30 de março de 2025

A improvável resistência na Turquia

O principal partido de oposição da Turquia tem sido uma força centrista e não radical há muito tempo. Mas a prisão do prefeito de Istambul, Ekrem İmamoğlu, o forçou a uma postura mais ativista, pois enfrenta um crescente movimento de massa em defesa da democracia turca.

Cihan Tuğal


Manifestantes gritam slogans em apoio ao prefeito de Istambul, Ekrem İmamoğlu, preso, em 25 de março de 2025, em Istambul, Turquia. (Mehmet Kacmaz/Getty Images)

Algo inesperado está acontecendo na Turquia. Um partido centrista, que vem se deslocando cada vez mais para a direita nas últimas três décadas, está sendo forçado a agir como um partido de centro-esquerda. Seu líder, Özgür Özel, está subindo ao palco para fazer apelos ativistas por boicotes, usando o que parece ser uma linguagem esquerdista. Como um jornalista proeminente acabou de relatar, os principais líderes do partido estão surpresos com seu próprio comportamento. O que explica essa mudança e a raiva popular que a induziu?

O centrismo estéril do CHP "pré-março de 19"

O Partido Republicano do Povo (CHP), o partido anticomunista e nacionalista turco na fundação da república, foi empurrado para o centro-esquerda em meados da década de 1960 por um crescente corpo de movimentos sociais — estudantes, curdos e, cada vez mais, camponeses e trabalhadores. No auge do fervor revolucionário e de uma crescente contramobilização fascista, o partido pareceu se deslocar ainda mais para a esquerda no final da década de 1970. Mas em 1980, um golpe com uma reinterpretação de direita dos princípios do fundador da república, Mustafa Kemal Atatürk, dizimou a esquerda e iniciou uma mudança neoliberal.

O CHP foi banido sob a ordem militar-tecnocrática estabelecida em 1980. Seu desdobramento, o Partido Populista Social-Democrata (SHP), mudou de volta para o centro-esquerda, começando a se neoliberalizar sob a influência não apenas do golpe, mas também de seus equivalentes nos partidos social-democratas e socialistas da Europa. No entanto, ele ainda se uniu aos curdos até o início da década de 1990, fazendo campanha favoravelmente por sua causa, ganhando amplo apoio curdo e apresentando líderes do movimento curdo como parlamentares. No entanto, a intensificação da guerra no Curdistão levou a uma reação do establishment militar e burocrático, com a qual o partido não conseguiu lidar. De fato, esse estabelecimento permaneceu central para a estrutura organizacional e ideológica do CHP-SHP mesmo durante sua virada para a esquerda, da década de 1960 ao início da década de 1990. O SHP entrou em colapso e renasceu sob uma liderança reacionária. Reabrindo sob seu nome original, CHP, em 1992, o partido mudou ainda mais para a direita, perdendo definitivamente a maioria dos curdos.

Um debate público mais amplo testemunhou disputas intermináveis ​​entre os kemalistas em guerra e as facções mais conservadoras e nacionalistas do partido, que ainda culpam uns aos outros pelas perdas ou sucesso insuficiente contra o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) do presidente Recep Tayyip Erdoğan nos últimos anos. Entre elas, a facção atual, relativamente mais conservadora, do CHP em torno de Ekrem İmamoğlu parecia ter a moral mais alta, devido à sua eleição como prefeito de Istambul, abertura aos curdos e popularidade crescente entre os turcos. No entanto, essas três facções não eram tão diferentes em sua tendência principal: ficar longe das ruas e se ater a uma política estritamente institucional.

O CHP apostou muito na incompetência e no autoritarismo severo do AKP, esperando que o partido governante de Erdoğan destruísse o país tão gravemente que o povo não teria escolha a não ser votar no antigo establishment de volta. Essa estratégia negativa falhou repetidamente. Nos últimos anos, o partido adicionou a isso uma estratégia positiva e esbelta: eficácia municipal. O partido já detinha muitos municípios, mas estes eram mal governados. A vitória municipal de 2019 mudou o pensamento do CHP, e o partido intensificou seus programas de provisão municipal, ganhando ampla simpatia de todas as classes. No entanto, esse era o tipo de assistencialismo neoliberal em que o AKP costumava ser bom. A principal oposição não pretendia mudar o caminho macroeconômico desastroso que o país embarcou após o golpe de 1980. Como o AKP em sua suposta era de ouro (ou seja, sua primeira década relativamente mais centro-direita), o CHP buscava apenas mitigar a destruição.

A insistência do CHP na não ação parecia estar funcionando. Cansados ​​do fracasso da revolta de Gezi em remover Erdoğan, a maioria das pessoas já estava aberta à mensagem "Sente-se e espere pelas eleições". Mas isso foi míope. Erdoğan vinha preparando o terreno para um ataque a İmamoğlu há muito tempo. A prisão ocorreu em 19 de março. Mesmo assim, o CHP não cedeu. Foram os estudantes que foram às ruas e forçaram o partido a agir também.

Os alunos quebraram o feitiço

Por que os alunos estão tão bravos? A economia está em frangalhos e eles não têm um futuro seguro. A faculdade ofereceu a eles um descanso por alguns anos, pelo menos dando a eles algum tempo antes de chegarem a um mercado de trabalho hostil e também criando oportunidades de reflexão sobre como sobreviver em um país que empobrece rapidamente. As ações de Erdoğan nos últimos anos envenenaram essa experiência. O AKP tem um projeto de longo prazo de cultivar sua elite alternativa por meio do sistema universitário. Comparativamente falando, a direita turca ainda leva a educação e o intelectualismo muito mais a sério do que sua contraparte americana. Portanto, a estratégia preferida do partido no poder era uma substituição gradual de liberais e esquerdistas nos campi por meio da criação de uma nova geração de alunos com inclinação para o AKP. No entanto, ao longo dos anos, as oportunidades comerciais e políticas criadas pelo partido têm sido muito mais atraentes para seus quadros, que em sua maioria se afastaram do trabalho acadêmico sério e de outros trabalhos culturais. Em meados da década de 2010, o partido mudou para uma abordagem mais coercitiva.

Uma politização pró-curda dos acadêmicos também incitou essa reviravolta, mas os objetivos de Erdoğan eram maiores. Além de expurgar centenas de acadêmicos que assinaram uma petição de paz nas universidades, ele também iniciou uma transformação de cima para baixo, pela qual seus indicados (os infames kayyumlar) começariam a governar as universidades com punho de ferro e a dotá-las de pessoal acadêmico não qualificado. Incapaz de realizar seu sonho de "hegemonia cultural" nos campi, o partido substituiu o consentimento pela força, corroendo o próprio ensino superior nesse processo.

As frustrações com as faculdades governadas por indicados, juntamente com a crescente politização nos campi, levaram os alunos a ignorar a insistência do CHP no quietismo. Os alunos (principalmente da Universidade de Istambul) heroicamente atravessaram as barricadas policiais em 19 de março, o mesmo dia da prisão, e marcharam até o prédio do prefeito. Eles, assim, deram início a um dos ciclos de protesto mais massivos da história recente.

De 19 a 26 de março, quase um milhão de pessoas se reuniram todos os dias em cidades e vilas ao redor da Turquia, pequenas e grandes. O CHP primeiro declarou que as grandes reuniões acabariam, com a última na quarta-feira. Mas a pressão popular os empurrou a declarar mais uma no sábado. Apesar dessa hesitação, o comando superior ainda se esforça para manter os protestos contidos.

Os estudantes estão radicalizando os protestos e o partido, mas por enquanto estão sozinhos. Além de pequenos partidos de esquerda, nenhuma força organizada está se juntando a eles para pressionar o CHP a uma direção mais contenciosa. Há muitas razões compreensíveis para isso, e elas são diferentes para cada aliado em potencial.

A ausência mais notável é o movimento curdo organizado. Inúmeros indivíduos curdos se juntaram aos protestos. Mas o movimento organizado não está se manifestando. O palco pertence ao CHP, e mensagens bastante nacionalistas são comuns (como quando o líder da facção nacionalista do partido menosprezou as celebrações do Newroz e chamou as bandeiras curdas de "trapos"), mesmo que depois tenha se desculpado. Embora sejam uma pequena minoria, alguns milhares de jovens em algumas manifestações entoaram slogans racistas visando os curdos, o que teve um efeito assustador na participação curda. As negociações do governo com os líderes políticos civis curdos e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e seus afiliados armados na Síria são outro fator na ausência organizacional dos curdos. Parece que há uma chance realista de paz, e o movimento está evitando qualquer grande confronto com Erdoğan por enquanto. No entanto, o Partido da Igualdade e Democracia dos Povos (DEM) liderado pelos curdos acaba de anunciar sua decisão de participar da manifestação planejada para sábado. Se o partido realmente participar com força total, isso pode mudar o jogo.

Bairros e cidades alevitas, que foram os redutos da esquerda entre os pobres na história turca e curda, não estão se levantando como fizeram durante os protestos de Gezi em 2013. Esses bairros pobres e sitiados geralmente ficam nos arredores das cidades, assim como cidades e vilas alevitas ficam em regiões mais montanhosas. Séculos de perseguição mantiveram os alevitas longe dos centros urbanos durante os tempos otomanos, um padrão que as forças conservadoras durante os tempos republicanos reproduziram, mesmo que com menos severidade. O silêncio atual dos bairros alevitas também é mais do que compreensível: as forças policiais turcas, embora brutais às vezes, fizeram o possível para evitar mortes durante grande parte dos protestos em Taksim e arredores em 2013. Mas quando se tratava de cidades e bairros alevitas, eles desencadearam um ódio sectário (e também antissocialista) que acabou tirando várias vidas. Hoje, especialmente após os massacres sectários que mataram mais de mil na Síria governada por Hay'at Tahrir al-Sham (HTS) em meados de março, os alevitas têm vivido sob intensa ameaça. A mídia do governo turco empacotou os massacres como limpeza de rotina de apoiadores residuais do ex-ditador Bashar al-Assad, indo contra até mesmo a estrutura do líder do HTS, Abu Mohammed al-Jolani, que culpou combatentes fora de controle em vez de negar que civis foram mortos em massa. Como os pobres urbanos sunitas estão diretamente no canto de Erdoğan, a não participação dos alevitas organizados também significa relativa calma nas áreas pobres.

Embora muitos líderes trabalhistas militantes estejam convocando uma greve geral, esta ainda não é uma demanda em massa. Tanto as principais confederações centristas quanto as de esquerda evitarão transformar isso em resistência de classe, o que seria extremamente arriscado para elas. Os sindicatos na Turquia enfrentam as mesmas pressões neoliberais que outros em todo o mundo e perderam muito do ímpeto que tinham antes da década de 1990. Eles entregam pouco aos seus membros, muito menos atendem às amplas demandas populares como faziam antes, especialmente na década de 1970. Portanto, como em outros lugares, eles enfrentam a suspeita popular. Mas na Turquia há o fardo adicional de operar sob um governo autoritário, com forte concorrência da confederação sindical corporativista patrocinada por Erdoğan. Apesar desses fatores, a sindicalização viu um aumento no final da década de 2010, o que torna alguns líderes da confederação paradoxalmente mais cautelosos, pois não se veem capazes de transformar esse aumento em uma onda. Somente mais pressão de baixo para cima pode mudar sua posição.

As cartas de Erdoğan

Por que o governo não conseguiu prever essa resposta popular e o que ele pode fazer agora para salvar a situação?

O momento da repressão de Erdoğan foi horrível — e saiu pela culatra, por enquanto. Ele estava muito autoconfiante e paradoxalmente muito inseguro. Primeiro, porque ele tinha acabado de desfrutar de sua maior vitória imperialista na Síria; ideólogos do governo pareciam certos de que haviam mudado a história mundial.

A segunda razão para a autoconfiança inchada do governo era o processo de paz curdo: o campo de Erdoğan (de certa forma com precisão) calculou que se travasse uma guerra total contra a democracia turca, os curdos não viriam em seu socorro. Mas também houve complicações: rumores dentro do bloco governante começaram a desacelerar e talvez até mesmo a descarrilar o processo de negociação. Além disso, há sinais da Síria de que as negociações entre o HTS e as forças curdas podem não estar se movendo na direção que Erdoğan desejava. Em parte como resultado dessas complicações, embora não haja presença organizada do movimento curdo nas manifestações, muitos líderes curdos se opuseram vigorosamente às últimas repressões, surpreendendo Erdoğan.Terceiro, e mais importante, o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA é o principal fator "conjuntural" que impulsionou a autoconfiança dos erdoğanistas. Não por engano, os ideólogos do regime acreditam que o mundo mudou radicalmente após a eleição de Trump em 6 de novembro, para a vantagem de líderes como Erdoğan. No entanto, nem tudo saiu conforme o planejado. Os erdoğanistas estavam contando com Trump para dar algum passo decisivo logo após sua posse em 20 de janeiro que resolveria a questão curda em favor da Turquia. Mas esse movimento nunca aconteceu.

Simultaneamente com esses aumentos de confiança, Erdoğan estava enfrentando uma popularidade decrescente, especialmente devido à intensificação da crise do custo de vida. No auge de seu sucesso imperialista e no ponto mais baixo de seu desempenho econômico, Erdoğan sabia que estava entrando em uma disputa eleitoral arriscada. Então ele parece ter decidido acabar com tudo com um golpe, a fim de garantir que nenhuma eleição livre e justa pudesse acabar com seu reinado e, portanto, com seu projeto imperial.

Embora seu golpe pareça ter saído pela culatra por enquanto, Erdoğan ainda tem muitas cartas na manga: Trump, a União Europeia (que não quer outra crise de refugiados) e as comunidades empresariais globais e nacionais estão atualmente do seu lado, pelo menos por meio de seu silêncio. O ministro das finanças de Erdoğan pós-junho de 2023, Mehmet Şimşek, é quem empobreceu a população e colocou o bloco governante em uma situação difícil, mas suas políticas são a razão pela qual o capitalismo global e a associação empresarial turca geralmente anti-Erdoğan, TÜSİAD, estão em silêncio.

Perspectivas

A oposição, portanto, descobre que suas fontes habituais de grande apoio — a comunidade empresarial local, a UE, os Estados Unidos e os "mercados internacionais" — provavelmente não a defenderão efetivamente. Para sair dessa posição, ele precisará mudar para a esquerda e para uma abordagem mais confrontacional. No entanto, entrincheirado em seu centrismo pós-década de 1990, o CHP ainda está tentando conter a raiva popular fervente em vez de transformá-la em uma raiva disciplinada, proposital e da classe trabalhadora. Somente mais pressão popular pode quebrar sua obstinação. Há alguma perspectiva para tal mudança?

Hoje, a inteligência e a força da resistência estão nos campi, e mais visivelmente nas manifestações do CHP. Estudantes das principais universidades, como a Universidade Técnica de Istambul e a Universidade de Istambul, bem como uma série de universidades de todos os tamanhos e estaturas em todo o país, estão boicotando as aulas. A onda de boicote foi iniciada pela Universidade Técnica do Oriente Médio, que tem sido um centro de ativismo democrático, anti-imperialista e socialista desde a década de 1960. Esses são boicotes ativos: os estudantes não estão simplesmente matando aula, realizando manifestações e marchas e expressando suas demandas em relação à educação, mas estão se organizando de olho nos protestos nacionais e discutindo como politizá-los ainda mais. Mas seria fatal se a resistência permanecesse restrita a esses dois locais, pois isso reproduziria um dos principais eixos de organização de queixas do AKP: o AKP supostamente "local e nacional" versus o CHP "estranho" e "elitista".

As universidades turcas geralmente veem ondas de mobilização a cada poucos anos. No passado recente, protestos relacionados à educação, a imposição de nomeados e a má gestão do auxílio ao terremoto abalaram as universidades. Mas nada disso conseguiu quebrar o enquadramento da educação como "elitista" do regime do AKP. É muito cedo para dizer se a mobilização persistirá ou crescerá, ou se irá além dos campi e locais do CHP e fará um estrago no enquadramento do governo. Os protestos estudantis levaram a um movimento de resistência improvável, mas por si só não podem transformá-lo em um movimento da classe trabalhadora com uma agenda construtiva.

A resistência contra o golpe de Erdoğan já é um movimento popular: pessoas pobres, da classe trabalhadora e da classe média alta de todas as cores ideológicas têm se reunido em cidades e vilas por toda a Turquia e defendido o sistema eleitoral competitivo. No entanto, os pobres e a classe trabalhadora não estão participando em sua capacidade como classe. Vários líderes sindicais, juntamente com líderes estudantis e grupos socialistas, têm tentado empurrar as principais confederações para uma greve geral. Os participantes do movimento já estão se engajando em deliberações sobre os pontos fortes e limites da mobilização atual, sinalizando prontidão para repivot. Está claro neste ponto que os estudantes abriram caminho para protestos em massa, mas as reuniões do CHP ainda não criaram um espaço para coalizões mais amplas que poderiam acabar com o reinado de Erdoğan e levar a uma democracia sustentável. As próximas semanas mostrarão se outras forças populares intervirão para mudar o equilíbrio.

Colaborador

Cihan Tuğal é professor de sociologia na University of California, Berkeley. Seus livros incluem Passive Revolution e The Fall of the Turkish Model.

29 de março de 2025

Trump usa lógica do progressismo universitário contra as próprias universidades

Governo humilhou instituições poderosas em sua cruzada para suprimir discurso em defesa dos direitos humanos palestinos

Idelber Avelar
Professor de literatura na Universidade Tulane (EUA). Entre seus livros sobre política, contam-se "Crônicas do Estado de Exceção" (Azougue, 2015) e "Eles em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do século 21" (Record, 2021).


[RESUMO] Perseguição promovida pelo governo Trump nos campi americanos a qualquer crítica a Israel, sob a fantasiosa alegação de combate ao antissemitismo, tem deixado poderosas universidades, como Columbia, de joelhos, enredadas na própria teia que ajudaram a tecer. Casa Branca se vale do discurso progressista dominante nessas instituições, que transforma discordâncias em danos psicológicos e confere autenticidade a um discurso a partir da identidade étnica de quem o profere, para criar a miragem de que judeus são perseguidos nas universidades do país.

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Em 8 de março, agentes migratórios entraram no apartamento de Mahmoud Khalil, bacharel pela Universidade Columbia (Nova York), e o detiveram sem acusação formal ou flagrante. Khalil é residente permanente dos EUA, ou seja, não está no país com um visto temporário. Ele foi informado de que seu green card seria revogado por "atividades alinhadas ao Hamas," embora a única atividade que o governo Trump conseguiu apontar foi sua participação nos protestos pró-palestinos de Columbia.

A deportação já foi bloqueada por um juiz federal, mas Khalil continua detido. Ele mora em Nova Jersey, mas foi levado, sem explicação, para uma prisão na Louisiana, a mais de 2.000 km de distância. O Judiciário ordenou que o caso volte para Nova Jersey, mas o Executivo não cumpriu a ordem.

Homem em protesto contra a detenção de Mahmoud Khalil, no lado de fora do campus principal da Columbia, em Nova York - Mike Segar-27.mar.25/REUTERS

Paralelo a isso, o governo bloqueava US$ 400 milhões (cerca de R$ 2,3 bilhões) de financiamento federal regular de Columbia enquanto a universidade "não combatesse o antissemitismo," expressão com a qual a Casa Branca designa a repressão a qualquer discurso crítico a Israel ou em defesa dos direitos humanos palestinos.

A resposta de Columbia foi humilhante. Decidiu cumprir as exigências de investigar os seus próprios estudantes por participação em protestos e de nomear um interventor externo para o Departamento de Estudos do Oriente Médio, medida que só acontece em casos extremos, quando um departamento se torna ingovernável.

Em 25 de março, Rumeysa Ozturk, doutoranda de cidadania turca na Universidade Tufts, foi abordada por agentes migratórios mascarados que a algemaram, confiscaram-lhe o telefone, e a levaram para um centro de detenção na Louisiana, de novo em violação de ordem judicial que determinava que ela permanecesse em Massachusetts. Informaram-lhe que seu visto estudantil seria revogado por "apoio ao Hamas," embora, de novo, nenhuma acusação formal lhe tenha sido feita.

Em 2 de março, um site que não lista colaboradores nem inclui matérias assinadas publicou um artigo apontando a doutora iraniana Helyeh Doutaghi, pesquisadora associada da Faculdade de Direito da Universidade Yale, como "membro de um grupo terrorista". A evidência citada de tal vínculo seria o cartaz de uma palestra em que supostamente estariam presentes outros "terroristas".

Enquanto isso acontecia, o governo Trump anunciava que Yale era parte de uma lista de 60 universidades que estariam ameaçadas de corte de verbas por supostamente não combater o antissemitismo.

Em menos de 24 horas, Yale baniu Doutaghi do campus, colocou-a em licença administrativa, apagou sua página profissional no site da universidade e revogou seus privilégios de biblioteca, laboratório e email. Isso aconteceu sem que ela tenha sido acusada de qualquer crime.

Qual é o método e quais são as condições de possibilidade desses ataques, e por que as universidades têm se ajoelhado de tal forma? Por que instituições tão poderosas, de lastro tão profundo, e admiradas no mundo todo, não conseguem minimamente reagir? Será que a chantagem pelo dinheiro explica tudo?

Os casos de Khalil, Ozturk e Doutaghi, que são apenas os mais visíveis entre muitos, não deixam dúvidas. No ataque de Trump às universidades, a alavanca, a matriz e o paradigma são a supressão do discurso em defesa dos direitos humanos palestinos. Troféu Poliana para quem acredita que Trump está preocupado com antissemitismo.

No campo conservador, os autointitulados defensores da liberdade de expressão teriam que se decidir. A prova definitiva para o genuíno defensor da Primeira Emenda é hoje, nos EUA, a defesa dos discursos pró-palestinos, por mais discordância que se possa ter por essa causa. Esse é o discurso que se encontra ameaçado ao ponto de se tornar não enunciável, quase indizível.

Os conservadores, em sua esmagadora maioria alinhados com Trump, passaram anos reclamando do coitadismo da esquerda universitária. Ao se referir à "mente americana mimada," a partir do livro de Greg Lukianoff e Jonathan Haidt, o conservadorismo apontava, não sem ocasional razão, que a retórica das microagressões criava uma geração de coitados, eternas vítimas de "danos" provocados pela pura existência de discursos que lhes causam desconforto.

São esses mesmos conservadores que agora ajudam a mobilizar o aparato policial para suprimir discursos, sob o argumento de que uma bandeira palestina e um cântico sobre a liberdade para palestinos "do rio ao mar" provocam irrecuperável "trauma" a estudantes judeus.

Esse argumento é utilizado em total desconsideração do fato de que muitos dos estudantes que entoam esses cânticos são, eles próprios, judeus. Não nos esqueçamos de que 4 de cada 10 judeus americanos com menos de 40 anos defendem o ponto de vista de que Israel é um Estado de apartheid.

Se até mesmo entre tantos jovens judeus americanos Israel é visto como um Estado criminoso e pária, por que as universidades não conseguiram responder aos ataques de Trump com um mínimo de altivez e honestidade?

Por que não dizer a simples verdade —ou seja, o fato banal de que, desde que Moisés partiu o Mar Vermelho, existiram poucos lugares neste planeta tão amigáveis e seguros para judeus como os campi universitários dos EUA de hoje, em que qualquer suspeita de antissemitismo destrói uma carreira e uma vida?

A razão pela qual a acusação trumpista de tolerância com o antissemitismo pegou as universidades de calças na mão já foi descrita nesta Folha. O mecanismo só se aperfeiçoou desde que as reitoras de Harvard, Penn e MIT foram humilhadas (e as duas primeiras forçadas a renunciar) nas oitivas de 5 de dezembro de 2023 no Congresso.

A hipocrisia do campo conservador fica clara quando contrastamos os anos em que reclamaram de coitadismo identitário com a ofensiva que agora protagonizam contra as universidades a partir do mais hipócrita dos coitadismos identitários, o que associa críticas a Israel a ameaças a judeus.

Mas por que esse ataque hipócrita é capaz de deixar a universidade de joelhos, gaguejando respostas submissas? Os próprios teóricos do trumpismo, como Christopher Rufo, já detalharam a estratégia.

O trumpismo percebeu que sua hipocrisia seria inominável pela universidade, pois esta se encontrava presa na teia que ela própria teceu: a concessão de privilégio epistemológico a uma vítima definida a partir de sua identidade étnica. A vitimização consistiria na simples presença de discursos incômodos, que supostamente promoveriam microagressões.

Como dizer a banal obviedade de que hoje, nos campi universitários dos EUA, os judeus não são vítimas coisa nenhuma, se a universidade passou duas décadas dizendo que a vítima tem sempre razão? Quem vai ter a coragem de falar que judeus não são vítimas?

Todo ativista da causa palestina conhece de cor e salteado as utilizações do judeocídio de meados do século 20 para legitimar a ocupação ilegal de terras por Israel. O jogo aqui, no entanto, recebeu um outro giro. O trumpismo agarrou o coração, a lógica mesma do discurso dominante no progressismo universitário e utilizou suas armas contra a universidade.

Essa ofensiva é baseada em uma lorota, mas ela simplesmente replica uma lorota anterior, de gestação puramente universitária. É por isso que as universidades estão caladas e de joelhos: elas foram atacadas com uma miragem roubada de seu próprio repertório.

É por isso que as autoridades universitárias não têm tido a coragem de nomear o elefante na sala —porque o nome dele é Palestina.

Não custa lembrar que, até hoje, nenhum dos diretores das iniciativas de "diversidade, equidade e inclusão" levantou a voz em defesa de Mahmoud Khalil, Rumeysa Ozturk e Helyeh Doutaghi, ou ousou pronunciar seus nomes.

FHC supunha ser marxista nos anos 60, mas já era liberal

Marxistas neoliberais se viam como revolucionários e combateram desenvolvimentismo, mas subordinaram Brasil ao império

Luiz Carlos Bresser-Pereira
Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC


[RESUMO] Autor, ministro no primeiro governo FHC, qualifica como marxistas neoliberais os líderes do seminário de "O Capital", objeto de estudo do sociólogo Fábio Mascaro Querido em livro recente. Para Bresser-Pereira, FHC e intelectuais de seu entorno elegeram o desenvolvimentismo como adversário e abandonaram o marxismo ainda nos anos 1970 para, na década de 1990, se tornarem neoliberais, se associarem ao império e levarem a economia brasileira ao estado de quase estagnação.

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Fábio Mascaro Querido acaba de publicar "Lugar Periférico, Ideias Modernas", no qual estuda o que denomina marxismo acadêmico da USP —um grupo de sociólogos que, nos anos 1960, se aproximou do marxismo, que havia emergido com força na Europa no pós-guerra e alcançado o Brasil.

Esses sociólogos, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, criaram um seminário para estudar Marx e "O Capital". Quando Cardoso assumiu a Presidência em 1995, o seminário se tornou célebre, sempre citado pela imprensa conservadora de maneira simpática porque os autores envolvidos já haviam abandonado havia tempos o marxismo. Querido afirma que esse foi o mito fundador do grupo.

A imagem mostra três pessoas em um ambiente formal, possivelmente em uma reunião ou evento. À esquerda, um homem de cabelo grisalho e terno escuro conversa com uma mulher de óculos e blusa clara, que está no centro. À direita, um homem de terno claro e gravata está falando com a mulher. Ao fundo, outras pessoas estão visíveis, algumas em um ambiente decorado com quadros.A imagem mostra três pessoas em um ambiente formal, possivelmente em uma reunião ou evento. À esquerda, um homem de cabelo grisalho e terno escuro conversa com uma mulher de óculos e blusa clara, que está no centro. À direita, um homem de terno claro e gravata está falando com a mulher. Ao fundo, outras pessoas estão visíveis, algumas em um ambiente decorado com quadros.

Fernando Henrique (esq.) e Ruth Cardoso conversam com José Arthur Giannotti no auditório do Conselho Universitário da USP durante comemoração dos 25 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) - Adriana Zehbrauskas - 2.mai.94/Folhapress

O núcleo do grupo —aqueles que proponho chamar de marxistas neoliberais— foi constituído por Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti e Francisco Weffort.

Trata-se de um oximoro que se aplica bem a eles, que se encantaram com o marxismo nos anos 1960, quando ainda estava viva a esperança na revolução socialista, tornaram esse marxismo menos contraditório e revolucionário, definiram o desenvolvimentismo como o adversário e abandonaram o marxismo já nos anos 1970, enquanto Cardoso desenvolvia a teoria da dependência associada, que implicou a subordinação do Brasil ao império. Em síntese, nos anos 1960, eles supunham ser marxistas mas já eram liberais; nos anos 1990, se tornaram neoliberais.

A denominação marxismo neoliberal naturalmente não se aplica a Roberto Schwarz e Francisco de Oliveira, que eram do grupo, nem a Octavio Ianni e Florestan Fernandes, que não eram realmente do grupo.

Florestan foi o mestre de todos, o maior sociólogo que a USP já teve. Inicialmente, se associou à sociologia da modernização e, depois, indignado com o que via no Brasil, se tornou um marxista revolucionário. Querido, naturalmente, não usa essa expressão, porque ele era antes um admirador que um crítico do marxismo neoliberal.

Querido distingue Roberto Schwarz dos demais, alguém que permaneceu marxista ao longo dos anos e, como escreve, "radicalizou a dimensão 'negativa' da crítica". Como crítico literário e escritor, Schwarz não se preocupou em propor políticas nem fez concessões para ser aceito no seu entorno. Ao contrário do núcleo duro do grupo, Schwarz continuou nacionalista como havia sido antes dele seu grande mestre, Antonio Candido, e se associou a Paulo Arantes, um crítico do marxismo neoliberal.

Entre todos, Schwarz é o único que, no plano teórico, é reconhecido internacionalmente. (A teoria da dependência associada teve repercussão internacional, mas, além de ser equivocada, não pode ser considerada uma teoria —é apenas uma sofisticada e pouco clara justificação de subordinação.)

Querido usou o pensamento de Schwarz como referência ou fio condutor do livro e lhe dedicou dois excelentes capítulos. Salientou o amplo papel que teve Adorno em seu pensamento, como também a crítica da modernização realizada por Robert Kurz em 1991, um momento em que a União Soviética entrava em colapso.

Querido deu pouca importância ao nacionalismo do crítico, o que contradiz a sua perspectiva negativa, mas, no final do segundo ensaio, cita um texto significativo: "A última palavra não pertence à nação, nem à hegemonia ideológica internacional, mas pertence ao presente conflituado que as atravessa". Este presente conflituado é o da luta de classes dos grupos de interesse específicos para esse ou aquele problema.

Nos anos 1960 e 1970, o núcleo neoliberal marxista e, mais amplamente, a esquerda antivarguista combateram o desenvolvimentismo nacionalista porque pretendiam ser revolucionários, enquanto o desenvolvimentismo implicava um compromisso da classe trabalhadora e da esquerda social-democrata com a burguesia.

O núcleo acadêmico neoliberal marxista seguiu o mesmo caminho: ao contrário da visão desenvolvimentista, pretendia não fazer concessões e acabou concedendo tudo nos anos 1990, quando se tornou neoliberal. A esquerda anti-Vargas o combateu porque definiu um "culpado interno" pela derrota: haviam sido os desenvolvimentistas, que, em vez de serem revolucionários, haviam apostado em um acordo da classe trabalhadora com a burguesia industrial intermediado pela burocracia pública.

O núcleo só passou a ter alguma relevância a partir do golpe militar de 1964, a grande derrota da social-democracia desenvolvimentista. Derrotados os adversários sem que fosse preciso lutar contra eles, estava agora na hora dos sociólogos da USP assumirem o comando intelectual da esquerda.

No capítulo "A revanche dos paulistas", Querido relata a nova fase. Revanche por quê? Ele não explica, porque não foi realmente uma revanche. Na partida anterior, nossos amigos não tinham sido derrotados: eles estavam simplesmente fora do jogo. Em 1964, entraram no jogo e se tornaram bem conhecidos. Os que estavam no jogo até então eram os nacional-desenvolvimentistas social-democratas como Celso Furtado, Guerreiro Ramos, Helio Jaguaribe e Ignácio Rangel. Na época, eu já era desenvolvimentista, discípulo dos últimos.

Celso Furtado em entrevista à Folha em 1989 - Niels Andreas - 3.mai.1989/Folhapress

Eles estavam fora do jogo, mas desesperados para entrar, especialmente para derrotar os dois mais importantes sociólogos dos anos 1950, Guerreiro Ramos e Gilberto Freyre. O golpe militar se encarregou de derrotar Guerreiro ao cassar seu mandato de deputado federal e seu direito de se recandidatar. Enquanto Celso Furtado foi exilado, ele e seus companheiros do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) Jaguaribe e Rangel foram submetidos a intenso ataque pela esquerda alienada, para a qual o nacional-desenvolvimentismo associado a Getúlio Vargas era inaceitável. Isto além do ataque pela direita.

O próximo passo foi o livro de Cardoso e Enzo Faletto, "Dependência e Desenvolvimento na América Latina" (1969), no qual a dependência se torna a causa do desenvolvimento, em vez de obstáculo. Era a teoria da dependência associada que surgia. A nova verdade, que se espalhou rapidamente por toda a esquerda intelectual, afirmava taxativamente que uma coalizão de classes desenvolvimentista associando os empresários industriais às esquerdas e à classe trabalhadora era impossível.

A burguesia não existia nem poderia existir (na verdade, a burguesia industrial desenvolvimentista existiu no Brasil em dois breves períodos: 1950-1964 e 1967-1980), mas a falta de uma burguesia nacionalista não era problema, porque o chamado império era na verdade apenas um "hegemon" benevolente —suas empresas multinacionais estavam contribuindo para o desenvolvimento do país e bastava que o Brasil se associasse a ele que se desenvolveria.

Não foi isso que aconteceu: em 1990, a submissão aconteceu e, em 1995, se aprofundou. O país entrou em quase estagnação.

Não se imagine, porém, que os intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas tenham escapado do ataque de Cardoso e Faletto, ainda que esse ataque não fosse perfeitamente claro.

Em um primeiro momento, a Cepal de Raúl Prebisch e Furtado percebeu que estava sob ataque e não quis publicar o livro por meio do Ilpes (Instituto Latino-americano e do Caribe de Planejamento Econômico e Social). Mais tarde, porém, ela se adaptou à crítica, se acomodou ao império e perdeu qualquer relevância no plano das ideias.

A Cepal somente existiu como uma ideia —a do desenvolvimentismo estruturalista clássico voltado para a industrialização— entre 1949 e 1963, sob o comando de Raúl Prebisch. Em 1964, os desenvolvimentistas foram derrotados e obrigados a ficar em silêncio. No começo dos anos 1970, a Cepal abandonou o desenvolvimentismo.

Nos anos 1970, essa mesma esquerda, desprevenida, se deixou envolver pelas ideias propostas por Cardoso e Falleto. No plano econômico, essas ideias foram aceitas provavelmente porque a ideia de associação ao império não estava clara no livro e nos trabalhos que seguiram —e porque a esquerda estava ressentida com o golpe de 1964.

Por outro lado, a versão realmente marxista da teoria da dependência, a teoria de André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, também era equivocada porque contava com a revolução socialista na América Latina a curto prazo.

Essa versão sofreu um ataque violento e injusto em artigo assinado por José Serra e o próprio Cardoso. Creio que a iniciativa tenha sido mais de Serra que de Fernando Henrique, porque este é um homem da melhor qualidade e cuja personalidade é incompatível com uma atitude como essa.

Em 1969, sob a liderança de Cardoso e com apoio da Fundação Ford, o Cebrap foi criado. Logo, ele se tornou o grande centro de estudos em defesa da democracia e de crítica à desigualdade.

Foi nessa época em que fui convidado a ser membro do conselho da nova entidade de pesquisa e me juntei a eles. Estava isolado na Fundação Getulio Vargas e precisava de diálogo. Percebia que minhas ideias desenvolvimentistas não eram ali bem vistas, mas fui muito bem recebido e me associei à luta do Cebrap, onde, além dos intelectuais já citados, estavam figuras notáveis como Chico de Oliveira e Paul Singer. Lutávamos todos contra o regime militar.

Nessa época, porém, muitas das coisas que estou narrando aqui não estavam claras para mim. Entre 1995 e 1999, participei do governo FHC e, sob influência do que me envolvia, minhas convicções desenvolvimentistas e meu interesse pelo marxismo diminuíram por algum tempo.

Fiquei, porém, decepcionado com o caráter neoliberal que assumiu a direção da economia e, em 2003, revi minha posição em relação a meu amigo Fernando Henrique. Voltei a ler seu livro com Faletto e escrevi o ensaio "Do Iseb e da Cepal à teoria da dependência", publicado em 2005, cuja primeira cópia entreguei a ele. Não era um rompimento pessoal, mas intelectual. Havia compreendido o sentido de sua obra e de seu pensamento.

Estimulado pelo excelente livro de Querido, decidi, nesta resenha, voltar agora ao tema da história intelectual. Uma resenha mais crítica do que fora o artigo de 2005, uma crítica ao marxismo neoliberal. Afinal, me pergunto: qual foi a contribuição ao Brasil desse grupo de sociólogos, cientistas políticos e filósofos? Como compará-la com a contribuição dos desenvolvimentistas social-democratas?

Os desenvolvimentistas se associaram a Vargas, ainda que ele tenha sido um ditador entre 1937 e 1945, porque ele foi o grande estadista que promoveu a industrialização e o grande desenvolvimento econômico do Brasil. Os principais desenvolvimentistas tiveram uma influência significativa na realização da revolução capitalista brasileira, que aconteceu entre 1930 e 1980. Alguns deles eram socialistas, mas sabiam que a revolução socialista não era uma possibilidade realista.

Enquanto isso, nossos marxistas neoliberais flertaram com a revolução sem muito empenho e, mais tarde, se associaram ao império e se tornaram neoliberais.

Na conclusão de "Lugar Periférico, Ideias Modernas", Querido afirma que, enquanto os intelectuais do ciclo nacional-desenvolvimentista popular das décadas de 1950 e 1960 estavam interessados em um projeto de modernização nacional (anti-imperialista, acrescentaria), "os acadêmicos paulistas expressavam a redefinição entre intelectuais e política ocorrida na esteira das transformações pelas quais passaram tanto a sociedade quanto a universidade brasileira, a partir dos anos 1970".

Ou seja, eles lograram se adaptar à realidade social e política que os circundava em vez de tentar mudá-la. Algumas vezes, vi Fernando Henrique, enquanto presidente da República, agir procurando se adaptar em vez de procurar moldar o que estava acontecendo. Ele e seus companheiros eram mais sociólogos que agentes republicanos.

O livro de Querido é uma notável contribuição à história intelectual do Brasil.

Lugar Periférico, Ideias Modernas: aos Intelectuais Paulistas as Batatas
Preço R$ 64 (288 págs.); R$ 54,90 (ebook) Autoria Fabio Mascaro Querido Editora Boitempo Link: Lugar Periférico, Ideias Modernas: aos Intelectuais Paulistas as Batatas

Toffler na China

O trabalho do eclético futurista americano exerceu uma influência profunda e inesperada na transformação digital da China desde a década de 1980.

Howard W. French

The New York Review

Ilustração de Michelle Mildenberg

Há um ano e meio, cheguei à China após uma longa ausência induzida pela Covid e cheguei ao meu hotel em uma grande cidade do centro-oeste no início da noite, seriamente desorientado pelos longos voos dos EUA e pela mudança drástica nos fusos horários. Eu estava com fome, mas, para minha consternação, descobri que o restaurante do hotel não servia jantar e eu não tinha dinheiro na minha conta no aplicativo de telefone chinês WeChat. Sem dinheiro eletrônico, eu não poderia pedir comida, então eu teria que sair e procurar grogue por um lugar para comer que aceitasse dinheiro de papel.

Ansiosa para evitar isso, pedi a uma amiga que me ajudasse a encontrar uma boa refeição por delivery e a encomendasse para mim—eu a reembolsaria depois, é claro—e fiz minha escolha entre os muitos links que ela me enviou. Perguntei se deveria esperar no saguão, e ela disse que não, que a entrega seria feita diretamente no meu quarto. Após trinta minutos, ouvi a campainha da porta, mas não havia ninguém no corredor pouco iluminado. No entanto, à altura dos meus joelhos, havia um robô branco de corpo arredondado com detalhes azuis, vagamente parecido com o R2-D2. Ele falou com uma voz robótica e, no topo de sua cabeça plana, apareceu uma mensagem com meu nome, instruindo-me a pressionar um botão para aceitar a entrega de sua carga. Assim que o fiz, uma porta em seu torso deslizou para abrir, revelando a refeição embalada e ainda fumegante. "Sua transação está completa, por favor, avalie meu serviço", disse o robô.

Existem inúmeras maneiras pelas quais a China de hoje pode servir amostras do que parece ser o futuro, mesmo para este visitante de longa data um tanto cansado. Ela se transformou radicalmente quando morei lá entre 2003 e 2008, possivelmente o período de modernização mais rápida que qualquer país já experimentou. Mas a China de 2008 foi transformada novamente desde que saí. Houve enormes atualizações físicas, incluindo uma extensão nacional de uma rede ferroviária de alta velocidade cujos 28.000 milhas de trilhos zombam dos esforços hesitantes dos Estados Unidos para modernizar a Amtrak. Durante aquela visita recente, viajei em novas rodovias igualmente majestosas em veículos elétricos chineses elegantes de empresas com nomes como Build Your Dreams que se tornaram marcas globais de EV.

As mudanças mais marcantes, no entanto, estão relacionadas à tecnologia virtual e automação, e são melhor vislumbradas por meio da minha experiência surpreendente com o robô. A China se tornou uma sociedade quase totalmente sem dinheiro. O WeChat, que foi lançado por uma empresa chamada Tencent em 2011, se tornou tão abrangente que é desafiador descrevê-lo para um americano. É o equivalente aproximado do WhatsApp para o consumidor chinês, mas para centenas de milhões deles, também serve como seu banco, seu agente de viagens e sua plataforma para uma imensa variedade de transações de comércio eletrônico. O WeChat talvez seja melhor pensado como um sistema operacional que fica em cima do próprio sistema operacional de um telefone, seja Android ou Apple, porque muitos usuários começam seus dias dentro de seu universo amplo de aplicativos e nunca o deixam. As pessoas reservam caronas e consultas médicas nele, usam-no para pagar suas contas e impostos, se envolver com seu governo local, jogar, conduzir reuniões de negócios, comprar ações, transferir dinheiro, reservar viagens de trem e aéreas, compartilhar documentos, transmitir entretenimento ao vivo e, sim, providenciar entrega de comida.

O WeChat é apenas o aplicativo mais onipresente no mundo em expansão dos serviços online da China. É o mais consequente, porém, por uma razão mais sombria: sua indispensabilidade para todos os fins o tornou uma câmara de compensação ultraconveniente de dados sobre o comportamento das pessoas para um governo que aceita poucos limites no monitoramento da população. Elon Musk declarou seu interesse em transformar o X, o antigo Twitter, em uma plataforma completa, semelhante ao WeChat, que oferece suporte a operações financeiras e comerciais. Os críticos citam isso como um motivo na recente eliminação do Consumer Financial Protection Bureau, que supervisionaria tal empresa e as regras bancárias e de privacidade de dados que a governariam.


This virtual, data-driven, and electronic transformation of China has surprising roots in the writings of an eclectic American thinker, Alvin Toffler. His books were the rage in the 1970s and 1980s but are all but forgotten today. The most famous of them, Future Shock, sold six million copies within five years of its publication in 1970. For such a popular work, Future Shock is surprisingly dense with abstruse theorizing. It focuses on ideas about various stages of human history, from the advent of agriculture to the rise of “super-industrial” society and finally to the arrival of the information age, upon whose cusp the world sat poised, Toffler (and his wife, Heidi, an uncredited coauthor) claimed.

Toffler’s The Third Wave (1980) also sold millions of copies. Though intended for Western audiences, it exerted a profound and wholly unanticipated influence on China just prior to the era of globalization. Students of the country typically think of the 1980s as the decade when China broke with the political chaos and economic autarky of its long Maoist period and began its rise based on industrialism and exports. This untold boom earned it the nickname “factory of the world,” but that may cause us to gloss over the awesome scale of the country’s economic achievement. In the late 1970s China generated less than 2 percent of the world’s economic output. In 2023 it accounted for roughly 34 percent of global manufacturing exports.

Even as China was working hard to realize prodigious advances like these, Beijing had already begun thinking about how it could eventually transition to a service-driven, digital, automation-dominated future, one built on a mastery of cutting-edge sciences that its leaders believed could allow them to catch up with and even leapfrog the long-dominant West. This ambitious dream took shape under the spell of Toffler’s second book at a moment of unusual receptiveness to outside ideas on the part of powerful reformers like Zhao Ziyang.

Zhao was China’s premier between 1980 and 1987 and then the head of the Communist Party for more than two years. In a speech before China’s State Council in 1983 he drew on Toffler’s ideas to proclaim that “at the end of this century and the beginning of the next century,” China would usher in a “New Technological Revolution” with sweeping implications “for production and for society.” Zhao had gotten wind of Toffler’s The Third Wave from a researcher at the state-funded Institute of American Studies, Dong Leshan, who had also translated George Orwell’s 1984. Dong published a summary of The Third Wave in Du Shu, a Chinese magazine then intended for politically trustworthy officials. One of the problems that made the book politically sensitive was Toffler’s recounting of his youthful renunciation of Marxism. Concerns about this were apparently outweighed by his inspirational message, which seemed so in sync with the reformist ethos then sweeping the Chinese political elite. Some of Toffler’s phrases even had the ring of slogans then being used in China’s Communist Party–controlled press. “Old ways of thinking, old formulas, dogmas, and ideologies, no matter how cherished or useful in the past, no longer fit the facts,” The Third Wave claimed.

Three thousand copies of an unauthorized Chinese translation of the book were soon printed for the party’s elite. Toffler was brought to China, where he shared his theories with top leaders and rapt audiences, and as enthusiasm for his vision spread, The Third Wave was released to the general public. By 1986, according to one opinion survey, 78.6 percent of Chinese college students claimed they had read The Third Wave.

Zhao, Toffler’s biggest Chinese enthusiast, was arrested during the 1989 student and worker protests at Tiananmen Square that ended in a massacre. But by that time, many of Toffler’s big ideas had taken root—their influence can be seen nearly everywhere one looks in the China of today, even though almost no one invokes his name.


The Third Wave, like all of Toffler’s works, is much more inclined toward the piling up of ideas than literary style. Some of the book’s most vivid writing, though, comes relatively early, in its recounting of his employment in factories during what he depicts as the peak years of America’s bygone industrial age. In January 1950, as a gangly twenty-two-year-old freshly armed with a college diploma and a suitcase full of books, Toffler rode off by bus with his girlfriend to the American Midwest in search of factory work, which he called “the central reality of our time.”

America was the heartland of the world. The region ringing the Great Lakes was the industrial heartland of America. And the factory was the throbbing core of this heart of hearts: steel mills, aluminum foundries, tool and die shops, oil refineries, auto plants, mile after mile of dingy buildings vibrating with huge machines for stamping, punching, drilling, bending, welding, forging, and casting metal. The factory was the symbol of the entire industrial era and, to a boy raised in a semi-comfortable lower-middle-class home, after four years of Plato and T.S. Eliot, of art history and abstract social theory, the world it represented was as exotic as Tashkent or Tierra del Fuego.

Toffler spent five years laboring in this world, working in gritty factory jobs, not as a clerk or personnel assistant. This provided him with a keen sense not only of how industrial production functioned but also of how difficult it was to make a satisfying living as a laborer. Years later he argued that the same was about to become true for every industrialized country. Sophisticated services and new technologies, not smokestack industries, would produce the greatest wealth in the future. Toffler immediately segued from a description of the midcentury American world he came of age in—much of which was later laid waste to by China’s startling industrial rise—to a panorama of what he predicted would be a radically different future. To a large degree, it is the future we now inhabit.

As a literary genre, futurism, like much of science fiction and self-help writing, has long struggled for respect. One reflection of the low esteem in which it stands is the scant serious effort invested in retrospectively holding up its predictions to scrutiny. Despite the title of Future Shock, Toffler, who was sensitive to criticism that he was an intellectual lightweight, rejected the label “futurologist.” He always insisted that he was more interested in describing the forces that drive change than in predicting the future. This makes the advent of the many sweeping changes in the international economy and in human society that he foresaw in the 1970s all the more astonishing.

Ideas, both big and small, flood onto the pages of The Third Wave, and as impressive as what one might call Toffler’s hit rate is in predicting the transformations that have occurred since its publication, it is equally remarkable how little of what he foresaw now reads as outlandish or even widely off the mark. He told his readers to expect the rise of what he called minicomputers, which he said were about to invade American homes and become as standard as toilets and cheaper than televisions. This might seem unsurprising given the ubiquity of computers nowadays, but I have vivid memories of how thoroughly novel they still were in the early and mid-1980s, when I purchased my first desktop from Kaypro, a soon-to-be-defunct manufacturer, for use as a young freelance reporter in Africa. When I was subsequently hired by The New York Times, they were still being introduced into the newsroom.

Toffler foresaw the spread of fiber optic cables and other digital transmission networks and the enormous changes they would usher in. These included the instantaneous distribution of market information and the ability to comparison shop and make purchases online, as well as the introduction of Alexa- or Siri-like devices in the home that one could ask for news or information about practically anything. He also spoke of a future in which artificial intelligence and big data would become omnipresent tools. The rudimentary video games of his era—crude simulations of Ping-Pong, for example—were harbingers of complex virtual worlds to come. In the meantime, they also played an important if unsuspected part in “a premonitory training, as it were, for life in the electronic environment of tomorrow,” one that we all experience today via our ever-present screens. Decades before the Covid-19 epidemic, he said that changes like these would enable most people to work from home.

More remarkable than Toffler’s visions about what were then barely conceivable technologies was his ability to imagine many of the profound social effects that this new information economy would create. There was no way he could have anticipated today’s vocabulary for many of the new modes and platforms for communications and public discourse, but the connections are clear, from Internet publications to blogs to social media feeds like Twitter and Facebook. Conjuring something uncannily like Facebook four years before the birth of its founder, Mark Zuckerberg, Toffler wrote:

One can, for example, easily imagine a new computerized service—call it “Pers-Sched” or “Friend-Sched”—that not only reminds you of your own appointments but stores the schedules of various friends and family members so that each person in the social network can, by pushing a button, find out where and when his or her friends and acquaintances will be, and can make arrangements accordingly.

He foresaw transformations in broadcasting as well, predicting the shrinking of radio audiences and the remaking of television, during which American society went from three dominant networks to cable and then to today’s streaming and subscription models.

In the end, Toffler’s book is a profoundly political one. He anticipated that long-standing and relatively stable patterns of national politics in a country like the US would be exploded by the rapid demise of widely held trust in common sources of information. “Consensus shatters,” he stated bluntly, warning that people “yearning for the ready-to-weal moral and ideological certainties of the past [will be] annoyed and disoriented by the information blitz.” In the coming universe of à la carte news, or countless sources of information dominated by instant takes—“blips,” as Toffler called them—bodies politic will readily splinter into self-reinforcing tribes.

As a reader of Toffler back in his day and now again in the present, I am particularly fascinated by his early experience on the industrial shop floor. Seeing up close how hard it was to live by one’s hands, operating heavy machinery in hot, dirty, deafening foundries and factories, drove him to envision an approaching postindustrial world. Toffler’s techno-optimism is best captured in a passage in The Third Wave in which he described the science of chemistry almost as a sunset field of knowledge that was about to be replaced by biology, which we should understand as things like genetic engineering and biomedicine. This did not mean that chemistry would no longer be important, only that along with other fields that had been instrumental to the rise of industrial society and the great human discoveries in the nineteenth and twentieth centuries—electrical and mechanical engineering, for instance, and even nuclear science—it would become less central to technological progress than newer fields, such as semiconductors, information science, quantum physics, ecological science, and the mastery of space and the oceans.

It was well beyond even Toffler’s powers of anticipation to imagine just how thoroughly these intuitions would captivate Chinese thinkers. After all, even as they absorbed many of his main ideas, China’s economic policymakers were then doubling and tripling down on industrial strategies developed by the great economic powers of the twentieth century. Today, though, reflections of Toffler’s vision abound.

In 2018, twenty-two years after scientists in Scotland created the first cloned mammal, a sheep they named Dolly, a Chinese scientist working in southern China, He Jiankui, ignited a bioethical firestorm by using newly invented CRISPR technology to create the first genetically edited humans, twin girls who were given the names Lulu and Nana. He was eventually sanctioned for undertaking the experiment without state approval, but what this dramatic episode best illustrates is the across-the-board enthusiasm for the kinds of advanced scientific research supercharged by Zhao Ziyang in the early 1980s.

China’s achievements in space have been even more remarkable than those in biological sciences, and almost entirely uncontroversial. Late in the last century the country still lagged distantly behind the US, Russia, and even some lesser powers in the field. Over the past two decades, though, China has risen swiftly, now rivaling the United States and by some measures even surpassing it in space exploration. As it built new generations of high-performance rockets, Beijing rapidly deployed its own satellite navigation system, built an advanced space station, developed a lunar program that deposited a lander and an exploratory robot on the far side of the moon, and operated a wheeled rover on Mars. Meanwhile, as with much else, China has also become the leading competitor of the US both in the mining of big data and in artificial intelligence, as recently demonstrated by the Chinese company DeepSeek, which claims to produce AI search results on par with leading Western companies but far more cheaply.

But if Toffler deserves credit for any acuity of vision, it only seems right to point out where his expectations have fallen furthest from the mark. And as it happens, China is the ideal place for this as well. In conjuring today’s world of ever more densely networked devices, he asked, “Will Big Brother some day be able to tap not merely our telephones but our toasters and television sets, keeping tabs on our every move and mood?” His answer was deeply skeptical:

When intelligence is distributed widely throughout the entire environment, when it can be activated by users in a thousand places at once, when computer users can communicate with one another without going through the central computer,…can Big Brother still control things? Rather than enhancing the power of the totalitarian state, the decentralization of intelligence may, in fact, weaken it.

In the conclusion to The Third Wave, Toffler waxes with wide-eyed optimism about the possibility that the world was on the verge of a “great democratic leap forward.” The extraordinary advances in communications technology and our ability to lead lives that were networked to an extent that humans had never before experienced or even anticipated were about to enable the

building [of] a new civilization on the wreckage of the old…. In all likelihood [this] will require a protracted battle to radically overhaul—or even scrap—the United States Congress, the Central Committees and Politburos of the Communist industrial states, the House of Commons and the House of Lords, the French Chamber of Deputies, the Bundestag, the Diet, the giant ministries and entrenched civil services of many nations, the constitutions and court systems—in short much of the unwieldy and increasingly unworkable apparatus of supposedly representative governments.

Wisely Toffler presented no fixed formula for all this but rather a series of musings about the liberating potential of more direct or semidirect democracy, which could allow more equal representation for women as well as for minorities of all kinds, and for the myriad fragmentary constituents of the “de-massified” societies that the new infosphere (a term that encompassed the as-yet-uninvented Internet) was making possible. Toffler’s ideas included such things as randomly selecting members of society to participate in rolling referendums on the questions of the day and allowing their votes to factor into congressional legislation. Experiments of this sort, he said, were the best hope of heading off what he called the “totalitarian thrust.”


If Toffler, who died in 2016, had had the opportunity to see the documentary Total Trust (2023) by the Chinese journalist Jialing Zhang, it would be hard to imagine him not coming to the opposite conclusion. The film is made up of two interwoven parts. The first involves the deeply disheartening narratives of three women. Two of them, Wenzu Li and Zijuan Chen, are shown fighting determinedly but futilely for the freedom of their husbands, civil rights lawyers who were arrested in 2015 and 2020, respectively. The third, Sophia Xueqin Huang, is a journalist whose courageous coverage of these cases and of the broad clampdown on political expression in the country eventually resulted in her own arrest and incarceration.

All of this, disturbing enough, floats above one of the most dystopian depictions of contemporary China I have seen anywhere. Using footage from Chinese state broadcasting and from an anonymous film crew, Total Trust traces the contours of a communications and surveillance infrastructure of a power that even Toffler failed to imagine. Inside a huge commercial expo where the latest in Orwellian gear is being promoted by Chinese manufacturers, one government-run program offers something it calls a Smart City platform that deploys high-speed cameras along streets and intersections. It boasts that these can capture photos of pedestrians jaywalking, with images of the scofflaws instantly displayed on large LED screens to shame them. “In the future,” a voice says, “fare evasion, soliciting, eating and drinking on the subway, all will be recorded in personal social credit histories.”

Another vendor offers a program called Emotibot that claims to perform real-time analysis of people’s moods, producing graphic, moment-by-moment representations of their purported sadness, happiness, anger, confusion, surprise, disgust, fear, or contempt. “If an employee is looking stressed our facial recognition feature can pick up on that and alert their supervisor to get ahead of the problem,” a company spokesman boasts.

A chilling scene with the title “Security Management” shows what appears to be one of China’s new train stations. As cameras track people streaming through the great hall, a voice-over announces, “Danger doesn’t only come from enemies overseas, it also comes from within our nation. We must mobilize the public to actively participate in security matters.”

Much of the rest of this portion of the film details how that is accomplished. The nation, another voice-over says, is being monitored by the Skynet Project, which it calls “the world’s largest surveillance network.” Skynet comprises over 170 million interconnected video cameras, with another 400 million expected to be installed in the next three years. Moments later, another speaker touts the Sharp Eyes Project, which raises the possibility of enlisting the public in monitoring others, as well as potentially reaching into people’s homes. “With upgraded TV cable, public surveillance footage is now only a click away at home,” he says. “Everybody can be vigilant.”

How competent or thorough these emerging online means for surveillance and political control will prove to be is still an open question. What is certain is that the enlistment of citizens in the policing of the population has venerable roots in China, dating at least as far back as the Mao period. At that time even family members were notoriously encouraged to inform on one another, and neighborhoods had their own resident inspection committees that reported on every aspect of people’s behavior, including whether or not women were missing their menstrual periods, a possible sign of evasion of strict birth control measures.

The ambition of the current efforts, though, is beyond doubt. The embattled lawyers in Total Trust lay out its scope. “The system uses big data and human surveillance. It divides every community into grids and assigns an officer to each one,” one says. “Each grid officer is in charge of about four hundred households, or one thousand residents,” explains an officer. Equally clear is that the system under construction is not placing all its bets on technology. Total Trust shows scene after scene where its characters are besieged by their human monitors, who check up on them constantly, seek to force their way into their apartments, and hinder their movements as they attempt to help imprisoned family members or simply get on with their lives.

The film reaches a sort of emotional crescendo with scenes that show authorities in China’s largest city, Shanghai, pushing methods of surveillance and control to their limits during the Covid-19 epidemic in a draconian effort to curb transmission of the virus. Attempts to implement a blanket quarantine that lasted for two months involved a strictly enforced lockdown of entire neighborhoods, and we see the invasion of people’s homes by teams of men in white hazmat suits forcibly carrying away supposed violators. Thousands of people are shown screaming in anguished protest against lockdowns from the balconies of high-rises, and crowds fight off the inspectors in shoving matches at building entrances.

This strong, spontaneous-seeming pushback by Shanghai residents was widely credited with getting the government of China’s all-powerful leader, Xi Jinping, to make a rare about-face and suddenly abandon his government’s so-called Zero Covid policy. But is it a harbinger of the kind of future that Toffler foretold, in which highly networked citizens somehow manage to stay a step or two ahead of the states or of powerful corporations that seek to dominate them? Nothing could seem further from reality. And the challenge of this dawning future is not limited only to highly authoritarian states like China. Rather, it is one where we all risk being watched constantly, where no one can control the use or sale of personal data, where records are kept for every imaginable thing, and where what we only recently understood to be privacy ceases to exist.

Howard W. French

Howard W. French é professor na Columbia Graduate School of Journalism. Seu livro The Second Emancipation: Nkrumah, Pan-Africanism, and Global Blackness at High Tide será publicado este ano. (Abril de 2025)

Cafeteria da esquerda

Por décadas, o Gay Hussar foi o ponto integral da esquerda trabalhista em Soho para organização, fofocas e goulash.

Mark Seddon

Tribune

Victor Sassie e dois garçons do lado de fora de seu restaurante, The Gay Hussar, no Soho, Londres, Reino Unido, 18 de maio de 1970. (Foto de Evening Standard / Hulton Archive / Getty Images)

Nada na longa vida do Gay Hussar foi como a sua partida. Lá estávamos nós, os sobreviventes desgrenhados de muitos almoços/jantares/tardes longos debaixo da mesa, alguns de nós da unidade de retaguarda que estava partindo, a "Goulash Co-operative", criada para salvar o famoso restaurante do fechamento ou, pior, de ser transformado em uma lanchonete de sanduíches bijoux. Em algum momento durante aquela noite de despedida agora turva, John Wrobel, o gerente irreprimível e conspirador do Gay Hussar, pegou uma serra e começou a cortar uma mesa de restaurante em duas. O jogo acabou!

O Gay Hussar na Greek Street, Soho, lar de centenas de conspirações e tramas políticas, jornalistas, políticos de esquerda, poetas, espiões (Guy Burgess, o diplomata britânico e agente duplo soviético, às vezes podia ser visto jantando no Gay Hussar; aqueles com quem ele estava gostariam que isso permanecesse em segredo), até mesmo o turista estranho, fecharia suas portas pela última vez. Seu menu húngaro foi ossificado na época de sua compilação (provavelmente em algum momento da década de 1960). Seus vinhos eram razoáveis ​​a medianos, para aqueles que sabiam sobre essas coisas. Sua indispensabilidade para a alegria da vida quando "gay" tinha um significado bastante diferente era imensurável (de vez em quando um americano se aventurava, guia na mão, acreditando que fazia parte da cena de Londres).

Presidindo esta última ceia triste estava uma fotografia em preto e branco emoldurada do fundador do restaurante, Victor Sassi, retratado na cozinha da cozinha no andar de baixo com o chefe de cozinha de longa data e oprimido, Lazlo. Victor alegou ser húngaro. Achávamos que sabíamos que ele havia nascido em Barrow-in-Furness, filho de um marinheiro itinerante. Quando o Gay Hussar fechou, Charles Laurance, um velho amigo e ex-correspondente estrangeiro aventureiro do The Sunday Telegraph, me deixou esta linha de sua casa em Catskills, esclarecendo as coisas:

Caro Mark,

Nunca pareceu haver qualquer dúvida de que Victor era um colega cockney que havia induzido (meu sogro) Denis Scammell a um esquema para vender preservativos do exército no mercado negro de Nápoles, o que parecia uma recompensa justa por sobreviver às batalhas cruéis para chegar às casas de má reputação que eram encontradas lá nos últimos dias da guerra! Uma corte marcial os enviou a Budapeste (a linha do tempo não está clara aqui) como guarda-costas de um cônsul enviado para manter uma presença britânica enquanto Joe Stalin tomava posse. Os dois velhos contaram histórias de como eles festejavam muito em Budapeste, muitas vezes não retornando ao "quartel" até que os bondes estivessem funcionando pela manhã, e como ambos trouxeram esposas húngaras como espólio de guerra. Minha ex-sogra era Margit Horvart. A história era que Victor percebeu as possibilidades empreendedoras da culinária nacional de sua esposa e criou o Gay Hussar. Não tenho ideia de onde vem a história de ele ter aprendido a culinária em uma escola de culinária antes da guerra!

Tribune e Gay Hussar foram unidos no nascimento deste último. Sassi também estava lá. De acordo com veteranos como Geoffrey Goodman e Michael Foot, Victor sempre foi solícito, conseguindo fazer parte de qualquer conspiração e fofoca por tempo suficiente para que aparecesse em uma coluna de diário da Fleet Street. Consegui manter essa tradição viva, pois além de receber quase nada para editar o Tribune, dediquei um dia da semana ao mais bem remunerado "Londoner's Diary" no agora extinto London Evening Standard. As despesas de almoço e táxi foram pagas por Lord Rothermere. Mais sobre ele depois.

O Gay Hussar era o lar da ala Tribunite do movimento trabalhista. Bevan, Crossman, Castle, os grandes líderes sindicais, Jack Jones e Hugh Scanlon eram todos frequentadores. O notoriamente bêbado Secretário de Relações Exteriores George Brown caiu bêbado na rua em frente ao local. Tom Driberg teve seu ataque cardíaco fatal em um táxi logo após sair. (O ator Richard Harris teve seu ataque cardíaco enquanto estava no restaurante, acenando para os clientes de sua maca de ambulância e dizendo-lhes para "continuar" enquanto ele era carregado). Driberg usou a famosa desculpa de um almoço na sala que todos nós nomeamos em sua homenagem (a "Suíte Memorial Driberg") para tentar persuadir Mick Jagger a se tornar um parlamentar trabalhista (e ajudar na campanha contra a Guerra do Vietnã), e ao colocar a mão na coxa provavelmente acabou com qualquer esperança de que isso acontecesse. Nesta ocasião ou em outra, W. H. Auden se virou para Marianne Faithfull e perguntou: "Quando você está contrabandeando drogas, você as guarda no seu cu?" "Ah, não, Wystan", respondeu Faithfull. "Eu as guardo na minha xoxota."

Neste ponto, e já que a memória está falhando, volto-me para meu próprio registro fiel: especificamente, o capítulo "Uma viagem ao redor do grampeador de George Orwell" do meu livro Standing for Something: Life in the Awkward Squad.

A cafeteria da esquerda

Barbara (Castle) costumava reclamar comigo sobre o Tribune não ser duro o suficiente com o governo, convocando-me uma vez para a suíte Driberg Memorial no andar de cima do Gay Hussar, junto com Ian Aitken, Terence Lancaster, Julia Langdon e outros. Ela me instruiu a reformular o jornal e disse a Ian Aitken (então editor político do The Guardian) que ele tinha que começar a escrever para ele novamente, de graça. (Ele fez isso.)

O restaurante Gay Hussar na Greek Street era o reduto tradicional da esquerda do Tribune desde a década de 1950 — de acordo com Leo Abse, era mais barato do que o restaurante White Tower (que também tinha um sabor da Europa Central) e, de qualquer forma, Michael Foot e outros não tinham boas maneiras à mesa. Fui levado lá por Ian Aitken imediatamente antes de entrar para o Tribune. Ele me disse, sob uma pintura alegre de um cavalheiro genovês comendo ostras, que eu passaria "alguns anos na linha de frente do carvão antes de conseguir um lugar de primeira linha na Fleet Street". (Quatorze anos depois, isso ainda não tinha acontecido. Nunca aconteceu.)

Eu imediatamente me apaixonei pelo lugar e decidi que seria o local para nossos jantares regulares no Tribune e diversas reuniões de conspiração. Entre nossos convidados estava Mo Mowlam, então secretária da Irlanda do Norte, que começou a colocar o guardanapo na cabeça quando o destemido editor político do Tribune, Hugh MacPherson, começou a castigá-la por Blair e o Novo Trabalhismo e se recusou a removê-lo. Apesar dos avisos do gerente, John Wrobel, sobre as pimentas na mesa "serem para decoração e nada mais", Mo fez uma pulseira com algumas delas e então tocou seu olho. Ela então passou o resto da noite no banheiro feminino enxugando os olhos e afastando turistas americanos animados.

O falecido Lorde Vere Rothermere, lendário proprietário de jornal, veio jantar em 1997. Eu o convidei após uma longa correspondência resultante do ataque de Cassandra a ele no Tribune (ele havia de fato pago Martin Rowson por seu desenho animado retratando o barão da imprensa como um cachorro mijando em um proeminente jornalista do Mail, Dave Wilson, que estava bravamente tentando — finalmente com sucesso — anular o desreconhecimento do Sindicato Nacional de Jornalistas na Associated Newspapers). Quando perguntado por Rowson se ele já havia demitido algum de seus editores, ele respondeu: "Tenho o poder em teoria. Até certo ponto, Lord Copper', ao que Rowson, exasperado, respondeu: 'Mas você é Lord Copper!'

Como num passe de mágica, um colunista do Observer um pouco cansado e emocionado, Nick Cohen, cambaleou — sem ser convidado — para dentro da sala e foi até Rothermere e lhe deu um beijo na bochecha. (Isso foi antes de Cohen se tornar, como Tariq Ali, outro frequentador do Gay Hussar, descreve em sua autobiografia, "os testículos de Christopher Hitchens".)

Rothermere insistiu em levar Michael Foot de volta ao Ritz em seu Bentley para uma bebida noturna — mas não estendeu o convite a Ken Livingstone.

Minha amizade com Lord Rothermere floresceu. Ele me convidava para almoçar em sua suíte no último andar, acima dos escritórios do Daily Mail, onde o desafiei a permitir que os sindicatos voltassem a seus jornais. Descobrimos um interesse compartilhado no Tibete: eu tinha estado lá e Rothermere se declarou budista. Tendo finalmente concluído que Rothermere era outro Beaverbrook — isto é, generoso até a exaustão com jornalistas e jornais de esquerda em dificuldades — decidi pedir-lhe algum dinheiro para o Tribune. Infelizmente, no dia em que me preparei para marcar nosso próximo almoço, foi anunciado que ele havia morrido.

Ken Clarke veio jantar e declarou que estava surpreso que Gordon Brown estivesse mantendo os planos de gastos dos conservadores para os dois primeiros anos do governo trabalhista. "Todos nós pensamos que ele estava dizendo isso apenas para passar pela eleição", disse ele. "De qualquer forma, eu não teria me apegado a eles." Clarke não conseguia acreditar em quão briguentos todos nós éramos — em outras palavras, por que não nos apegaríamos a cada palavra dele em silêncio respeitoso? "Vocês passam o tempo todo discutindo uns com os outros?"

John Wrobel conta uma história maravilhosa envolvendo as calças do falecido Lord Longford. Com o passar dos anos, Frank, como era conhecido por todos nós, parou de usar sua faca e garfo e começou a usar suas mãos. Em uma ocasião, Wrobel ficou bastante preocupado, pois Frank conseguiu colocar suas batatas de volta em seu goulash tantas vezes que respingou em suas calças. Aproveitando a oportunidade enquanto Lord Longford cambaleava até a saída e entrava na Greek Street, o gerente do Gay Hussar se abaixou e começou a escovar as calças — momento em que elas cederam e caíram no chão. Um taxista que passava aumentou o caos da situação gritando para Wrobel: "Seu bastardo sujo!"

No dia em que li que Longford havia falecido, fui até o Gay Hussar e disse a Wrobel: "Calças a meio mastro! Notícias tristes. Lord Longford não está mais conosco!" Nesse momento, um homem idoso no canto do restaurante soltou um soluço involuntário. "Shhh", disse John. "Ele era o secretário particular de Frank e eles deveriam almoçar hoje."

O restaurante é merecidamente conhecido como a cafeteria da esquerda e, por alguns anos, foi meu segundo lar. É um testemunho vivo de uma verdade pouco conhecida que havia e ainda há, apenas, uma esquerda britânica que é tão rabelaisiana quanto rebelde. Os retratos desenhados à mão de muitos dos bons e maus da política e do jornalismo de esquerda britânicos enfeitam as paredes do Gay Hussar, cortesia de Martin Rowson. Suspeito que ele pode ter causado algum dano ao fígado ao longo dos anos ao desenhar esta coleção notável, mas aposto que valeu a pena.

In Memoriam

Essa coleção agora encontrou seu lar na National Portrait Gallery, tendo sido rastreada por mim em um depósito em uma unidade industrial em Bletchley. Outra história, claro. Mas um final mais feliz para o Gay Hussar, agora prosperando como Noble Rot e valendo a pena uma visita. A comida e o vinho são muito melhores, e de vez em quando as lágrimas brotam quando, pelo canto do olho, pareço vislumbrar alguns dos fantasmas de antigamente. Martin Rowson continua convencido de que pode ter sido um dos primeiros a ser atingido pela Covid enquanto pintava os trípticos das antigas e novas iterações deste venerável local nas paredes da sala de jantar do primeiro andar.

Perguntei a John Wrobel se ele compartilharia a receita de goulash húngaro, mas ele recusou. "O goulash, infelizmente, não pode ser recriado — nada de Gay Hussar, nada de goulash de Gay Hussar. De qualquer forma, nós quereríamos assassinar uma vaca jovem?"

No entanto, muitas luas atrás, ele foi gentil o suficiente para compartilhar comigo meu prato favorito, que é o prato de pato assado crocante, que ele provavelmente esqueceu de fazer.

Então, em memória do grande Gay Hussar, sua clientela inesquecível e insuperável, por sua influência duradoura na política de esquerda e nos fígados deste país, e aos leitores do Tribune passados ​​e presentes, aqui está, para seu deleite.

Pato assado crocante

Gressingham encerado e chamado de "pato seco", de preferência 1,8–2 kg

  • Corte as asas.
  • Esfregue sal marinho grosso no pato, coloque-o nas asas, peito para baixo.
  • Asse a 180 °C por 40 min, depois vire, permitindo que o suco do pato escorra para a assadeira e asse por mais 40 min. Retire do forno e deixe descansar.
  • Divida o pato em dois peitos e duas pernas.
  • Antes de servir, coloque as porções na grelha para aquecer, derreter o excesso de gordura e deixar a pele crocante.

Batatas ao estilo húngaro

  • Corte as batatas descascadas em quartos e cozinhe em caldo, sementes de cominho e carne de porco defumada, com sal e pimenta a gosto, até ficarem macias, mas não cozidas demais. Finalize misturando roux para engrossar.

Sirva com repolho roxo e molho de maçã, de acordo com a preferência individual.

cortesia de John Wrobel

Sobre o autor

Mark Seddon é um ex-assessor sênior de comunicações da ONU e redator de discursos. Ele também é ex-editor do Tribune.

28 de março de 2025

Planos perdidos

Sobre os Manic Street Preachers.

Owen Hatherley



Os Manic Street Preachers são os Milleritas do rock. Seu nome sempre implorou comparação com alguma forma de seita, mas sua trajetória de ambição selvagem e caos apocalíptico seguida por décadas de estabilidade autossustentável, assemelha-se mais de perto à banda comprometida de chiliasts liderada por William Miller nos EUA antes da guerra, que recrutou acólitos em antecipação a um esperado Milênio em 1844. A data passou sem incidentes — um evento que os seguidores descreveriam como "a Grande Decepção" — mas os adeptos continuaram a construir sua seita mesmo assim (ela existe até hoje, como os Adventistas do Sétimo Dia). Os Manics, como são universalmente conhecidos, foram formados em 1986, mas explodiram em South Wales em 1991 com seu terceiro single neo-punk, "Motown Junk", no qual eles prometeram "destruir o rock and roll". Em entrevistas, o grupo afirmou que gravaria um álbum de slogans situacionistas e mensagens marxistas que, por meio do improvável meio do Glam Metal, o gênero comercial do final dos anos 1980 liderado por nomes como Poison e Guns & Roses, venderia dezesseis milhões de cópias. Depois de mudar o mundo dessa forma, eles se separariam. Trinta e cinco anos depois, eles ainda estão aqui, e acabaram de lançar seu décimo quinto álbum, Critical Thinking, no qual eles examinam com desdém o mundo das mídias sociais e seus cultos e pânicos morais associados, e encontram consolo, como sempre, na arte e em sua própria ética peculiar de teimosia.

Nenhuma banda foi tão fixada no fracasso quanto os Manics, desde que sua declaração de missão inicial ficou muito aquém. Seu primeiro álbum, o inchado, frequentemente inaudível e estranhamente charmoso épico de Glam Metal Generation Terrorists (1992), não só falhou em incendiar o mundo — nos EUA, nem chegou às paradas. Mas seu impacto cultural foi enorme, embora nem sempre na música como tal. Risque a maioria dos intelectuais de esquerda nascidos na Grã-Bretanha entre 1975 e 1985 — particularmente, se não exclusivamente, aqueles de classe trabalhadora ou origens não metropolitanas — e você encontrará um fã adolescente do Manic Street Preachers. A maioria está em alguma forma de negação envergonhada sobre o fato — uma dinâmica nitidamente capturada na história em quadrinhos Phonogram de Kieron Gillen e Jamie McKelvie, uma fantasia sobre música pop, memória e crescimento. Uma personagem, desdenhando uma amiga que ainda ouve os Manics, descreve o grupo como seu "sutiã de treinamento, intelectualmente falando — apoiando no começo, mas rapidamente superado e trocado por algo mais sexy". Muitos neste grupo encontraram Warhol ou Debord ou Le Corbusier ou Ballard pela primeira vez por meio de uma citação do Manic Street Preachers, e nem sempre gostamos de ser lembrados desse fato.

Os Manics sempre cortejaram o constrangimento. Eles fazem música de mau gosto cheia de solos de guitarra e slogans cantados. Eles são uma combinação improvável do camp e do mortalmente sério. Eles sempre foram convencidos de que a música popular é de enorme importância intelectual e política. E eles usam suas influências na manga, literalmente - cada álbum tem uma citação na contracapa. Os Manics são o exemplo mais perfeito de música popular que cria, na frase de Mark Sinker, um conjunto de "Portais" de um mundo para outro. Como um fã dos Manics na década de 1990, o CD Glam Metal que você comprava e levava para casa continha um índice: uma lista de leitura. Os Generation Terrorists fizeram colagens de Plath, Rimbaud, Chuck D, Confucius, Valerie Solanas, Raoul Vaneigem e Philip Larkin, com uma citação na capa interna de cada música, mas desde então houve uma referência por álbum dos Manics. Essas estrelas da capa - em ordem, Primo Levi, Octave Mirbeau, Jackson Pollock, R.S. Thomas, Susan Sontag, René Descartes, Wyndham Lewis, George Bernard Shaw, T.S. Eliot, Albert Camus, Aleksandr Rodchenko, Joan Didion – uma espécie de checklist da Penguin Classics, são uma indicação de onde estavam as mentes do grupo em cada disco. Em Critical Thinking, a citação é de Anne Sexton: "Eu sou uma coleção de quases desmantelados". Como é frequentemente o caso, a banda está falando sobre si mesma e sobre as muitas vezes em que não atingiram seus objetivos autodefinidos.

Junto com seu papel como um "Portal", a outra analogia usada para entender os Manics sempre foi o "entrismo". No início dos anos 1980, jornalistas do trio de imprensa musical britânica NME, Melody Maker e Sounds aplicaram o termo trotskista a bandas que decidiram usar formas musicais comerciais para contrabandear slogans e análises anarquistas, socialistas ou dadaístas ou situacionistas para os rádios e TVs de milhões de pessoas. Grupos como Scritti Politti, ABC, Frankie Goes to Hollywood optaram por uma música de puro prazer - electro-disco ou soul sintético. Os Manics, garotos da classe trabalhadora socialmente móveis da cidade mineira de Blackwood, nos vales do sul de Gales, os primeiros em suas famílias a ir para a universidade, foram para a música assexuada, ostensivamente branca e adolescente que os jovens que não foram para a faculdade ouviam em lugares como o deles: o que na América seria apelidado de "heartland rock". Eles também optaram por uma divisão estrita de trabalho, na qual Nicky Wire e Richey James (nomes fictícios de Nick Jones e Richard Edwards), de olhos de corça e estampa de leopardo, criariam letras, slogans, capas e estilos, enquanto o pequeno baterista Sean Moore e o cantor James Dean Bradfield (que na verdade é seu nome verdadeiro) criariam telas apropriadamente vastas e antológicas para as ideias.

O artifício por trás disso era audivelmente distorcido. Ouça as primeiras demos do Manics do final dos anos 1980, antes que o plano mestre fosse elaborado, e você ouvirá um indie rock enigmático, típico da época, apaixonado por The Smiths e "jangle-pop". Após o plano mestre, Moore e Bradfield tiveram que se forçar a imitar os solos machistas, bombásticos e lamentosos e o som de bateria estrondoso que era produzido a grande custo por músicos superqualificados em luxuosos estúdios americanos. Eles foram prejudicados em vez de ajudados nisso pelas letras de James/Wire, que eram uma salada de palavras hipererudita e cheia de referências, inadequada talvez para música de qualquer tipo, exceto algum tipo de sprechgesang modernista germânico. Havia uma balada de rock convincente em Generation Terrorists, a maravilhosa "Motorcycle Emptiness", mas ela exemplifica o enigma. O refrão de "Paradise City", o maior sucesso do Guns & Roses, o grupo de Glam Metal que o plano mestre do Manics estava empenhado em emular, diz "leve-me para a cidade paradisíaca/onde a grama é verde e as garotas são bonitas"; sua tradução para "Motorcycle Emptiness" incluía as palavras "itemise", "servo", "ortodoxo", "feudal" e "falsificado". O assunto da música não era ir a um ótimo lugar e se divertir, mas a incapacidade da cultura popular de fornecer um bálsamo duradouro para as feridas da classe e do capital.

Tirando talvez o breve momento de sucesso em massa na segunda metade da década de 1990, quando eles conseguiram surfar, por um tempo, na onda do Oasis, muito poucos fãs do Manic Street Preachers se interessaram por outras músicas que soassem como o Manic Street Preachers. Eles geralmente atraíam pessoas que normalmente nunca ouviriam esse tipo de coisa: nas casas dos fãs mais dedicados do Manics, seus álbuns dividem espaço nas prateleiras com a Magazine ou Momus, não com o Motley Crue ou o Metallica. E em vez de serem universais como pretendido, o grupo era profundamente local, especificamente galês. Não é por acaso que a melhor escrita sobre o Manics veio de pessoas que, como o grupo, cresceram nos Vales do Sul de Gales, como Rhian E. Jones (em sua contribuição para a antologia Triptych) ou Simon Price (em seu livro Everything).

Por causa dessa lacuna entre intenção e recepção, o fã adolescente do Manics frequentemente tinha que ouvir com uma certa dose de indulgência. Às vezes, isso era doloroso. Lembro-me de uma noite no Southampton Guildhall no outono de 1996, durante a turnê do disco de sucesso comercial Everything Must Go, dos Manics, tentando me convencer de que os homens sisudos e imóveis em roupas esportivas na minha frente eram os jovens deuses glamourosos, às vezes sem camisa e cobertos de delineador que eu tinha visto nos vídeos de sequências de slogans como "You Love Us" ou "Faster". Mas isso também significava que quando os Manics criavam algo que você sabia que era bom, sem ter que se convencer — o já mencionado "Motorcycle Emptiness", "A Design for Life" (1996), um hino ambíguo de orgulho de classe, ou "If You Tolerate This Then Your Children Will Be Next" (1998), uma elegia para os membros galeses da Brigada Internacional — aliviar a vergonha era uma experiência exaltante.

Ironicamente, o único álbum canônico do Manics que pode ser ouvido sem constrangimento foi uma reação à possibilidade de sucesso. Quando, em 1993, eles realmente se viram apoiando o maior grupo de Glam Metal dos anos 1980, Bon Jovi, em uma turnê em estádios, os Manics ficaram desanimados com a experiência e criaram um segundo plano mestre muito mais estranho. Richey Edwards, o mais erudito e clinicamente deprimido desse quarteto culto e compulsivamente melancólico, comandou o grupo para um novo estilo que substituiu o Glam por uma estetização estranha da Guerra Fria recém-terminada, vestindo-se com uniformes soviéticos descartados e complementando seu delineador com tinta facial do Apocalypse Now. O álbum que saiu disso foi surpreendente, um raio do nada.

The Holy Bible (1994) foi um protesto notavelmente coerente e pensativo, embora violento e irracional, contra o "fim da história" que havia sido declarado alguns anos antes — o deles foi o 1994 de Srebrenica e Ruanda, não de Fukuyama ou Anthony Giddens. Musicalmente, embora dificilmente vanguardista, The Holy Bible tinha uma angularidade pós-punk recém-adquirida e um desdém pelo mercado americano. Os assuntos eram políticos ("Revol", uma canção bizarra especulando sobre a vida sexual de líderes soviéticos), históricos (duas canções sobre o Holocausto, extremamente mal aconselhadas na teoria, mas surpreendentemente diplomáticas na prática) ou diziam respeito a diferentes formas de colapso pessoal, contadas na primeira pessoa, como nas afirmações staccato e autodestrutivas de "Faster", ou ventriloquizadas por meio de narradoras femininas, como a trabalhadora sexual depressiva de "Yes" e a adolescente anoréxica do excepcionalmente perturbador "4st 7lb".

Essas músicas afirmaram o autocontrole físico e intelectual ao ponto de psicose, como um meio de blindar o eu contra um mundo exterior aterrorizante e repugnante. The Holy Bible é impressionante não apenas pelas letras punitivamente moralistas e, especialmente, surreais de Jones e, principalmente, Edwards, mas pelo fato de Bradfield e Moore conseguirem encaixá-las em hinos de rock, de certa forma. O resultado ainda pode arrepiar, como quando as palavras brutais e implacáveis da canção misantrópica e cheia de nojo Of Walking Abortion, ou Archives of Pain, um hino que inverte a ideia de Foucault em homenagem à guilhotina, são gritadas como coros de rock de estádio. Nessas músicas, Bradfield não cantava tanto quanto "latia fonemas", como Tom Ewing disse sobre a impressionante Faster. Bradfield conseguiu transformar a falta de musicalidade de seus dois letristas em uma virtude, e "Eu sou um arquiteto; me chamam de açougueiro" se tornou minha linha de abertura favorita de um single de rock.

Foi uma performance incrível, sem nenhuma semelhança aparente com o que os Manics tinham originalmente pretendido fazer – isso não estava vendendo dezesseis milhões de cópias em nenhuma vida – mas não houve fracasso, agora. Os Manics tinham se proposto, para citar uma entrevista de Ballard amostrada no meio do álbum, a ‘esfregar o rosto humano em seu próprio vômito e então forçá-lo a se olhar no espelho’, e foi isso que eles fizeram. Ainda não há nada no rock como isso, e era praticamente impossível de acompanhar.

Essa impressão só foi reforçada pelo desaparecimento de Edwards, um suposto suicídio, na Ponte Severn em fevereiro de 1995. Os três membros restantes se reagruparam e lançaram Everything Must Go (1996) e This is My Truth Tell Me Yours (1998), ambos grandes sucessos comerciais, pelo menos na Grã-Bretanha (o grupo nunca iria "quebrar a América"). Essas tentativas de uma espécie de Britpop de estádio serviram alternadamente como uma subversão sutil do triunfalismo do Novo Trabalhismo, com invocações orgulhosas de Bevan e Scargill, ou como uma simples rendição. O grupo tinha, finalmente, vendido muitos discos. Grande parte do dinheiro que arrecadaram foi gasto em uma turnê pela Cuba bloqueada. Em Know Your Enemy (2000), os Manics começaram a tornar sua política mais explícita - havia músicas sobre Paul Robeson e Elian Gonzalez, e uma bandeira cubana na capa do single número 1 "The Masses against the Classes". Rejeitando o estilo britpop com o qual o grupo havia flertado brevemente na turnê com o Oasis, Nicky Wire começou a usar vestidos e maquiagem novamente.

Infelizmente, os resultados musicais desse esforço renovado de entrada foram terríveis. Com qualquer obsessão adolescente, você geralmente pode datar o momento exato em que o feitiço é quebrado, e para mim, foi com Know Your Enemy. Ao entrar na idade adulta, eu não conseguia mais fingir que letras dolorosamente desajeitadas (como "My Guernica", em que Jones parece se comparar a Picasso) e o rock ruim eram de alguma forma um experimento conceitual situacionista - embora, em retrospecto, eu possa ter reservado alguma afeição pelo canto stalinista "Freedom of Speech Won't Feed My Children" (inspirado por críticas da imprensa à turnê cubana e um aperto de mão com Fidel). Nos anos 2000, alguém poderia ter admirado a maneira como o grupo manteve um comunismo agressivo no momento em que o realismo capitalista realmente varreu tudo diante dele, durante uma das décadas mais cultural e politicamente estéreis do século passado, mas isso não significava que você tinha que se forçar a ouvi-los. Então eu perdi muito do que os Manics fizeram naquela década – um álbum de synthpop intermitentemente atraente, Lifeblood (2004), e Send Away the Tigers (2007), uma série de autoparódias corajosas de tributos a si mesmos que aparentemente é uma das "favoritas dos fãs". O grupo parecia ter se estabelecido em tudo o que eles odiavam – nem um grande sucesso nem um grande fracasso, mas uma banda de rock mediana, de meio de tabela e de meia-idade. Não havia sentido em resenhas dizendo ao grupo o quão terrível era seu destino – como as letras desanimadas de Jones deixaram claro, eles sabiam muito bem.

E então, pela segunda vez, eles fizeram algo completamente notável e completamente inesperado. Journal for Plague Lovers (2009) foi baseado em um caderno de letras que Richey Edwards deu ao grupo alguns meses antes de seu desaparecimento; alguns dos esboços ali contidos encontraram seu caminho em faixas que foram demonstradas enquanto ele ainda estava na banda, como o breve tributo ao fotógrafo de guerra "Kevin Carter", ou o pulverizador e nietzschiano "Judge Yrself". Mas a maioria foi deixada de lado por ser simplesmente muito estranha, muito impossível de cantar até mesmo para Bradfield. No final dos anos 2000, o grupo sentou-se com as "músicas" do caderno e começou a escrever músicas de verdade em torno delas. Para criar um clima severo e depressivo de meados dos anos 1990, Steve Albini foi contratado para produzir, e a pintora Jenny Saville, cuja poderosamente física "Strategy: South Face/Front Face/North Face" adornava The Holy Bible, contribuiu com a arte: "Stare", uma pintura de 2005 de um jovem ensanguentado com uma semelhança passageira com Edwards. Journal poderia ter sido um trabalho terrível de nostalgia e autoexploração. Foi, de fato, o segundo álbum verdadeiramente ótimo do grupo.

Lembro-me bem do choque de quão bom era; o choque não foi, desta vez, por causa do niilismo e densidade das palavras ou da agressividade e angularidade da música: bem o oposto. As palavras de Journal — a maioria delas escritas no final de 1994, enquanto Edwards estava hospitalizado por depressão e automutilação — não são furiosas, mas sim intrigantes e confusas, mais Prynne do que Plath. "All is Vanity" imaginou uma cura DDR para a depressão, na qual a infelicidade seria aliviada pela eliminação da escolha do consumidor; "Marlon J.D." foi um instantâneo emocionante da dignidade sob ataque, esboçado de uma cena de Marlon Brando sendo chicoteado no rosto em Reflections in a Golden Eye; a dismorfia corporal está tão presente quanto em The Holy Bible, só que aqui refratada por meio de experimentos em cosméticos e genética. Frequentemente, as palavras eram estranhas e engraçadas: "Jackie Collins Existential Question Time" e "Me & Stephen Hawking" canalizaram a ansiedade assexual de Edwards para o humor em vez do horror, declarando com pesar que ele e o físico "perderam a revolução sexual/porque falhamos no físico". Musicalmente, o grupo estava obviamente se divertindo, criando tributos conhecedores, questionadores e autodesconstrutivos para seus contemporâneos dos anos 1990 (REM, Nirvana, Pixies). Eles soaram tão surpresos com o quão brilhantes eles poderiam ser se tentassem quanto o ouvinte.

Nem tudo era bom — nunca foi. Mesmo o melhor trabalho dos Manics produz pelo menos um momento de constrangimento agudo, geralmente devido à às vezes estimulante, mas frequentemente desastrosa falta de bom gosto ou bom senso do grupo; enquanto em The Holy Bible, uma música sobre o Holocausto é seguida por uma sobre o politicamente correto enlouquecido, em Journal for Plague Lovers, Bradfield tenta transformar a linha "esta beleza aqui mergulhando na neofobia" no refrão de uma balada de rock acústico sensível. Mas Journal era diferente de tudo o que estava sendo gravado nos anos 2000, um novo portal para algumas zonas excepcionalmente peculiares da mente. Desde então, aprendi a fazer um esforço — principalmente, se não sempre recompensado — para ouvir cada novo disco dos Manics. Houve vários álbuns, geralmente em intervalos de três anos, todos com cerca de 45 minutos de duração, como se para caber em um antigo tocador de discos ou, mais provavelmente, em um lado de uma fita cassete C90. Às vezes, são tentativas diretas de recapturar glórias passadas, como Postcards from a Young Man (2010) ou Resistance is Futile (2018), mas também há experimentos, como Rewind the Film (2013) e Futurology (2014), que se destacam como seus dois melhores discos depois de The Holy Bible e Journal for Plague Lovers. De alguma forma, na década de 2010, os Manics estavam fazendo música que eu poderia imaginar ouvir se não fosse dos Manics.

Cada um desses dois, gravados simultaneamente, tem um conceito claro, grosso modo, "casa" e "estrangeiro". Rewind the Film é um dos poucos discos de rock da década de 2010 que comunica a miséria gratuita da austeridade (o grupo é rico, é claro, mas você dificilmente poderia viver em South Wales, como eles, e não ver seus efeitos). A sensação de espaço e vazio do álbum, em sua maioria acústico, reflete uma paisagem destruída de parques de varejo, rodovias e cidades e vilas devastadas que antes fabricavam algo. Na música de encerramento, "30-Year War", essa sensação de desperdício é aprimorada em uma das poucas declarações políticas realmente coerentes do grupo, uma foto de bolso de uma "inverdade tão desconcertante", um projeto espetacularmente eficaz de infligir dor à maioria sonhado por uma elite etoniana desconcertantemente bem-sucedida. No Futurology, um Reino Unido miserável é contraposto a uma Europa Oriental Kraftwerkiana utópica e amplamente imaginária, em um conjunto de canções otimistas de fuga e abertura modernista. Houve até mesmo instrumentais, em homenagem a "Mayakovsky" e à metrópole ucraniana de carvão e aço de Donetsk, fundada no País de Gales, originalmente Hughesovka, em "Dreaming a City", inspirada no curta-metragem de Gwyn A. Williams sobre a cidade. Simon Reynolds, revisando o segundo álbum particularmente bonjoviesco do grupo, Gold Against the Soul (1993), afirmou cruelmente que os Manics "não tinham um osso musical em seus corpos". A crítica contém um grão de verdade - o grupo sempre foi musicalmente conservador, moldado por influências quase exclusivamente brancas, e de alguma forma conseguiu passar 35 anos sem gravar uma música que alguém pudesse dançar sem ironia - mas não foi justo mesmo assim. Mais obviamente, James Dean Bradfield sempre teve uma ótima voz, um tenor alternadamente furioso e ansioso.

Se há algo frustrante sobre os últimos Manics, é como eles pontuam uma obra cada vez mais impressionante com álbuns ocasionais de Glam Metal, como se o entrismo ainda pudesse funcionar, como se vender um monte de CDs e LPs para pessoas de 45 anos pudesse ser uma forma de, na frase de Jones (descrevendo Postcards from a Young Man), "comunicação de massa". Quando The Ultra Vivid Lament (2021) chegou ao número 1, o grupo aparentemente ficou encantado; os Manics estão entre as poucas pessoas que sobraram na Terra que se importam com o que está em primeiro lugar nas paradas de álbuns. Há também a repetitividade inevitável. Jones escreve três tipos diferentes de letras - aquelas sobre política, aquelas sobre arte (como no fantástico "International Blue", um audacioso tributo de rock de estádio a Yves Klein, o destaque do principalmente tedioso Resistance is Futile), e aquelas sobre tristeza, às vezes pessoais, às vezes mais generalizadas. Isso pode ficar chato. Nicky Wire tem escrito sobre ser "o garoto que já teve uma missão" - para citar "Prologue to History", uma ladainha hilária de ódio a si mesmo que é uma das grandes canções do grupo - por quase três décadas. Os modos de Jones são melhores quando fundidos - o que torna "If You Tolerate This Then Your Children Will Be Next" uma canção tão boa não é apenas o tributo à coragem do brigadeiro internacional galês que declarou "se eu posso atirar em coelhos, então eu posso atirar em fascistas" em seu caminho para a Espanha, mas também a honestidade de Jones sobre sua própria falta de coragem, o fato de que ele sabe que nunca será destemido ou lúcido o suficiente para fazer o mesmo.

Na rodada de entrevistas para Resistance is Futile em 2018, Bradfield fez alguns comentários levemente críticos (e francamente desconcertantes) ao Guardian sobre Jeremy Corbyn supostamente ter uma suspeita de indústria pesada. Previsivelmente, isso se tornou a manchete, e mais um golpe na campanha incessante do jornal para minar o ex-líder trabalhista. Parecia que a banda estava se alinhando como mais um grupo de homens ricos da Geração X que se recusaram, como socialistas, a apoiar a única chance em quarenta anos para até mesmo um governo social-democrata na Grã-Bretanha. Isso não era totalmente preciso (na época, Bradfield estava trabalhando em um álbum sobre a vida do herói de Corbyn, o cantor folk chileno Victor Jara, e Jones aparentemente considerou McDonnell não ser stalinista o suficiente). Mas os Manics sempre se sentiram muito mais confortáveis ​​elogiando Fidel Castro na era de Blair e Clinton do que se juntando às massas jovens em apoio a uma alternativa de esquerda plausível na Grã-Bretanha. No entanto, foi particularmente deprimente em 2021, durante o bloqueio, descobrir que os Manics haviam lançado um novo álbum com uma música chamada "Orwellian" sobre "cultura do cancelamento".

The Ultra Vivid Lament foi, deixando essa música de lado, muito bom: um experimento interessante e às vezes bonito, uma tentativa inspirada no ABBA de escrever para teclados em vez de guitarras. Sua primeira música, "Still Snowing in Sapporo", era um relato comovente da primeira turnê japonesa do grupo no início dos anos 1990, e da confiança que esses jovens bonitos levaram consigo para lá. Jones escreveu muitas letras como essa desde 1996, mas aqui elas são elevadas ao sublime pelo arranjo crescente e cristalino. Critical Thinking é uma proposta mais pontiaguda e desorganizada. Sua primeira faixa e título é uma das várias cantadas por Jones em álbuns recentes – seu gemido nasal, fortemente acentuado por Valleys, tornou-se um contraponto adstringente ao muito mais habilidoso Bradfield – e é um discurso de clichês de "pensamento positivo", aparentemente colhidos de um pergaminho de ódio nas redes sociais: "viva sua melhor vida!", ele estala, sobre um chocalho pós-punk skanking. "Fale a verdade ao poder!", ele grita; "Experiência vivida!". Perto do final da música, ele produz a frase mais assustadora da internet de todas: "Síndrome do Impostor!" e grita "Foda-se!"

‘Síndrome do impostor’ é algo que os Manics nunca sofreram, com sua disposição despreocupada de exibir suas estantes de livros – ninguém nunca pareceu tão orgulhoso de seu 2:2 em Política pela Universidade de Swansea quanto Nicky Wire. Seu horror à ideia de que pessoas da classe trabalhadora possam sofrer de uma vergonha tão afetada é um horror muito Manics, tão estranho à sua confiança refrescantemente descarada, embora ocasionalmente injustificada, em seus próprios intelectos e habilidades. Após esta faixa-título altamente divertida, Critical Thinking se acomoda em um groove típico do final dos Manics, agradável, mas ligeiramente inconsequente. ‘Decline and Fall’ e ‘Out of Time Revival’ são krautrock de estádio do tipo que encheu o Futurology, e várias músicas são bastante assombrosas, ecoando o indie rock de meados dos anos 1980, próximo ao início do REM ou The Smiths, como se o grande plano mestre do Glam Metal nunca tivesse intervindo. Uma delas, "Dear Stephen", implora ao herói indie de meados dos anos 1980 Morrissey, agora um defensor vociferante do grupamento de extrema direita For Britain, para "voltar para nós", abandonando o "ódio" que ele abertamente defendeu ultimamente. Isso é inesperadamente indulgente para os Manics, mas é uma peça com as muitas músicas em The Ultra Vivid Lament e Critical Thinking que preocupam as mídias sociais, empresas de tecnologia e a obsessão com a linguagem correta por parte dos jovens. Isso pode ser exasperante - olhando para o mundo em 2025, não há realmente nada que esses três possam ficar mais bravos do que o policiamento do discurso online? O grupo que encontrou o fascismo à espreita em cada esquina no improvável ano de 1994 lançou um álbum em um momento em que a direita radical está ressurgindo em todos os lugares, e suas músicas são sobre tristeza pessoal, discurso e por que a arte abstrata é melhor do que a arte figurativa.

A recusa da polidez em todas as suas formas sempre fez parte do repertório dos Manics, como ouvido na famosa tirada antipoliticamente correta de The Holy Bible, "PCP", mas não parece ser — diferentemente da angústia de alguns de seus contemporâneos — uma reclamação contra referências da esquerda online como direitos trans ou anti-imperialismo. Isso seria bizarro, dado que Jones, frequentemente vestido de sobrecasaca, escreveu várias músicas sobre dismorfia de gênero, e dadas as muitas declarações de ódio ao Império Britânico no volumoso corpus da banda; o grupo que citou Chuck D em Generation Terrorists e Solomon Northup na capa de "Faster" parece improvável de ficar chateado com a Critical Race Theory. Suspeito que seja motivado por outra coisa: medo, ou um registro do medo de outra pessoa, e um medo bastante paternal — os filhos do grupo agora são todos jovens adultos. Jeremy Deller, que já desenhou camisetas para os Manics, e cuja exposição de 1999 The Uses of Literacy compreendia obras de arte feitas por fãs dos Manics, certa vez entrevistou um grupo de alunos do ensino médio sobre por que eles não conseguiam imaginar algo como a cultura rave acontecendo hoje em dia. Porque as pessoas estariam filmando você, eles responderam. Você seria submetido ao escrutínio público e, muito provavelmente, ao ridículo público. Os Manics, no entanto, são pessoas que costumavam usar vestidos e camisetas da Kylie Minogue em uma cidade de carvão de Valleys, e aprenderam no processo uma das lições mais importantes da música pop, conforme transmitida por Adam Ant: "o ridículo não é nada para se ter medo". A faixa-título de Critical Thinking afirma algo semelhante: "Não quero ser admirado. Não exijo respeito".

No final do gibi Phonogram de McKelvie e Gillen, outra antiga fã adolescente dos Manics, injustiçada por fãs adolescentes (homens) dos Manics e agora vivendo como uma dona de casa suburbana em negação de seu próprio passado, alcança algum tipo de reaproximação consigo mesma quando ouve "Motorcycle Emptiness" no rádio. Ela aceita sua existência diminuída e sorri para si mesma enquanto Bradfield canta sobre "a vida vendida por pouco, para sempre". A questão da derrota, tanto em um nível pessoal, com o rápido fracasso do plano mestre do grupo, quanto no nível mais importante da guerra de trinta — agora quarenta — anos travada em sua classe, está no cerne do que torna os Manics tão interessantes, ainda. Você aceita e segue em frente? Você bate sua cabeça continuamente contra a mesma parede? Você cria um meio de autopreservação, para se manter dentro dela? Talvez um primeiro passo seja se recusar a ter vergonha da inteligência, não ter vergonha da comunicação de massa e não ter vergonha do que fez de você quem você é. Os Manics são úteis em todos esses esforços. Então, vou começar: meu nome é Owen Hatherley, e eu não era apenas um fã adolescente dos Manics, eu sou um fã dos Manics.

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