processo judicial. Os exercícios do COG continuaram sem interrupção durante as presidências de Bush pai e Clinton; após o atentado de Oklahoma City em 1995, o chefe do contraterrorismo, Richard Clarke, ampliou consideravelmente seu escopo.

Quando chegou a hora, os exercícios de catástrofe da Guerra Fria forneceram um modelo para a ação. Enquanto as TVs transmitiam imagens do colapso do World Trade Center, Cheney coordenou as medidas de emergência de um bunker sob a Ala Leste, enquanto o presidente permanecia a bordo e altos funcionários eram levados às pressas para refúgios nas montanhas. Ao receber relatos de novos sequestros, ele ordenou que aeronaves civis suspeitas fossem abatidas. Em menos de uma hora, ele começou a montar uma administração auxiliar para assumir as funções essenciais do Estado caso a capital caísse. Addington improvisou uma cadeia de comunicação com o centro de crise do Departamento de Justiça, convocando um círculo de advogados – Alberto Gonzalez e Timothy Flanigan na Casa Branca e John Yoo no Escritório de Assessoria Jurídica (OLC) – que forneceriam a estrutura jurídica para o que estava por vir. O programa de dispersão se estendeu muito além do Gabinete. Os líderes do Congresso foram instados a deixar Washington, D.C., e em grande parte excluídos da hierarquia de emergência. "Um dos maiores problemas é fazer com que as pessoas que deveriam ir para os locais alternativos tirem seus traseiros inúteis de lá", reclamou o General Wayne Downing, principal conselheiro antiterrorismo do presidente. "Poderíamos perder dois terços ou três quartos do Congresso, e não me tentem a dizer isso, mas isso poderia muito bem ser uma melhoria." O próprio Cheney passou um tempo em Camp David, perto do complexo cavernoso sob Raven Rock, entre outros "locais não divulgados", participando de reuniões por videoconferência segura.

Nos meses que se seguiram, o “governo paralelo” recuou à medida que o planejamento do COG (Centro de Operações Especiais) passou da fase de ensaio para a implementação de políticas concretas. O Congresso, agindo com rapidez, aprovou o Ato Patriota no final de outubro; dois senadores que inicialmente duvidaram da sua aprovação mudaram de posição após receberem correspondências contaminadas com antraz, inicialmente atribuídas a Bagdá, mas posteriormente rastreadas até Fort Detrick. O gabinete do vice-presidente estabeleceu a estrutura para detenção indefinida, ampla vigilância doméstica e os aparatos macabros de “interrogatório aprimorado” e “entrega extraordinária”. Criado em 2002, o Comando Norte (NORTHCOM) integrou as forças armadas à segurança interna, conectando recursos militares às forças de segurança federais, à polícia estadual e a empresas privadas por meio de centros de inteligência compartilhados. Ao mesmo tempo, Bush proclamou estado de emergência e emitiu duas ordens executivas que permanecem em vigor um quarto de século depois – renovadas anualmente por administrações sucessivas – a primeira permitindo a convocação de reservistas, a extensão do serviço militar e o destacamento flexível de unidades da Guarda Nacional, a segunda estabelecendo a estrutura do regime de sanções “antiterroristas” do Tesouro.

A obsessão de Cheney por informações de inteligência se intensificou nesse período. À medida que o caso do Iraque se consolidava, ele supervisionava um canal paralelo através do Escritório de Planos Especiais de Douglas Feith, que reciclava fragmentos de serviços estrangeiros simpáticos à causa, os repassava por meio de circuitos aliados e, pela repetição, transformava conjecturas em fatos confidenciais. Cheney então divulgava essas alegações publicamente com uma segurança inabalável: no programa Meet the Press, ele declarou em setembro de 2002, com "absoluta certeza", que Saddam estava adquirindo o equipamento necessário para enriquecer urânio para uma bomba. Ele havia derivado do colapso soviético a convicção de que estados hostis poderiam cair rapidamente assim que a pressão fosse aplicada, e isso contribuiu para sua preferência – expressa já em 1991 – por dispensar a aprovação da ONU e partir diretamente para o uso de armas. Netanyahu cunhou o termo "Coalizão dos Dispostos". O desastre resultante não extinguiu o entusiasmo pela mudança de regime. Com o fim da presidência de Bush, a atenção de Cheney se voltou para Teerã. Ele falava com frequência crescente sobre a possibilidade de ataques preventivos para eliminar instalações nucleares iranianas. Em seu círculo, a frustração com a relutância de Bush em intensificar o conflito gerou ideias mais elaboradas. Conselheiros esboçaram um cenário no qual um ataque israelense – de efeito limitado, mas simbolicamente potente – poderia provocar uma resposta iraniana contra alvos americanos na região e, assim, compelir Washington a agir. David Wurmser, que acabara de deixar a equipe de Cheney, delineou tal plano para um público privado em maio de 2007, argumentando que mesmo um ataque simbólico a Natanz poderia desencadear a reação em cadeia.

Mas a influência do vice-presidente começou a diminuir no segundo mandato de Bush. A demissão de Rumsfeld e a saída de Wolfowitz, Feith e Bolton o privaram de aliados importantes. Um golpe ainda maior foi a perda de sua dedicada chefe de gabinete, Libby, indiciada por perjúrio na investigação sobre a exposição da agente da CIA Valerie Plame, em represália ao questionamento, por seu marido, das alegações do governo sobre as armas de destruição em massa no Iraque. Essa transgressão contra os serviços de inteligência foi um passo longe demais. Bush comutou a pena, mas negou o indulto (posteriormente concedido por Trump), o que levou Cheney a repreendê-lo por "deixar um bom homem ferido no campo de batalha". Fora do cargo, a relação entre os dois, próxima, mas nunca íntima, pareceu esfriar. O pai de Bush opinou que, na década seguinte à sua presidência, Cheney se tornara "muito linha-dura", "simplesmente implacável", uma transformação que ele atribuiu em parte a Lynne, "a eminência parda aqui – implacável, durona". Cheney gostava do epíteto e o adotou. Sem se arrepender, ele considerou que a Guerra do Iraque "valeu a pena o esforço".

Apesar de toda a infâmia que recebeu nos últimos anos da presidência de Bush – da repulsa liberal à tortura e à vigilância à inquietação conservadora com a expansão do poder executivo – a arquitetura de poder de Cheney provou ser notavelmente duradoura. A ascensão de Obama não trouxe consequências. Tendo mudado de posição como senador em 2008, defendendo a legalização da vigilância sem mandado judicial e garantindo a imunidade das empresas de telecomunicações contra processos, o 44º presidente assumiu o cargo declarando que nem os interrogadores da CIA nem seus patrocinadores civis seriam submetidos a escrutínio legal e deixou Guantánamo intacto. Ele expandiu radicalmente o programa de assassinatos que herdou, reativou as comissões militares, reforçou o sigilo invocando preocupações de segurança nacional e criou uma nova categoria de detentos perpétuos cujos casos não poderiam ser julgados em tribunal. A retórica – “matriz de disposição”, “ação cinética”, “detentos de alto valor” – evoluiu por meio de substituições eufemísticas. Na conferência CPAC de 2011, onde Cheney entregou ao seu antigo chefe o prêmio "Defensor da Constituição" da União Conservadora Americana, Rumsfeld alfinetou:

Observo as inúmeras reversões, por parte da atual administração, das políticas anunciadas em matéria de segurança nacional — Guantánamo, comissões militares, detenção indefinida, ataques com drones da CIA. Isso me leva a questionar se Dick tem mais influência sobre o presidente Obama do que as pessoas que o elegeram.

Ao longo das duas presidências seguintes e na atual, o mesmo sistema seguiu um caminho único e ininterrupto. O primeiro mandato de Trump manteve em grande parte o aparato herdado: os assassinatos seletivos continuaram sob as mesmas autoridades; a "emergência" na fronteira mostrou como poderes orçamentários e de emergência nacional de longa data podiam ser facilmente subjugados à vontade do executivo; a utilidade de Guantánamo foi confirmada em vez de questionada; e as prerrogativas do governo na coleta de informações foram renovadas. Biden preservou o essencial. Sua administração se baseou no Artigo II e nas antigas Autorizações para o Uso da Força Militar (AUMFs) para usos repetidos da força, defendeu segredos de Estado perante a Suprema Corte, manteve Guantánamo disponível como instrumento executivo e estendeu novamente a principal autoridade de vigilância – uma linha ininterrupta desde o início dos anos 2000. O segundo mandato de Trump manteve-se dentro dessa mesma estrutura, ocasionalmente explicitando o que já estava latente: operações letais justificadas por justificativas já estabelecidas após o 11 de setembro, busca renovada por registros de jornalistas, uso mais incisivo da estrutura do Departamento de Segurança Interna (DHS) e do Serviço de Imigração e Alfândega (ICE) estabelecida duas décadas atrás, manipulação tática do privilégio executivo e esforços já conhecidos para remodelar a ordem orçamentária por meio de decretos presidenciais. O roteiro pode ser diferente, mas a estratégia é a mesma.

Cheney entendia a imagem que projetava: brincadeiras de Halloween com seu cachorro vestido de Darth Vader, discursos acompanhados pela Marcha Imperial, piadas lacônicas sobre ser um "gênio do mal... que ninguém nunca vê sair da toca". Dias após o 11 de setembro, ele deu o tom: "Também temos que trabalhar, digamos, no lado sombrio", disse a uma audiência na televisão, insistindo que a vitória exigia passar "tempo nas sombras". Dentro do governo, ele transmitia a mesma mensagem. Quando Robert Gates, pressionado pelo governo a se posicionar publicamente contra a Convenção de Oslo, perguntou indignado se a Casa Branca esperava que ele fosse “o garoto-propaganda das munições de fragmentação”, Cheney sorriu: “Sim, assim como fui com a tortura”. O ressentimento que ainda o caracterizava vinha com a tarefa. “Meu trabalho era fazer o que o presidente precisava que fosse feito”, insistia. Ele preferia opções drásticas, considerava alternativas assustadoras e via a coerção e o ocultamento como práticas comuns do governo. Absorvia a culpa que outros não queriam assumir. Jamais o excêntrico que seus críticos imaginavam, ele expressava uma atitude própria dos altos escalões da diplomacia americana, onde a necessidade se sobrepõe ao vocabulário mais conciliatório da moderação.

A cidade natal de Franco enfrenta um passado inglório

Cinquenta anos após a morte de Francisco Franco, a Espanha ainda lida com o legado da ditadura. Poucos lugares são tão emblemáticos da luta pela identidade espanhola quanto Ferrol, cidade natal de Franco.

Duncan Wheeler


Remover os vestígios de Francisco Franco de seu local de nascimento, Ferrol, poderia ajudar a dissipar preconceitos arraigados contra a cidade. (Roger Viollet / Getty Images)

Há cinquenta anos, o General Francisco Franco morreu em sua cama no Palácio El Pardo, nos arredores de Madri, após mais de um terço de século governando a Espanha com mão de ferro. Muito se falou sobre seu sepultamento perto de El Escorial — um símbolo do poder imperial na chamada Era de Ouro espanhola dos séculos XVI e XVII — no Vale dos Caídos, um mausoléu encomendado pelo ditador e construído com trabalho forçado de prisioneiros. Mas Ferrol, o local de nascimento de Franco, é menos icônico, apesar de sua influência em sua vida do berço ao túmulo.

O segundo de cinco filhos, Francisco Franco Bahamonde nasceu em 4 de dezembro de 1892. Crianças espanholas que mantinham os sobrenomes de ambos os pais deixavam claro que ele era fruto da união entre duas importantes famílias da marinha. Como observa o biógrafo Giles Tremlett: “Essas coisas importavam em Ferrol, que ficava no final de um fiorde de quatorze quilômetros, típico dos que pontuam o litoral atlântico da Galiza, no canto noroeste da Espanha, castigado pelas chuvas.”

Com uma população de 25.000 habitantes, a maioria dos moradores de Ferrol dependia da pesca, da construção naval ou da marinha para sobreviver. O pai de Francisco, Nicolás, serviu ativamente nas Filipinas. Em 1898, a Espanha abdicou dos últimos vestígios de seu império não africano com a perda de Cuba e das Filipinas para os Estados Unidos. A derrota, que provocou uma reflexão nacional sobre o que havia dado tão errado desde a Era de Ouro, foi muito visível em Ferrol: veteranos mutilados e feridos da Guerra Hispano-Americana desembarcaram, enquanto a economia e o emprego locais sofreram um duro golpe com o descomissionamento de navios.

Francisco era quase um adolescente quando deixou Ferrol para ingressar na academia militar em Toledo. Mas ele já era inequívoco em relação a duas convicções básicas: confiar em políticos inevitavelmente levava à traição e ao desastre, e ele estava destinado a seguir carreira militar para reverter o declínio da Espanha e ressuscitar a antiga glória imperial da nação. A obsessão pelo dever, pela rotina e pelo catolicismo foi reforçada pela infidelidade do pai, que levou o patriarca a abandonar a esposa e os filhos por uma suposta "mulher de má reputação" em Madri.

Após a vitória na Guerra Civil Espanhola, o General Franco investiu tempo e recursos na produção do filme semi-autobiográfico Raza (1942, dirigido por José Luis Sáenz de Heredia), no qual uma versão idealizada de sua própria infância e família é retratada como um microcosmo da Espanha. A inclusão de um irmão de esquerda que trai a pátria e seus parentes reflete as divisões dentro de sua própria família e em Ferrol (onde o fundador do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), Pablo Iglesias Posse, também nasceu algumas décadas antes, em 1850), bem como a representação tendenciosa da guerra civil como uma trágica luta fratricida. Na realidade, a causa da guerra foi muito mais simples: um golpe militar ilegal contra um governo democraticamente eleito.

Um político ambicioso e arrivista, o General Franco comandou seu regime fortemente centralista a partir de Madri. Vivendo em um antigo palácio real, El Pardo, ele, sua esposa, Carmen Polo, e sua filha, Carmencita, adotaram os adornos de uma família real arrivista. Mas ele nunca se esqueceu de Ferrol, que foi rebatizada de "El Ferrol del Caudillo" (A Ferrol do Chefe) em sua homenagem. Embora as procissões de Páscoa na cidade remontassem ao século XVII, a tradição foi promovida com veemência nos primeiros anos do franquismo, com Ferrol tornando-se o equivalente galego mais próximo de Sevilha e introduzindo, pela primeira vez, confrarias encapuzadas.

Ao longo de seus trinta e seis anos de ditadura, 22,5% dos ministros de Franco eram filhos de Madri — com um número maior oriundo de Ferrol do que de Barcelona, ​​apesar de a cidade ter apenas uma fração da população desta. Isso foi consequência tanto do chauvinismo geográfico quanto do militar. A casa da família de Franco — confortável, mas sem ostentação, localizada perto do centro, porém sem o estilo modernista marcante da cidade (mais característico da Catalunha do que da Galícia) — ostentava placas comemorativas. Um hotel parador estatal também foi inaugurado na cidade pelo próprio general em 1960.

Em uma das regiões mais pobres da Espanha, o mecenato do Caudilho, aliado a uma grande base militar e industrial, garantia que Ferrol estivesse frequentemente repleta de dinheiro. Os membros do cassino de Ferrol lançaram uma campanha popular de arrecadação de fundos para uma gigantesca escultura equestre de Franco, inaugurada na central Plaza de España em 1967, como forma de expressar sua gratidão pelos serviços prestados pelo ditador em favor da cidade e do país.

Como um centro militar, a população de Ferrol era reforçada por um número considerável de espanhóis do sexo masculino que ali serviam no exército. Mesmo os cidadãos espanhóis que nunca haviam pisado em solo galego familiarizavam-se com imagens de Ferrol através dos cinejornais produzidos pelo Estado.

Má reputação

Imediatamente após a morte de Franco, Ferrol tornou-se um campo de batalha e um local de peregrinação para a extrema-direita. Nesta cidade de contrastes, uma forte tradição de luta pelos direitos e dignidade dos trabalhadores também foi ressuscitada, com placas comemorativas do local de nascimento de Franco e sua estátua equestre frequentemente pichadas com grafites vermelhos. A combinação da perda de seu principal patrono e um rápido processo de desindustrialização à la Thatcher — paradoxalmente conduzido pelo governo do PSOE de Felipe González, enquanto a Espanha buscava se tornar menos protecionista em preparação para a adesão à União Europeia em 1986 — trouxe tempos difíceis para a cidade natal de Franco.

As referências a Ferrol como a “Detroit da Espanha” eram exageradas. No entanto, a cidade claramente carecia de um modelo econômico viável. Devido à percepção negativa da cidade e à notoriamente precária infraestrutura de transporte da Galícia — Ferrol não possui estação ferroviária em funcionamento e, por muito tempo, foi servida apenas por estradas secundárias —, suas praias e vistas deslumbrantes do Atlântico raramente atraíam turistas ou moradores locais para passeios de um dia.

Os bares e o comércio local sobreviveram em grande parte graças a generosos pacotes de aposentadoria antecipada oferecidos a alguns moradores, mas Ferrol estava longe de ser o importante porto que fora durante a ditadura. Em termos populacionais, Ferrol é a menor das sete cidades da Galiza e, de longe, a menos visitada. Muitos galegos nunca visitaram uma cidade que ainda luta contra a má reputação.

O fato de estrangeiros e a grande mídia ainda se referirem à cidade com o apelido franquista de "El Ferrol" era indicativo de sua fama como bastião da direita reacionária, embora a câmara municipal durante as décadas de 1980 e 1990 fosse frequentemente controlada por partidos de esquerda. Em 2002, cinco anos antes da aprovação da Lei Nacional da Memória Histórica (que proibia, entre outras coisas, a comemoração pública da ditadura), a estátua dedicada a Franco em Ferrol foi removida sob a supervisão de um prefeito nacionalista galego de esquerda.

A Espanha foi particularmente afetada pela crise financeira global de 2007, com o fechamento de diversos estabelecimentos comerciais em Ferrol e o aumento do número de imóveis desocupados. A poucos metros do porto e do local de nascimento de Franco, encontra-se o bairro operário de El Canido. O artista Eduardo Hermida, nascido e criado na região, tinha tanto orgulho de seu bairro que deu à sua filha o nome de Estrella, em homenagem a uma de suas ruas. Percebendo a crescente desilusão com a decadência local, ele lançou uma iniciativa em 2008, convidando artistas da região a pintar murais inspirados em Diego Velázquez.

O primeiro subsídio público veio da vereadora local Yolanda Díaz (uma política de esquerda que atualmente ocupa um dos cargos de vice-primeira-ministra da Espanha). O projeto cresceu a tal ponto que a cervejaria local, Estrella Galicia, passou a patrocinar um festival anual em setembro, que exibe a arte urbana local. Em 2017, um espaço foi reservado caso Banksy, o artista de rua mais importante do mundo, quisesse participar. Quando surgiu a imagem de dois membros da Guardia Civil (a força policial rural espanhola, originária do século XIX, mas para sempre associada ao regime de Franco) se beijando, cresceram as especulações de que Banksy teria aceitado o convite — até que o artista inglês negou oficialmente a autoria ou mesmo ter visitado Ferrol em sua página oficial na internet.

O valor dos imóveis em El Canido aumentou desde a chegada da iniciativa de arte urbana, com uma nova geração de artistas e jovens profissionais se instalando na região. O trabalho remoto e o surgimento de outras atividades culturais, como um festival de rock, contribuem tanto para isso quanto a arte urbana, mas Hermida sem dúvida devolveu o orgulho cívico à área e mudou alguns preconceitos sobre Ferrol no processo.

Franco nunca perdeu uma oportunidade de homenagear o Século de Ouro espanhol, mas não consigo imaginá-lo como fã do mural do artista madrilenho Sfhir, inspirado no retrato de Diego Velázquez (que está no Metropolitan Museum de Nova York desde 1971) de seu escravo e também pintor Juan de Pareja. O projeto de arte urbana em El Canido não é explicitamente político, mas o festival associado claramente atrai um público mais moderno e progressista do que as procissões de Páscoa de Ferrol.

Os participantes frequentam bares com uma atmosfera diferente daquela encontrada no labirinto de ruas mais abastadas ao redor do local de nascimento de Franco, cuja clientela, em sua maioria de meia-idade, ao contrário dos frequentadores mais velhos de El Pardo e arredores, tende a não elogiar abertamente o ditador (pelo menos para forasteiros como eu); mas também não veem necessidade de remover as placas comemorativas. Franco, para eles, representa uma parte importante da história local e nacional.

Ainda em depósito

Quando, como às vezes acontece, a casa do Caudilho é vandalizada, a Fundação Nacional Francisco Franco (que, surpreendentemente, considerando a Lei da Memória Histórica, continua operando e até possui uma loja online de presentes) assume a responsabilidade pela limpeza. A mera existência dessa fundação — que inclusive recebeu verbas públicas sob regimes democráticos para financiar suas atividades e esteve na vanguarda de contestações judiciais, em última instância malsucedidas, para impedir a exumação do corpo de Franco do Vale dos Caídos e sua transferência para o Palácio de El Pardo — é um anacronismo imoral, com seus dias contados.

Para qualquer historiador que esteja de passagem por Madri, recomendo, sem dúvida, uma visita à sede nacional da fundação enquanto ainda for possível. O arquivo da fundação — raramente consultado por historiadores espanhóis progressistas que, compreensivelmente, não desejam entrar por suas portas — é notável. Há correspondências relacionadas a tudo, desde a busca de Franco por um diretor de cinema digno de levar seu roteiro autobiográfico para as telas até relatos confidenciais sobre o general argentino Juan Domingo Perón obrigando alunas de uma escola local em Buenos Aires a se vestirem com as roupas de sua falecida esposa para seu prazer sexual.

A Espanha, e Ferrol em particular, felizmente são lugares completamente diferentes da época de Franco. Uma brutalidade provinciana forjada em sua cidade natal foi fundamental para que Franco se tornasse, posteriormente, um tirano de renome mundial. Em 2017, Díaz sugeriu que a estátua de Franco, de oito toneladas, em Ferrol, que ainda está guardada em um depósito, fosse derretida e transformada em uma homenagem às vítimas da ditadura. Tal decisão provavelmente faria sentido tanto ético quanto econômico.

Se o vazio dos restaurantes do hotel Parador, indicando a ausência de turistas fora da alta temporada, serve de indicador, talvez remover ainda mais os vestígios de Franco da cidade ajude a dissipar preconceitos arraigados contra ela. Ferrol continua sendo um lugar peculiar, mas mesmo após o fim de sua fama durante o regime, reflete muitas das contradições da Espanha democrática pós-Franco.

Colaborador

Duncan Wheeler é catedrático de Estudos Hispânicos na Universidade de Leeds. É autor de Following Franco: Spanish Politics and Culture in Transition (Manchester University Press, 2020).

Contra, contra

"Eu acredito apenas em mim mesma", de Catherine Breillat.

Alice Blackhurst

Sidecar


Há alguns anos, assisti a uma pré-estreia de L’Été dernier (2023), de Catherine Breillat, em Paris. Quase uma década havia se passado desde seu último longa-metragem, Abus de faiblesse (2013), a história autobiográfica de uma cineasta hemiplégica interpretada por Isabelle Huppert que sucumbe a um golpista. Por que tanto tempo?, perguntou o entrevistador, com delicadeza, em uma conversa posterior com Breillat e alguns membros do elenco e da equipe. Por que retornar com um remake de um filme dinamarquês recente sobre o caso extraconjugal de uma advogada de meia-idade com seu enteado adolescente? Frágil devido ao AVC que paralisou o lado esquerdo de seu corpo em 2004, e com uma auréola de cabelos loiro-platinados brilhantes, Breillat mostrou-se resoluta e enigmática em sua resposta. “Você precisa fazer as coisas porque elas são absolutamente necessárias. Não porque você é habilidosa nelas”, respondeu, olhando para a plateia com um olhar penetrante.

A abordagem intransigente de Breillat produziu uma obra marcante e controversa, tornando-a uma das cineastas mais notórias da França. Nascida em 1948, ela cresceu em uma pequena cidade do interior do oeste francês. A caçula de duas filhas de uma família de médicos, Breillat afirma ter decidido se tornar cineasta aos doze anos, depois de assistir a "Sawdust and Tinsel" (1953), de Bergman, no cineclube de sua escola. Na adolescência, mudou-se para Paris com sua irmã, Marie-Hélène. Inspirada pelo exemplo de escritores-cineastas como Alain Robbe-Grillet e Romain Gary, Breillat estava convencida de que publicar livros era um caminho seguro para se tornar diretora; comprar um bloco de notas, refletiu mais tarde, era mais "acessível" do que frequentar uma escola de cinema. Enquanto isso, Marie-Hélène queria ser atriz, estreando em Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, no qual Catherine também tem uma participação breve como costureira, quase ofuscada por manequins, com um semblante abatido.

O primeiro manuscrito de Breillat, Le Libanais, a história de uma tentativa de estupro da qual sobreviveu aos quatorze anos, permaneceu inédito, embora décadas depois tenha inspirado o enredo de 36 Fillette (1988), seu filme sobre uma adolescente que se envolve com um homem muito mais velho que conhece em uma boate durante as férias. Seu romance de estreia, L’Homme facile (1968), sobre um conquistador e seus inúmeros “amores passageiros”, foi proibido para leitores menores de dezoito anos – o que significa que a própria Breillat mal tinha idade suficiente para lê-lo. Foi a primeira de muitas experiências com escândalos e censura. Seu primeiro filme, Une vraie jeune fille (1976), foi encomendado na esperança de replicar o sucesso comercial do drama soft-porn Emmanuelle (1974). No entanto, as representações gráficas de Breillat sobre uma adolescente despertando para o caos de sua própria sexualidade – uma cena retrata sua fantasia de um homem a amarrando com arame farpado e colocando uma minhoca desmembrada em seus pelos pubianos – foram consideradas extremas demais para evitar a tributação sobre filmes pornográficos na França da época, e sua distribuição foi suspensa. O filme foi finalmente lançado nos cinemas franceses em 2000, vinte e quatro anos depois.

A obra de Breillat tem sido frequentemente caracterizada como pertencente à "Nova Extremidade Francesa", um termo pejorativo também aplicado a Virginie Despentes, Gaspar Noé e Bruno Dumont. A cisão entre mente e corpo, e como as melhores intenções da primeira podem ser frustradas pelos desejos e instintos do segundo, tem sido o tema inesgotável de seu trabalho – nas palavras de Serge Daney, a peculiar "humilhação de tentar adaptar o cérebro ao corpo". Ela é fascinada pelo que repetidamente retrata como o desejo feminino pela própria degradação, como, na dinâmica heterossexual que mais lhe interessa, repulsa e atração giram no mesmo eixo. A feminilidade, para Breillat – tanto sua sensualidade quanto sua vergonha – dá origem a uma "ferida fundamental" que não pode ser curada. Seu filme Anatomia do Inferno (2000) começa com a cena de uma mulher cortando o pulso no banheiro de uma boate depois de ter feito sexo oral em um frequentador. Outro homem entra e pergunta por que ela está se cortando. "Porque sou mulher", diz ela, enquanto o sangue escorre.

Pode-se dizer que os ancestrais literários de Breillat incluem Lautréamont e Sade – escritores que expuseram os excessos selvagens no âmago da psique humana e com quem ela compartilha a ênfase no imperativo da autonomia pessoal. Assim, o livro de entrevistas "I Believe Only in Myself" (Eu Acredito Só em Mim), publicado recentemente pela Semiotext(e), com tradução de Christine Pichini, tem um título bastante apropriado. Um livro anterior de entrevistas, "Corps amoureux" (Corpos Amouro) (2006), explorou a ascensão de Breillat, de sua educação burguesa comum, embora relativamente culta, à fama no cinema. Apresentado como um "diálogo extenso" com a crítica e jornalista Murielle Joudet, "I Believe Only in Myself" explora com mais detalhes a visão de mundo da diretora, na qual "a única paixão que existe para ser experimentada" é consigo mesma. Dominado pelos pseudo-solilóquios de Breillat, o livro me lembrou a tradição do livro falado, pioneira de Marguerite Duras com Les Parleuses (1973), uma espécie de entrevista com Xavière Gautier, e La vie matérielles (1987), do qual Duras excluiu as perguntas do roteirista Jérôme Beaujour.

“Sou inflexível. Não consigo deixar de ser eu mesma, mesmo que isso me destrua”, insiste Breillat em certo momento. Seu estilo obstinado certamente a levou a águas eticamente turbulentas, que por vezes ameaçaram submergir sua carreira. A ambição por uma espécie de perfeição estética – a maioria das cenas de seus filmes são intensamente coreografadas, compostas com uma atenção pictórica – resultou em uma abordagem intervencionista, por vezes áspera, com os atores. Em 2024, a atriz Caroline Ducey publicou um livro de memórias intitulado La Prédation, acusando Breillat de ter orquestrado uma cena de sexo oral "não simulada" para a qual Ducey não havia dado consentimento prévio, no set de seu filme Romance (1999), sobre uma professora que busca encontros inusitados com estranhos para escapar de um relacionamento sexualmente decepcionante. (Breillat nega ter "organizado" o incidente e que tal ato pudesse ter ocorrido sob sua supervisão). Entre os aspectos mais complexos do perturbador livro de memórias de Ducey está sua dificuldade em assimilar o abuso que alega ter sido autorizado não apenas por uma mulher, mas por um "ícone feminista" a quem Ducey admirava.

Breillat nunca se furtou a associar seu trabalho a questões feministas. Em I Only Believe in Myself, ela explica que essa identificação é "essencial" para ela, que se não tivesse sido feminista desde o início, teria "se odiado". No entanto, o termo pode ser difícil de conciliar com as cenas viscerais de autoaniquilação feminina de Breillat. E, assim como sua visão de cinema, seu feminismo é profundamente individual, desconfiado de coletivos e colaboração. Reforma social nunca foi seu interesse, ativismo político nunca foi seu estilo. "Eu me organizei comigo mesma", ela diz a Joudet, com um tom seco. Em À ma sœur! (2001), que acompanha as aventuras de verão de duas irmãs, uma magra e convencionalmente bonita, a outra acima do peso, ela destrói as noções de "irmandade", concentrando-se, em vez disso, nos núcleos insolúveis de rivalidade, ambivalência e competição que podem contaminar até mesmo os laços mais sagrados. O filme termina com um ato explosivo de violência – uma "onda de ódio", como ela mesma define aqui, inspirada por uma história policial sensacionalista de tabloide.

Joudet questiona Breillat sobre a produção de Romance. Insistindo em detalhes sobre os contratos dos atores e a coordenação de certas cenas, este é um dos poucos trechos em que a crítica se mantém firme. Embora o leitor termine com uma compreensão vaga do que aconteceu, as respostas de Breillat são desafiadoras. Ela se recusa a admitir que o filme foi um "experimento sem supervisão". Em vez disso, afirma que seu tema era precisamente as qualidades ficcionais e "míticas" que atribuímos ao sexo, ou, em suas palavras, a "fantasmagoria romântica" que mistifica atos corporais banais e mecânicos. Aqui, Breillat ecoa a famosa declaração de Lacan de que "não existe relação sexual" fora de nossas fantasias a respeito dela. Essa postura abstrata e cerebral – o que Breillat chama de fazer filmes "no éter" – contrasta com um interesse intensamente material na complexidade da interação entre corpos humanos, que nem sempre pode ser perfeitamente controlada – perfeitamente dirigida – e que às vezes se desvia do curso e causa danos.

Algumas das declarações de Breillat em "I Believe Only in Myself" são difíceis de engolir: "Não há diferença entre flertar e transar"; atuar é uma "espécie sagrada de prostituição"; "Como você espera que os homens fiquem excitados se não existe a lei do mais forte? Está nos genes deles." Outras são temperadas com um humor negro brilhante: coordenadores de intimidade são "capangas sem nenhuma qualificação real", seus inúmeros detratores são "babacas de má-fé". Comentários casuais como esses evocam a caracterização familiar de Breillat como uma "provocadora" e "enfant terrible". Embora reduzir sua obra a um desejo unilateral de chocar seja injusto, é justo dizer que a sensibilidade e a estética da diretora são instintivamente oposicionistas. "Eu me construí contra, contra, contra", ela insiste. Para Breillat, a maioria das pessoas evita o trabalho árduo da introspecção. No entanto, "I Believe Only in Myself" é um manifesto menos em defesa do egoísmo solipsista do que de um tipo de atenção extrema, por vezes dolorosa. Essa forma de disciplina é rara hoje em dia, tão rara quanto o anúncio de um novo filme de Catherine Breillat.

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