11 de julho de 2022

Choque de impérios: uma conversa com Ho-Fung Hung

Hong Zhang e Ho-fung Hung



Tradução /A ascensão da "China Global" é resultado da globalização econômica nas últimas décadas, que foi sustentada por uma relação geralmente positiva entre a China e os Estados Unidos. Desde o momento decisivo da entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, as economias chinesa e norte-americana tornaram-se cada vez mais interdependentes. Ora, isso era motivo de costumeiro otimismo na gestão dos vários conflitos que surgiram entre os dois países. No entanto, essa convergência foi posta em causa na sequência dos anos tumultuados em que a administração Trump procurou corrigir o desequilíbrio comercial com a China, bem como devido à nova pandemia da Covid-19.

Em seu livro, Clash of Empires: from "Chimerica" to the "New Cold War" (Cambridge University Press, 2022), Ho-fung Hung oferece uma análise da mudança na relação EUA-China e uma crítica da economia política global. Desafiando os argumentos ideológicos, Hung afirma que a integração da China na economia global facilitada pelos Estados Unidos, ocorrida nas décadas de 1990 e 2000, foi impulsionada principalmente pelos seus próprios interesses corporativos, os quais procuravam se beneficiar do acesso ao mercado chinês e à mão-de-obra barata chineses.

Estes interesses acabaram por desaparecer quando foram prejudicados pelas políticas da China, desde o final da década de 2000, de promoção das indústrias nacionais. A integração da China na economia global alimentou um desenvolvimento desigual tanto na China como nos Estados Unidos, criando uma profunda interdependência estrutural entre as duas economias. À medida que ambas as economias capitalistas enfrentavam uma crise de superacumulação, uma rivalidade "interimperial" passou a prosperar na economia mundial e ela veio desafiar aquela interdependência.

Com a separação dos interesses econômicos, a rivalidade geopolítica entre os países também se tornou mais difícil de conciliar. Nesta visão, a fonte fundamental da "nova guerra fria" é a"competição intercapitalista" entre a China e os Estados Unidos - e não as diferenças ideológicas geralmente alegadas. Embora a abordagem marxista de Hung à política externa dos EUA seja susceptível de enfrentar resistência por parte daqueles que olham a questão por outras lentes analíticas, a sua dissecação da economia política global advém de um repensar radical sobre que tipo de ordem econômica global poderia ajudar a prevenir conflitos futuros.

Hong Zhang

O seu livro fornece insights excelentes sobre as mudanças nas relações entre os setores corporativos dos EUA e da China; você argumenta que eles estão subjacentes às mudanças nas relações políticas entre os dois estados. O que o motivou a desenvolver esta análise e que sabedoria recebida você procura desafiar?

Ho-fung Hung

Muitos relatos populares sobre a deterioração da relação entre os EUA e China atribuem-na às diferenças ideológicas entre os sistemas democráticos e autoritários. Estes relatos são justificações convenientes para as motivações e ações dos agentes políticos. Mas nós, como estudiosos, temos a responsabilidade de olhar mais profundamente para além deste relato, que é obviamente falho.

Se se trata realmente apenas do choque entre democracia e autoritarismo, porque é que a América democrática e a China autoritária mantiveram uma relação tão harmoniosa nas décadas de 1990 e 2000? Alguns diriam que Xi Jinping é muito mais ditatorial do que os seus antecessores Hu Jintao e Jiang Zemin e que essa diferença se tornou agora mais pronunciada. Mas isso é verdadeiro? Deng Xiaoping mobilizou o exército para atirar em cidadãos que protestavam e manteve o Partido Comunista Chinês no poder com tanques. No entanto, os Estados Unidos e o mundo supostamente democrático em geral não viam Deng como demasiado ditatorial para fazer negócios.

Ao longo da história, os países democráticos capitalistas nunca se esquivaram de fazer negócios e de se aliarem a ditadores. A diferença entre democracia e autoritarismo nunca atrapalha os negócios. Porque é que esta diferença subitamente passou a importar nas relações EUA-China? Algo mais profundo deve estar acontecendo. Minha pesquisa e o livro procuram uma resposta para essa pergunta. Para explorar os cenários plausíveis das relações EUA-China – mas também para ver o que pode ser feito para evitar que a deterioração dessa relação se torne uma catástrofe –, precisamos primeiro descobrir as forças subjacentes que levaram ao atual estado de coisas.

Hong Zhang

Você afirmou que o confronto entre os Estados Unidos e a China se dá entre dois “impérios” e por meio de uma “rivalidade interimperial”. Como você entende a natureza desses dois “impérios”? Dado que a China se mostrou um facilitador crítico da construção do império dos EUA, ao mesmo tempo que cresceu sob o sistema liderado pelos EUA, como a sua análise deixa claro, até onde pode a China chegar em seu desafio ao império dos EUA? Ou eles estão presos em uma relação simbiótica? A dissociação pode acontecer?

Ho-fung Hung

Como definimos no livro, “império” refere-se a qualquer estado com a ambição e capacidade de projetar o seu poder político e militar para além do seu espaço soberano. Os Estados Unidos, enquanto império estabelecido, são sobretudo um “império informal”, já que não tem colônias formais como tinham os antigos impérios britânico e francês. A China é um império júnior e informal em ascensão; os seus intelectuais oficiais têm sido cada vez mais claros na manifestação das suas ambições imperiais – usam obviamente a palavra “império” num sentido positivo.

A integração socioeconômica entre esses dois países, em princípio, não impede que a rivalidade interimperial possa acontecer, aumentar e chegar a uma situação desastrosa. Para isso, é útil uma comparação com a rivalidade Reino Unido-Alemanha no início do século XX. Em junho de 1914, um economista britânico fez um discurso na Royal Statistical Society, dizendo que todas as estatísticas econômicas sugeriam que os impérios britânico e alemão estavam interligados no comércio, no investimento e em tudo o mais (Crammond, 1914). Ele previu que o Reino Unido e a Alemanha manteriam esta relação recíproca e mutuamente benéfica; a Alemanha se manteria como um parceiro júnior e promissor, de tal modo que os dois países não se envolveriam num conflito.

Ora, todos sabemos o que aconteceu poucos meses depois. Na verdade, a integração entre o Reino Unido e a Alemanha naquela altura era muito mais profunda do que a integração EUA-China atual. As elites dominantes dos dois países casaram-se entre si. A família real do Império Britânico, a Casa de Windsor era meio alemã. A mãe do monarca do Império Alemão, Guilherme II, era britânica e era a filha mais velha da Rainha Vitória.

Assim, as classes dominantes dos dois países nas vésperas da Primeira Guerra Mundial estavam tão integradas, tal como se, por exemplo, um filho do [presidente dos EUA Joe] Biden ou do [ex-presidente Donald] Trump fosse casado com a filha de Xi Jinping. A Grã-Bretanha aparecia então como o destino e fonte mais importante das exportações e importações alemãs às vésperas da Grande Guerra. Mas esse nível de integração não impediu que os dois impérios entrassem em guerra. O peso esmagador dos imperativos da geopolítica e da acumulação de capital costuma ser simplesmente demasiado forte.

Mas há uma razão para otimismo. Em comparação com a Alemanha da virada do século XX, a China de hoje, embora cada vez mais militarizada e agressiva, é ainda muito menos militarista do que a Alemanha de então (e menos do que a Rússia de hoje, aliás). Ao contrário da Alemanha do século XIX e do início do XX, que esteve frequentemente em guerra, a China não mobilizou o seu exército para um conflito militar sério desde a guerra com o Vietnã, em 1979.

A última mobilização militar séria foi em 1989, quando o Exército de Libertação Popular foi utilizado para acabar com a agitação doméstica. Se a elite do Partido-Estado for racional, ela deverá ser muito cautelosa, procurando evitar qualquer conflito militar sério com os Estados Unidos. Isto torna-se ainda mais óbvio à medida que Pequim observa a aventura militar de Moscou na Ucrânia, a qual pode se transformar num desastre para a Rússia.

Portanto, mantenho-me otimista. Embora a rivalidade EUA-China esteja se deteriorando, há uma boa probabilidade de que possa ser canalizada para a concorrência em instituições governamentais globais, como a Organização Mundial da Saúde, a OMC, as Nações Unidas etc., em vez de um conflito militar direto.

Hong Zhang

Percebo que a sua abordagem trata de modo diferente os estados chinês e americano. Do lado chinês, você dá ao Partido-Estado uma autonomia significativa. Do lado dos EUA, contudo, você coloca a agência principal nos atores corporativos. A preferência agregada do setor empresarial, em última análise, determina a orientação da política externa dos EUA, de tal modo que as forças baseadas em considerações geopolíticas ou ideológicas são secundárias neste quadro. De certa forma, o seu retrato do Estado chinês é mais weberiano e o do Estado norte-americano é mais marxista. Por que tanta assimetria?

Ho-fung Hung

Sim. Em ambos esses estados há componentes que favorecem uma certa autonomia em relação às corporações; mas há também componentes que os tornam mais influenciáveis e mesmo capturáveis pelas corporações ou outros grupos sociais dominantes. Entretanto, a prevalência relativa desses dois componentes é diferente de um estado para o outro.

Theda Skocpol (1985), em sua introdução ao clássico Bringing the State Back In (um livro que trouxe a perspectiva weberiana do estado para as ciências sociais norte-americanas), ressalta que não foi por acaso que a abordagem weberiana centrada no estado se desenvolveu na Alemanha. Aí a mão forte do Estado centralizado prosperou na formação da nação, na política de guerra e no processo de desenvolvimento industrial da Alemanha desde a época de Bismarck.

Em contraste, uma visão do Estado mais centrada na sociedade - incluindo a abordagem marxista que enfatiza a classe e a abordagem pluralista (à la Robert Dahl) que enfatiza os grupos de interesse – tem sido dominante na academia do Reino Unido e dos EUA porque os sistemas políticos desses países permitem maior acesso aos interesses privados, fazendo com que os grupos sociais definam a política. O domínio da abordagem centrada na sociedade nos Estados Unidos e no Reino Unido leva os estudiosos a esquecer que certos componentes-chave do Estado são altamente autônomos e funcionam segundo uma lógica weberiana. O aparato de política externa é um desses componentes do Estado no caso dos Estados Unidos, segundo Skocpol.

As diferenças nos sistemas políticos dos EUA e da China assemelham-se às dos contextos EUA/Reino Unido-Alemanha. A análise da relação econômica e política EUA-China no livro Clash of Empires não é exatamente marxista, mas, mais precisamente, marxista-weberiana. Seguindo o imperativo weberiano de sustentar o poder e o prestígio globais dos EUA, a elite da política dos EUA começou a tratar a China como um rival geopolítico desde o fim da Guerra Fria no início da década de 1990.

Mas as outras secções do Estado que são fundamentais para a formação da política econômica – incluindo o Tesouro, o Conselho Econômico Nacional e o Congresso – estão mais abertas às influências das grandes corporações. Nas décadas de 1990 e 2000, as empresas norte-americanas influenciaram esses componentes do Estado para manter sob controle a tendência de confronto na política externa, presentes no establishment desse país. Só na década de 2010, quando os interesses empresariais e geopolíticos do Estado se alinharam a favor de uma postura de confronto em relação à China, é que a política dos Estados Unidos em relação à China se afastou completamente da convergência de interesses.

Em contraste, no sistema capitalista da China, o processo de elaboração da política econômica interna e externa é altamente centralizado no escalão superior da elite desse do Partido-Estado. O crescimento econômico e a rentabilidade das empresas estão entre as muitas considerações da elite do Partido-Estado na formulação de políticas, mas estas considerações estão todas subjugadas ao imperativo de manter e expandir o poder do Partido-Estado na China e no mundo. As corporações, por mais bem relacionadas politicamente que sejam, estão subordinadas ao Partido-Estado.

Nada é mais ilustrativo disto do que o desenvolvimento das grandes empresas tecnológicas da China. O Estado as cultivou e as ajudou a monopolizar o mercado chinês. Mas quando o Estado passou a vê-las como uma ameaça, começou a reprimi-las implacavelmente. A alavancagem autônoma das empresas sobre o Estado na China é simplesmente incomparável com o poder empresarial dos EUA face ao Estado deste último país. Esta característica da economia política chinesa, em que todos os imperativos estão subjugados à grande estratégia do Partido-Estado, é meticulosamente analisada em The Long Game (2021), de Rush Doshi. Mas só tive oportunidade de ler o livro depois de terminar The Clash of Empires; caso contrário, essa fonte teria sido incluída nas referências.

Hong Zhang

Embora a sua análise se tenha centrado nos interesses corporativos e noutras explicações estruturais, vê-se que você parece tentar evitar o determinismo estrutural, pois permite espaço para manobras políticas e contingências circunstanciais. Olhando para trás, para as últimas três décadas, você consegue imaginar uma história alternativa das relações EUA-China? Em retrospectiva, haveria melhores escolhas políticas que poderiam ter sido feitas?

Ho-fung Hung

Na minha opinião, a reversão, por parte do Presidente Bill Clinton, da política que ligava o acesso a baixas tarifas dos produtos chineses ao mercado dos EUA à situação dos direitos humanos na China em 1994 foi um erro. Não era inevitável. Tal como documentado no livro, a administração Clinton estava dividida sobre a questão, com o Departamento de Estado e muitos congressistas democratas querendo manter a ligação, enquanto o chefe do recém-criado Conselho Econômico Nacional, Robert Rubin, de Wall Street, estava empenhado em cortá-la.

Também está documentado no livro que as grandes corporações dos Estados Unidos naquela época ainda viam a China como um grande mercado. Quando o Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA) entrou em vigor em 1994, a globalização nesse momento consistia muito mais em transformar o NAFTA num acordo de comércio livre totalmente americano.

Foram as empresas norte-americanas mobilizadas por Pequim que pressionaram fortemente contra a desvinculação. E Pequim venceu. Suponhamos que essa ligação tivesse sido mantida ao longo da década de 1990. Nesse caso, poderia ter sido criada maior pressão para que Pequim adoptasse mudanças mais liberais, num momento em que havia uma elite de tendência mais liberal dentro do partido e Pequim se sentia mais vulnerável e mais aberto às influências externas. A abertura da China e, portanto, a terceirização das atividades econômicas norte-americanas para a China, teria sido mais gradual e o impacto da China sobre a classe trabalhadora americana teria sido moderado. Esse o caminho não foi aquele trilhado.

A recente Lei de Prevenção do Trabalho Forçado, conhecida também como Lei Uigur, proíbe importar todos os produtos fabricados na região de Xinjiang, a menos que os exportadores possam provar que não foi utilizado trabalho forçado. Ela vem a ser uma regressão ao princípio da política comercial de Clinton para a China em 1993 - a qual consistia em liberar o acesso dos produtos chineses ao mercado dos EUA sob a condição de que os direitos humanos fossem respeitados na China. Contudo, a criação de uma pressão significativa para mudar a direção da China não vai funcionar. O seu resultado mais provável será uma divisão acelerada da economia mundial em dois blocos concorrentes - um processo que muitas pessoas chamam de dissociação.

Hong Zhang

No livro você também expressa dúvidas sobre o argumento do “engajamento construtivo” apresentado pela administração Clinton quando decidiu não vincular o status de nação mais favorecida às condições de direitos humanos da China. Argumentou-se então que, ao integrar a China no sistema comercial global, isso poderia também levar à liberalização do sistema político da China. Ora, essa esperança revelou-se, evidentemente, falsa. Foi esta uma aspiração genuína ou antes uma cobertura para a política impulsionada pelos interesses empresariais?

Ho-fung Hung

A ideia de que a participação no sistema comercial global poderia levar automaticamente à liberalização política é talvez o pretexto mais falso no discurso político moderno. Ao longo da história do pós-guerra, muitas ditaduras prosperaram sob a participação do regime no comércio global. Do Chile de Pinochet à Arábia Saudita, o capitalismo de mercado nunca procurou corroer as bases dos sistemas autoritários, mas, ao contrário, ajudou quase sempre a sustentá-lo quando isso lhe interessava. O capitalismo de mercado é perfeitamente adaptável, se não mesmo bem favorável, ao autoritarismo.

A ideia de que o envolvimento econômico com a China poderia promover a liberalização política não é mais do que uma tentativa de encobrir a mudança de 180 graus. Essa mudança começou a ocorrer já na administração Clinton, em 1993-94, em sua política para a China, uma mudança que Clash of Empires detalha tal como já se mencionou aqui.. No primeiro ano de Clinton, a administração vinculou o acesso de baixos direitos aduaneiros de produtos chineses ao mercado dos EUA às condições de direitos humanos da China.

Depois de um intenso lobby empresarial, Clinton abandonou a política em 1994. Depois, a teoria sobre a relação causal entre o comércio livre e a liberalização política foi elaborada às pressas para justificar esta mudança drástica. A teoria pretende fazer com que a mudança pareça menos uma rendição à chantagem corporativa e mais uma política bem pensada para o bem do mundo.

Mais ironicamente, já vimos este tipo de argumento de “engajamento construtivo” antes, durante a Guerra Civil Americana. Muitos defensores do comércio livre e grandes empresas no Reino Unido simpatizavam com o Sul rebelde e queriam ter acesso contínuo ao algodão barato proveniente do trabalho escravo local. Os seus representantes intelectuais da época, incluindo a revista The Economist e muitos pensadores liberais, conceberam o argumento de que o Reino Unido deveria apoiar o Sul e lutasse contra Abraham Lincoln.

Este, como se sabe, era retratado por muitos no Reino Unido como um monstro ditatorial que era contra o livre comércio – o Reino Unido, supostamente, seria capaz de persuadir a Confederação independente a abolir a escravatura de forma gradual e pacífica. Em retrospectiva, todos sabemos que o argumento era apenas uma cobertura hipócrita para a procura, por parte dos interesses britânicos, de produtos baratos provenientes do trabalho escravo. Trata-se de uma versão do século XIX da tese do “engajamento construtivo”.

Hong Zhang

Embora você acredite que a rivalidade EUA-China se intensificará nos próximos anos, no final do livro você ainda deposita esperanças de que se possa evitar um conflito fatal. Você acredita no papel mediador das instituições governamentais globais e no reequilíbrio dos interesses do governo chinês com os interesses econômicos dos EUA. Você tem esperança de que esse reequilíbrio possa acontecer?

Na China, começamos a ouvir um pouco mais sobre a redistribuição de renda, uma vez que a questão urgente passa a ser a manutenção do crescimento da economia da China, que foi prejudicada pelos confinamentos da Covid-19. Nos Estados Unidos, vemos também o desejo de recuperar os empregos na indústria e de investir mais em infraestruturas, no bem-estar e na economia verde. Você acha que existem mecanismos de autocorreção em cada um dos países e que eles são suficientemente fortes?

Ho-fung Hung

Como mencionei, o fato de que a China seja muito menos militarista do que a Alemanha há um século é motivo para otimismo. É possível que a intensificação da rivalidade entre os EUA e a China possa ser restringida à concorrência entre os dois países nas instituições governamentais globais. Mas estou menos optimista quanto à parte do reequilíbrio interno. O Governo chinês tem falado em reequilibrar a economia, aumentando o consumo interno das famílias através da redistribuição, pelo menos desde o final da década de 1990.

Zhu Rongji (primeiro-ministro de 1998 a 2003) falou sobre isso após a crise financeira asiática de 1997-98, e Wen Jiabao (primeiro-ministro de 2003 a 2013) falou sobre isso após a crise financeira global de 2008. O padrão é este: sempre que a economia se depara com um vento contrário ao desenvolvimento da economia global, Pequim tenta iniciar uma resposta por meio da redistribuição, visando impulsionar o consumo doméstico das famílias.

Mas a redistribuição não aconteceu no passado e o governo acabou por recorrer ao velho truque de estimular o investimento com mais empréstimos para sustentar o crescimento econômico, como está a acontecer agora novamente. Este caminho evita uma recessão econômica temporária, mas agrava a desigualdade e o desequilíbrio da economia a longo prazo.

O recorrente falso otimismo com a política redistributiva é o resultado da falta de representação institucional dos trabalhadores e dos camponeses no processo de elaboração de políticas na China. Nas últimas duas décadas, um grande país em desenvolvimento que realizou reformas redistributivas significativas foi o Brasil, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–11), no âmbito do internacionalmente aclamado programa Bolsa Família, de transferência direta de renda.

Foi instituído por um governo eleito em que havia alguma representação dos pobres. Uma vez implementado, o programa tornou-se tão popular que nem mesmo Jair Bolsonaro, que se tornou presidente do Brasil em 2019, conseguiu desfazê-lo. Comparado com o processo político no Brasil, não se viam muitas razões pelas quais a elite do Partido-Estado chinês, que estava mais ligada a empresas estatais ou a empresas privadas politicamente bem relacionadas, viciadas no modelo de expansão de emprestar e investir, levaria a sério qualquer reforma redistributiva genuína.

Estou igualmente pessimista quanto ao reequilíbrio nos Estados Unidos por meio da relocalização das indústrias. A indústria transformadora nos Estados Unidos tem desfrutado de lucros descomunais ao depender de mão-de-obra estrangeira barata durante décadas. Com a guerra comercial e o apelo de Washington à dissociação da China – e a dissociação irá certamente acelerar depois de as empresas estrangeiras experimentarem a política de zero-Covid da China – motivarão as empresas dos EUA a reduzir a exposição à China. A maioria delas provavelmente não retornará aos Estados Unidos. O Vietnã, por exemplo, pode ser um destino alternativo.

Poderá haver algumas excepções nos setores considerados estratégicos, tão importantes que Washington estará disposto a subsidiar o seu regresso ao mercado interno. Microchips e mineração de terras raras podem ser dois exemplos. Mas para a maioria das empresas, a dissociação em relação à China significaria apenas a deslocalização para outros países com baixos salários no Sudeste e Sul da Ásia ou para outros locais do mundo em desenvolvimento. Assim, como não é provável que os desequilíbrios tanto nos Estados Unidos como na China diminuam espontaneamente ou mediante intervenção do Estado, o desejo de exportar capital e a concorrência intercapitalista entre os dois só aumentarão, resultando na inevitável intensificação da rivalidade geopolítica nos próximos anos.

Hong Zhang

Hong Zhang é bolsista de pós-doutorado na Iniciativa de Pesquisa China-África da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins e bolsista do Columbia-Harvard China e do Programa Mundial em 2021-22. A partir do final de 2022, ela será bolsista de Políticas Públicas da China no Centro Ash para Governança Democrática e Inovação da Universidade de Harvard. Os seus interesses de pesquisa incluem a economia política da China, a cooperação internacional para o desenvolvimento e a ajuda externa, e a expansão global das empresas estatais chinesas.

Ho-fung Hung

Ho-fung Hung é professor Henry M. e Elizabeth P. Wiesenfeld em Economia Política no Departamento de Sociologia e na Escola Nitze de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins. Ele pesquisa economia política global, protestos, formação de estados-nação e desenvolvimento do Leste Asiático, com foco recente em dinheiro, política e impérios. Ele é o autor de Protest with Chinese Characteristics (Columbia University Press, 2011), The China Boom (Columbia University Press, 2015), City on the Edge: Hong Kong under Chinese Rule (Cambridge University Press, 2022) e Clash of Empires: from "Chimerica" to the "New Cold War" (Cambridge University Press, 2022).

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