No ano passado, o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha detalhou as diretrizes para uma política externa “feminista”, focada em defender mulheres marginalizadas. Hoje, em Gaza, esse mesmo ministério fornece armamento para a guerra mais mortal para mulheres e meninas deste século.
Magdalena Berger
A ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, falando na 18ª Cúpula Econômica do Süddeutsche Zeitung em Berlim, Alemanha, em 11 de novembro de 2024. (Bernd von Jutrczenka / picture alliance via Getty Images) |
Tradução / O Ministério das Relações Exteriores da Alemanha anunciou pela primeira vez suas diretrizes para uma “política externa feminista” em março de 2023, mas o debate público sobre o significado dessa política nunca foi tão acalorado quanto no mês passado. Em 21 de outubro, a organização internacional de pesquisa responsável pelo desenvolvimento do conceito, o Centro de Política Externa Feminista (CFFP), juntamente com a ONG de direitos humanos HÁWAR.help, organizou uma coletiva de imprensa sobre o tópico “prevenção de feminicídios, legalização de abortos”. A ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, do Partido Verde, foi o centro das atenções na conferência, juntamente com outras mulheres de destaque do mundo da política e da cultura.
Esses tipos de demandas são o principal denominador comum de todos os movimentos feministas — e ainda assim a hostilidade estava se agitando tanto dentro quanto fora do evento, principalmente devido à presença de Baerbock. Alguém na plateia se levantou em protesto e gritou: “Parem o genocídio das mulheres palestinas!” e acabou sendo removido pela segurança. Fora da conferência, as mulheres protestaram com cartazes dizendo, por exemplo, “Os direitos das mulheres não devem significar privilégio branco”. As imagens e vídeos da conferência e os protestos associados desencadearam fortes respostas nas mídias sociais: as fundadoras do CFFP foram acusadas de “feminismo branco”, e feministas internacionais proeminentes renunciaram ao conselho consultivo da organização.
Este debate trouxe à tona uma questão que vem fervendo há algum tempo: embora o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha afirme em suas diretrizes uma política externa feminista “focada nos direitos, representação e recursos de mulheres e grupos marginalizados”, na prática ele enfraquece exatamente esses direitos. Na prática, a política externa feminista visa simplesmente dar ao governo alemão um verniz progressista. O fato de que, em última análise, não há nada feminista na política de Baerbock fica perfeitamente claro em sua política em relação a Gaza.
Baerbock não é uma militante feminista
Afundadora do CFFP, Kristina Lunz, tentou justificar a participação da ministra das Relações Exteriores na coletiva de imprensa para o jornal liberal de esquerda taz enfatizando que Baerbock “é uma das poucas políticas que atualmente defendem o aborto”. De fato, Baerbock faz campanha há muito tempo contra a criminalização do aborto. O fato de o aborto ainda ser tecnicamente uma infração criminal na Alemanha está “completamente fora de sintonia com os tempos atuais”, disse a principal política dos verdes no meio do ano. É verdade que Baerbock tem um perfil claro e reivindicações legítimas de credenciais feministas nesta questão. Mas ela só pode ser considerada uma feminista de maneira ampla se você escolher ignorar completamente suas ações em seu próprio ministério.
Depois dos Estados Unidos, a Alemanha é o fornecedor de armas mais importante de Israel. Entre agosto e outubro de 2024, a Alemanha aprovou mais de € 94 milhões em envios de armas para Israel. O apoio quase incondicional da ministra das Relações Exteriores a Israel, mesmo quando o exército israelense ataca escolas e outras infraestruturas civis, ficou claro quando ela falsamente alegou no mês passado que “locais civis poderiam perder seu status de proteção [sob a lei internacional] se terroristas tirasse proveito disso”.
As palavras de Baerbock estão completamente em desacordo com a realidade em Gaza e no Líbano. Um relatório da ONU divulgado há apenas algumas semanas declarou que pode levar 350 anos para reconstruir Gaza se a faixa costeira permanecer sob bloqueio. Em Gaza, mais de meio milhão de mulheres são afetadas pela insegurança alimentar, e 175.000 estão expostas a riscos de saúde fatais. Em nenhum outro conflito nas últimas duas décadas tantas mulheres e meninas foram mortas em apenas um ano quanto em Gaza. Se esses fatos não forem claros o suficiente, até mesmo o Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR) recentemente começou a tomar medidas legais contra os envios de armas da Alemanha para Israel.
Em 2023, a coalizão governamental de “centro-esquerda” da Alemanha estabeleceu um recorde de exportação de armas, que pode ser superado novamente este ano. Além de Israel, essas armas estão sendo enviadas para países como Arábia Saudita, Catar e Turquia, mostrando que a retórica sobre “a luta contra o islamismo” em nome da proteção dos direitos das mulheres não precisa ser levada muito a sério se e quando perturbar os interesses geopolíticos e financeiros da Alemanha. As armas enviadas para a Turquia também estão sendo usadas, entre outras coisas, para esmagar o movimento de libertação curdo e, portanto, a revolução das mulheres no nordeste da Síria. Ironicamente, a política externa alemã provavelmente nunca foi tão antifeminista quanto agora, mesmo que tenha escrito suas diretrizes feministas.
As feministas alemãs devem resistir à política desse governo “feminista” em todas as oportunidades. Como uma organização independente, o CFFP tentou fazer isso timidamente. Elas se manifestaram a favor de um cessar-fogo em Gaza logo no início e disseram (provavelmente também em resposta ao protesto na coletiva de imprensa) que a Alemanha deve parar de exportar armas para Israel. O problema é: que credibilidade tem uma organização que continua dividindo o palco com a ministra das Relações Exteriores? Consciente ou inconscientemente, o CFFP faz pouco mais do que garantir que políticos como Baerbock possam continuar a se revestir de um verniz feminista superficial.
Críticas da esquerda
Feministas de esquerda têm formulado críticas à política externa feminista do governo desde que o conceito entrou no discurso político alemão. A socióloga política Rosa Burç explicou que a política externa feminista corre o risco de “criar um novo espaço para legitimar a política externa intervencionista”. A escritora feminista Hêlîn Dirik escreveu que “um Estado capitalista e imperialista não desafiará as condições que levam mulheres e pessoas queer em todo o mundo à pobreza, as explora, as sujeita à violência e as marginaliza”. Conclui-se que não importa se a política externa alemã se autodenomina feminista. Em última análise, os interesses da política externa da Alemanha são interesses capitalistas, que se baseiam na exploração dos oprimidos, que geralmente são mulheres e meninas.
Essa autoimagem torna impossível ser receptivo a críticas que apontem as dimensões coloniais da política externa feminista. Isso significaria levar em conta as mudanças econômicas e sociais necessárias para alcançar a libertação das mulheres. Fazer isso significaria, em princípio, dissolver ou pelo menos reestruturar o propósito do CFFP tão drasticamente que ele não seria mais visto como adequado para um assento na mesa do poder. O lugar do poder seria visto corretamente como o dos oponentes políticos de uma visão genuína e universalmente feminista para o mundo.
No entanto, as ações contraditórias de organizações como o CFFP tornaram-se tão claras que às vezes as críticas são feitas até mesmo por pessoas com laços institucionais com organizações internacionais ou partidos políticos tradicionais. Uma delas é Kavita Nandini Ramdas, ex-presidente do Fundo Global para Mulheres. Ao lado de Sanam Naraghi Anderlini, diretora da Rede Internacional de Ação da Sociedade Civil (ICAN), ela anunciou publicamente que estava deixando o conselho consultivo do CFFP, em parte porque havia sido silenciada devido às suas posições sobre Gaza. O conselho foi dissolvido desde então.
No entanto, o foco principal de sua declaração não foi a crítica à política externa feminista em si, mas a crítica à ausência de Gaza nessas discussões. Em uma declaração (já excluída), o CFFP negou ter restringido os membros de seu conselho consultivo em expressar opiniões sobre Gaza. Poucos dias depois, uma carta aberta também foi publicada por ex-funcionários, que, entre outras coisas, acusam a organização de discriminar sistematicamente funcionárias marginalizadas, especialmente quando elas defendem os direitos das mulheres palestinas.
Nos dias seguintes ao evento, o CFFP primeiro descartou as críticas como uma “besteirada” misógina. Mas eles não são os únicos que estão errados: sempre que as ações das mulheres desencadeiam o discurso na internet, pode-se sempre esperar que atraiam respostas genuinamente sexistas, e os argumentos resultantes são regularmente descartados de forma misógina. Queixas interpessoais e sociais abrem caminho para discussões online, e críticas legítimas são misturadas com ataques desproporcionais e, ocasionalmente, desinformação. Nem sempre é possível separar um do outro.
No entanto, tentativas de deixar de lado o caráter político da crítica fazem parte do clássico baluarte liberal-feminista contra críticas da esquerda. Em nome da paz e da manutenção das aparências, as feministas são convocadas a se conterem em criticar “umas às outras”. No final de outubro, parecia que o CFFP poderia realmente estar aberto a algumas críticas, declarando que pretendia abordar os questionamentos legítimss “em meio ao ódio e às mentiras”, mas a postagem foi excluída logo depois, e o site do CFFP foi retirado do ar para “manutenção”. É improvável que vejamos um debate político honesto que vá além de abordar queixas pessoais e baseadas em identidade. Talvez o melhor que possamos esperar é que da próxima vez que falarmos sobre “política externa feminista”, uma mulher palestina tenha permissão para dividir o palco com Baerbock.
Colaborador
Esses tipos de demandas são o principal denominador comum de todos os movimentos feministas — e ainda assim a hostilidade estava se agitando tanto dentro quanto fora do evento, principalmente devido à presença de Baerbock. Alguém na plateia se levantou em protesto e gritou: “Parem o genocídio das mulheres palestinas!” e acabou sendo removido pela segurança. Fora da conferência, as mulheres protestaram com cartazes dizendo, por exemplo, “Os direitos das mulheres não devem significar privilégio branco”. As imagens e vídeos da conferência e os protestos associados desencadearam fortes respostas nas mídias sociais: as fundadoras do CFFP foram acusadas de “feminismo branco”, e feministas internacionais proeminentes renunciaram ao conselho consultivo da organização.
Este debate trouxe à tona uma questão que vem fervendo há algum tempo: embora o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha afirme em suas diretrizes uma política externa feminista “focada nos direitos, representação e recursos de mulheres e grupos marginalizados”, na prática ele enfraquece exatamente esses direitos. Na prática, a política externa feminista visa simplesmente dar ao governo alemão um verniz progressista. O fato de que, em última análise, não há nada feminista na política de Baerbock fica perfeitamente claro em sua política em relação a Gaza.
Baerbock não é uma militante feminista
Afundadora do CFFP, Kristina Lunz, tentou justificar a participação da ministra das Relações Exteriores na coletiva de imprensa para o jornal liberal de esquerda taz enfatizando que Baerbock “é uma das poucas políticas que atualmente defendem o aborto”. De fato, Baerbock faz campanha há muito tempo contra a criminalização do aborto. O fato de o aborto ainda ser tecnicamente uma infração criminal na Alemanha está “completamente fora de sintonia com os tempos atuais”, disse a principal política dos verdes no meio do ano. É verdade que Baerbock tem um perfil claro e reivindicações legítimas de credenciais feministas nesta questão. Mas ela só pode ser considerada uma feminista de maneira ampla se você escolher ignorar completamente suas ações em seu próprio ministério.
Depois dos Estados Unidos, a Alemanha é o fornecedor de armas mais importante de Israel. Entre agosto e outubro de 2024, a Alemanha aprovou mais de € 94 milhões em envios de armas para Israel. O apoio quase incondicional da ministra das Relações Exteriores a Israel, mesmo quando o exército israelense ataca escolas e outras infraestruturas civis, ficou claro quando ela falsamente alegou no mês passado que “locais civis poderiam perder seu status de proteção [sob a lei internacional] se terroristas tirasse proveito disso”.
As palavras de Baerbock estão completamente em desacordo com a realidade em Gaza e no Líbano. Um relatório da ONU divulgado há apenas algumas semanas declarou que pode levar 350 anos para reconstruir Gaza se a faixa costeira permanecer sob bloqueio. Em Gaza, mais de meio milhão de mulheres são afetadas pela insegurança alimentar, e 175.000 estão expostas a riscos de saúde fatais. Em nenhum outro conflito nas últimas duas décadas tantas mulheres e meninas foram mortas em apenas um ano quanto em Gaza. Se esses fatos não forem claros o suficiente, até mesmo o Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR) recentemente começou a tomar medidas legais contra os envios de armas da Alemanha para Israel.
Em 2023, a coalizão governamental de “centro-esquerda” da Alemanha estabeleceu um recorde de exportação de armas, que pode ser superado novamente este ano. Além de Israel, essas armas estão sendo enviadas para países como Arábia Saudita, Catar e Turquia, mostrando que a retórica sobre “a luta contra o islamismo” em nome da proteção dos direitos das mulheres não precisa ser levada muito a sério se e quando perturbar os interesses geopolíticos e financeiros da Alemanha. As armas enviadas para a Turquia também estão sendo usadas, entre outras coisas, para esmagar o movimento de libertação curdo e, portanto, a revolução das mulheres no nordeste da Síria. Ironicamente, a política externa alemã provavelmente nunca foi tão antifeminista quanto agora, mesmo que tenha escrito suas diretrizes feministas.
As feministas alemãs devem resistir à política desse governo “feminista” em todas as oportunidades. Como uma organização independente, o CFFP tentou fazer isso timidamente. Elas se manifestaram a favor de um cessar-fogo em Gaza logo no início e disseram (provavelmente também em resposta ao protesto na coletiva de imprensa) que a Alemanha deve parar de exportar armas para Israel. O problema é: que credibilidade tem uma organização que continua dividindo o palco com a ministra das Relações Exteriores? Consciente ou inconscientemente, o CFFP faz pouco mais do que garantir que políticos como Baerbock possam continuar a se revestir de um verniz feminista superficial.
Críticas da esquerda
Feministas de esquerda têm formulado críticas à política externa feminista do governo desde que o conceito entrou no discurso político alemão. A socióloga política Rosa Burç explicou que a política externa feminista corre o risco de “criar um novo espaço para legitimar a política externa intervencionista”. A escritora feminista Hêlîn Dirik escreveu que “um Estado capitalista e imperialista não desafiará as condições que levam mulheres e pessoas queer em todo o mundo à pobreza, as explora, as sujeita à violência e as marginaliza”. Conclui-se que não importa se a política externa alemã se autodenomina feminista. Em última análise, os interesses da política externa da Alemanha são interesses capitalistas, que se baseiam na exploração dos oprimidos, que geralmente são mulheres e meninas.
Essa autoimagem torna impossível ser receptivo a críticas que apontem as dimensões coloniais da política externa feminista. Isso significaria levar em conta as mudanças econômicas e sociais necessárias para alcançar a libertação das mulheres. Fazer isso significaria, em princípio, dissolver ou pelo menos reestruturar o propósito do CFFP tão drasticamente que ele não seria mais visto como adequado para um assento na mesa do poder. O lugar do poder seria visto corretamente como o dos oponentes políticos de uma visão genuína e universalmente feminista para o mundo.
No entanto, as ações contraditórias de organizações como o CFFP tornaram-se tão claras que às vezes as críticas são feitas até mesmo por pessoas com laços institucionais com organizações internacionais ou partidos políticos tradicionais. Uma delas é Kavita Nandini Ramdas, ex-presidente do Fundo Global para Mulheres. Ao lado de Sanam Naraghi Anderlini, diretora da Rede Internacional de Ação da Sociedade Civil (ICAN), ela anunciou publicamente que estava deixando o conselho consultivo do CFFP, em parte porque havia sido silenciada devido às suas posições sobre Gaza. O conselho foi dissolvido desde então.
No entanto, o foco principal de sua declaração não foi a crítica à política externa feminista em si, mas a crítica à ausência de Gaza nessas discussões. Em uma declaração (já excluída), o CFFP negou ter restringido os membros de seu conselho consultivo em expressar opiniões sobre Gaza. Poucos dias depois, uma carta aberta também foi publicada por ex-funcionários, que, entre outras coisas, acusam a organização de discriminar sistematicamente funcionárias marginalizadas, especialmente quando elas defendem os direitos das mulheres palestinas.
Nos dias seguintes ao evento, o CFFP primeiro descartou as críticas como uma “besteirada” misógina. Mas eles não são os únicos que estão errados: sempre que as ações das mulheres desencadeiam o discurso na internet, pode-se sempre esperar que atraiam respostas genuinamente sexistas, e os argumentos resultantes são regularmente descartados de forma misógina. Queixas interpessoais e sociais abrem caminho para discussões online, e críticas legítimas são misturadas com ataques desproporcionais e, ocasionalmente, desinformação. Nem sempre é possível separar um do outro.
No entanto, tentativas de deixar de lado o caráter político da crítica fazem parte do clássico baluarte liberal-feminista contra críticas da esquerda. Em nome da paz e da manutenção das aparências, as feministas são convocadas a se conterem em criticar “umas às outras”. No final de outubro, parecia que o CFFP poderia realmente estar aberto a algumas críticas, declarando que pretendia abordar os questionamentos legítimss “em meio ao ódio e às mentiras”, mas a postagem foi excluída logo depois, e o site do CFFP foi retirado do ar para “manutenção”. É improvável que vejamos um debate político honesto que vá além de abordar queixas pessoais e baseadas em identidade. Talvez o melhor que possamos esperar é que da próxima vez que falarmos sobre “política externa feminista”, uma mulher palestina tenha permissão para dividir o palco com Baerbock.
Colaborador
Magdalena Berger é editora assistente do Jacobin.de.
Julia Damphouse é historiadora do socialismo europeu. Ela é membro do conselho editorial das Obras Completas de Rosa Luxemburgo, em inglês.
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