16 de agosto de 2023

Por que as forças pró-mercado vêm perdendo tração na China

Isabella Weber, autora de "Como a China escapou da terapia de choque", diz que o país tenta se equilibrar entre desejo de mercado maior e risco de perder controle

Diego Viana 


"O campo neoliberal, que costumava ser forte na China até sete ou oito anos atrás, perdeu muito poder", diz Isabella Weber - Foto: Isabel Esteves / Divulgação

Um dos autores mais lidos no Ocidente a respeito da abertura econômica da China é o economista Wu Jinglian, que, como membro do Escritório de Elaboração do Programa de Reforma do Sistema Econômico, nos anos 1980, defendia a adoção de um pacote de medidas imediatas para criar uma economia de mercado, conhecido como "terapia de choque".

Seria uma estratégia semelhante à tomada nos países da antiga União Soviética a partir de 1991. A liderança chinesa, porém, adotou um programa gradualista, defendido por economistas como Wang Xiaoqiang, quase desconhecido do público ocidental.

Esta é uma das curiosidades da história da introdução do capitalismo na China comunista, contada pela economista alemã Isabella Weber, da Universidade Amherst, nos EUA, em "Como a China escapou da terapia de choque" (trad. Diogo Faia Fagundes, Boitempo, 472 págs., R$ 97): os perdedores políticos se tornaram vencedores teóricos.

A partir de 50 entrevistas com participantes do processo, Weber mostra que o caminho chinês do desenvolvimento foi construído por meio de embates encarniçados entre dois campos: os economistas "do pacote", que defendiam a terapia de choque, e os gradualistas, que queriam manter o controle do Estado chinês sobre setores essenciais, para evitar uma súbita alta dos preços e do desemprego, com perda de produção manufatureira.

A longa história da China teve seu papel nesse momento histórico crucial: um debate semelhante havia ocorrido há quase 2 mil anos, na dinastia Han. Conhecido como controvérsia do Sal e do Ferro, o episódio já havia posto frente à frente os defensores de uma política de puro laissez-faire e os proponentes de um maior controle governamental sobre a atividade econômica. O sistema de preços de mão dupla, que manteve um patamar de preços mais baixos para a produção estatal em convivência com os mais altos do mercado, é fruto desses debates.

Para Weber, medidas recentes da China de Xi Jinping podem ser entendidas por esse prisma: o esforço de manter o sistema chinês ao abrigo de forças descontroladas do mercado e, sobretudo, das vicissitudes da economia e da geopolítica internacionais. A economista, especializada em temas como inflação e economias de transição, aponta que algumas características do modelo chinês já são visíveis também no Ocidente, como a preocupação em resguardar setores essenciais.

Uma das arquitetas do limite sobre preços de gás adotado na Alemanha e na União Europeia após o início da guerra na Ucrânia, Weber atribui o surto inflacionário no mundo desenvolvido, em boa parte, à crise das cadeias de suprimento. Ela acredita que o cenário deve permanecer turbulento devido às “emergências sobrepostas” de um mundo caracterizado por mudança climática, guerra, pandemia e crise geopolítica. Neste contexto, será preciso ir além dos puros mecanismos de mercado, com medidas como estoques reguladores e limites de preço semelhantes ao europeu.

Valor Econômico

A sra. sugere que a transição não acabou. A China está reformada ou ainda está reformando?

Isabella Weber

Sempre houve o reconhecimento de que, quando a China entra na economia mundial, a própria economia mundial muda. Não é como a Polônia, a Hungria ou a Iugoslávia. Houve lutas intensas sobre a reforma nos anos 1980 e elas não acabaram. Inerente ao gradualismo está o sistema de preços de mão dupla, que diz: estamos preservando o núcleo, mas introduzindo uma nova dinâmica. Esse modelo tem uma tensão interna, que é estrutural, porque a todo momento a parte planejada pode se tornar mais forte; ou a parte do mercado pode se tornar mais forte. No estágio atual, a cena está se estreitando. Xi Jinping, por um lado, é a favor do Estado forte. Por outro, tem promovido uma certa liberalização financeira. Não é como se estivesse apenas planejando. Ele também tem slogans de fortalecer mercados e completar a liberalização. É ambíguo, mas o campo propriamente neoliberal, que costumava ser forte na China até sete ou oito anos atrás, perdeu muito poder.

Valor Econômico

Como interpretar, por exemplo, a repressão ao setor de tecnologia?

Isabella Weber

Tem a ver com a lógica que descrevo no livro, de manter o controle e a gestão das áreas essenciais. Tem um aspecto de estabilidade política interna. Mas também um aspecto de controle político em relação ao capitalismo global e à ordem política global. Devemos sempre lembrar que os líderes dos anos 80 eram da primeira geração de revolucionários. Eles atravessaram o embargo ocidental contra a China. Por exemplo, é difícil dizer até que ponto a ideologia da autossuficiência é fruto da necessidade e até que ponto é convicção. No caso da tecnologia, dados os acontecimentos dos últimos anos, manter o controle estatal sobre áreas estratégicas também tem essa dimensão.

Valor Econômico

Ligada à experiência do embargo?

Isabella Weber

A questão é a vulnerabilidade. Penso na relação Estado/mercado na China como a dança com o tigre, que envolve o desejo de um enorme poder, a ser alimentado e treinado, mas também o risco de perder o controle. Quanto mais importante for um mercado, maior o risco de dar errado. Podemos ver a repressão na área tecnológica por essa lente. Quando a economia de plataformas era marginal, podia ser deixada por conta própria e os empreendedores podiam experimentar à vontade. Mas, quando chegamos ao ponto atual, onde grande parte do comércio ocorre nessas plataformas e elas têm controle sobre quantidades absurdas de dados, a relação de poder entre o Estado e esse setor privado não é tão simples.

Valor Econômico

Quão importante se tornou o setor?

Isabella Weber

O grau de digitalização da China é alucinante. É impressionante e assustador ao mesmo tempo. Incrivelmente eficiente e verdadeiramente aterrorizante. Para comprar um bilhete de metrô, é preciso estar conectado a um aplicativo, que tem a sua identidade. Para pedir comida, usa-se um aplicativo conectado a outro, que contém todas as suas informações pessoais. É um sistema digital totalmente integrado, que cobre tudo. É claro que a quantidade de dados coletados é enorme.

Valor Econômico

Como isso é usado?

Isabella Weber

Essa é uma ponta-de-lança do debate de política interna chinesa. Um projeto que não sei quanto já avançou é o de que governos locais colham e analisem os dados, para vendê-los ao setor privado: companhias de seguros ou publicidade, algo assim. É exatamente o que as grandes empresas privadas fazem, mas transformado em um novo modelo de negócios para os governos locais, que costumavam depender de impostos fundiários. Isso ainda não é uma realidade, mas é assustador do ponto de vista da privacidade. E faz parte da vanguarda da experimentação de políticas na China. Também há muita discussão sobre novas teorias de valor baseadas em dados.

Valor Econômico

As políticas de Xi podem ser lidas como reação ao desacoplamento entre o Ocidente e a Ásia?

Isabella Weber

Tem ressurgido uma antiga palavra de ordem dos anos 1980: a Estratégia de Desenvolvimento Costeiro, que está na origem do sistema de dupla circulação. A ideia era abrir uma segunda circulação internacional, explorando o fato de que a mão de obra barata dos Tigres Asiáticos perdia competitividade, então a China poderia atrair a indústria leve. Isso deveria alimentar a circulação interna, pra que não fossem só zonas econômicas especiais. As receitas estrangeiras deveriam alimentar os setores domésticos. Seriam uma fonte de financiamento e tecnologia estrangeira para a modernização econômica, sem gerar tanto endividamento externo.

Valor Econômico

O endividamento era outra grande preocupação?

Isabella Weber

Parte do que deu à China sua autonomia foi nunca ter se endividado como outros países de industrialização rápida. Dez anos atrás, falávamos muito sobre reservas estrangeiras e manipulação cambial, mas isso só foi possível porque eles criaram um enorme superávit comercial. As estratégias de integração na economia global sempre procuraram proteger a China dos mercados globais. Mesmo assim, a escalada da hostilidade dos últimos anos marca uma nova era. Acho que a China tem sido cautelosa. Até que ponto ela será bem-sucedida é outra história. Um país com um superávit comercial desse porte, que enfrenta dificuldades com a demanda interna, tem uma dependência de outro tipo.

Valor Econômico

Mas o desacoplamento é viável?

Isabella Weber

Sou cética quanto à ideia de desacoplamento, como se fosse possível literalmente separar os países, como os vagões de um trem. As consequências seriam enormes. Os gargalos de abastecimento dos últimos três anos mostram isso. Estou preocupada com a contradição entre a profunda integração econômica no mundo e a crescente falta de comunicação política e governança econômica global. A ruptura seria um trauma enorme para a China, a Europa e os EUA. Fala-se muito sobre o excesso de capacidade na China, mas um verdadeiro desacoplamento, ainda mais se for descontrolado, causaria um excesso de capacidade gigantesco. O mundo se dividiria em excesso de capacidade e penúria de insumos.

Valor Econômico

Em 1988, economistas chineses visitaram o Brasil. O que aprenderam com nossa experiência?

Isabella Weber

Nos anos 80, do ponto de vista chinês, o Brasil era riquíssimo. A delegação ficou maravilhada com o modernismo, os carros nas ruas, a infraestrutura. A grande questão que analisaram foi a inflação. A China estava preocupada com isso porque, do ponto de vista dos comunistas chineses, a queda dos nacionalistas nos anos 1940 estava ligada ao fracasso em controlar a hiperinflação. Havia uma enorme ansiedade com a possibilidade de que a abertura trouxesse preços em alta. Inclusive, o contexto dos protestos de 1989 foi o retorno da inflação. Em 1988, quando houve o segundo debate sobre uma reforma radical de preços, a delegação que percorreu a América Latina tentou entender a inflação latino-americana e voltou com mensagens truncadas. Delfim Netto dizia: se o crescimento é muito rápido, uma certa inflação é inevitável. Mas eles viram a dificuldade do Brasil em controlar a inflação. Eles também se preocupavam com desigualdade e crescimento. A analogia do bolo, de Delfim, ressoa com a ideia de Deng Xiaoping de que alguns precisam ficar ricos primeiro. Nesse ponto, a leitura da experiência latino-americana provavelmente foi ingênua. Poderiam ter sido mais cautelosos com as enormes desigualdades que as reformas da China acabaram por produzir.

Valor Econômico

Hoje é possível reproduzir a estratégia chinesa?

Isabella Weber

Uma das grandes lições da China é que não se trata de copiar o modelo de outro país ou um pacote teórico. Foi exatamente isso que a China não fez. É o contraste mais nítido com o Consenso de Washington. Na China, devemos estudar a experimentação em políticas de desenvolvimento. A China dos últimos 40 anos é o maior caso de experimentação dos tempos modernos. Há algumas lições que podemos discernir como princípios. Sobretudo que os mercados podem ser ferramentas, e não objetivos em si. Na economia, as metas podem ser definidas politicamente e os mercados podem ser ferramentas para atingir essas metas. Aliás, acho que já está ressurgindo na prática a distinção entre áreas estrategicamente essenciais e áreas não essenciais, e o entendimento de que as mais importantes exigem outro tipo de engajamento público. Os EUA, por exemplo, procuram recuperar o domínio doméstico, senão estatal, sobre minerais críticos. E é hora de reconhecer que os países em desenvolvimento precisam poder proteger mercados essenciais contra flutuações muito violentas em tempos de emergências sobrepostas.

Valor Econômico

Quem são os personagens mais representativos dos campos em disputa na China dos anos 1980?

Isabella Weber

O mais importante do lado da reforma imediata é Wu Jinglian. Do lado gradualista, é Wang Xiaoqiang. O contraste entre eles é útil para ver a diferença sociológica entre esses campos. Wu Jinglian é um representante dos intelectuais estabelecidos da geração de meia-idade na década de 1980. Ele tinha um cargo na Academia Chinesa de Ciências Sociais antes da Revolução Cultural e foi enviado ao campo, depois voltou ao cargo. Tinha formação de economista soviético ortodoxo. No início dos anos 1980, foi um dos primeiros a ir para o exterior e estudar economia em Yale, frequentando aulas de graduação aos 42 anos. Ele escreveu bastante sobre o período de reforma e muitos no Ocidente conhecem aquele período através de seus escritos. Na China, é conhecido como “Wu Mercado”, de tão pró-mercado que é. Quando o entrevistei, foi em uma elegante escola particular de negócios nos arredores de Pequim.

Valor Econômico

E quanto a Wang Xiaoqiang?

Isabella Weber

Wang Xiaoqiang tem uma história bem diferente. Eu o consideraria, junto com Chen Yizi, o nome mais importante dos gradualistas. Wang estava entre os jovens enviados para o campo, depois voltou para a cidade, ainda para atuar em algum trabalho braçal. Escreveu ensaios sobre o socialismo agrário que foram adotados por Chen Yizi. Tornou-se uma das figuras de proa do grupo de desenvolvimento agrícola e dirigiu o Instituto de Reforma do Sistema Econômico nos anos 80. Fez parte do grupo que expressou solidariedade aos manifestantes na Praça da Paz Celestial e defendeu o diálogo com eles. Depois, com o apoio de George Soros, estudou nos Estados Unidos e fez seu doutorado em Cambridge. A entrevista que ele fez comigo foi uma das primeiras dele sobre essas histórias dos anos 80. Muitos achavam que se tornaria um dos principais líderes da China. Quando o conheci, trabalhava no departamento de pesquisa de algum banco e dirigia uma obscura editora em Hong Kong.

Valor Econômico

Então o vencedor da história foi escanteado e o perdedor se tornou a referência?

Isabella Weber

Sim, o que é parte do motivo pelo qual estou contando essa história. As pessoas que nos anos 80 saíram vitoriosas na questão econômica perderam politicamente. Nos anos 90, a maioria estava no exterior ou tinha negócios privados. Alguns também foram parar na prisão. Bai Nanfeng, com quem passei muitas horas, passou o início dos anos 90 na prisão. Eles tinham bem menos espaço para contar sua versão do que alguém como Wu Jinglian. E a história oficial do partido também não necessariamente gosta da ideia de que quase cometeram erros...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...